Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Janelas para o outro
Janelas para o outro
Janelas para o outro
E-book666 páginas5 horas

Janelas para o outro

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Janelas para o outro surgiu na pandemia, entre 2020 e 2021. Da noite para o dia, em março de 2020, ficamos todos isolados e confinados, cada um na sua casa, no seu canto, no seu lugar. Uma quarentena que se prolongou por 2021, afetando a moral, o emocional, o psiquismo, a saúde mental de muitos de nós, além, evidentemente, da saúde física e da vida de outros. Nenhum ou quase nenhum contato social, exceto pelas janelinhas do Zoom, do Google Meet, do Whatsapp, do Messenger, onde criamos arremedos de vida social e acadêmica, ao longo de meses e meses de isolamento e desalento, em que o outro tornou-se o maior problema, ao mesmo tempo em que se constituía na maior falta. E muitos, muitíssimos encontros virtuais, pelas janelinhas da internet. Reuniões, bancas, aulas, palestras, lives com a família e amigos. O contato social, profissional, acadêmico e afetivo passou a ser feito pelos quadradinhos de aplicativos e plataformas, em modo remoto. E aí, surgiu a obsessão da ideia do outro, da falta que ele nos faz, do que representa para cada um, da importância da vida e do contato social, de quais seriam as janelas para esse outro que nos falta e amedronta, ao mesmo tempo.
IdiomaPortuguês
Editora7Letras
Data de lançamento27 de set. de 2021
ISBN9786559051724
Janelas para o outro

Relacionado a Janelas para o outro

Ebooks relacionados

Artigos relacionados

Avaliações de Janelas para o outro

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Janelas para o outro - 7Letras

    Janelas_para_o_outro_capa_epub.jpg

    Sumário

    Prefácio

    José Luís Jobim

    Por que as janelas para o outro?

    laboratório de literatura escritores por eles mesmos

    Os trinta versos de um soneto

    Antonio Carlos Secchin

    Os romances dos meus sonhos

    Antônio Torres

    Na fronteira: o exercício de alteridade na criação literária

    Daniela Kopsch

    Sobre a escrita de O exílio de Capitu, suas cartas e outras curiosidades, breves considerações da autora

    Gloria Vianna

    A estátua africana, Sandro, Jussara e o poeta Castro Alves

    Godofredo de Oliveira Neto

    A bordo do Clementina e depois: Agora, reflexões sobre esta escrita

    Solange Rebuzzi

    pesquisadores convidados

    Ciranda de mortes: violência de gênero em Mulheres Empilhadas

    Ângela Maria Dias

    Medeia ou A arte de sobreviver à origem

    Carlinda Fragale Pate Nuñez

    Qual é a luz que brilha através daquela janela?

    Eliana Yunes

    De sala de convívio e janelas para três poetas portugueses

    Ida Alves

    Transferência cultural franco-brasileira no século XIX: de um mistério a outro

    Jacqueline Penjon

    Sujeitos inxilados, sujeitos esperantes

    Leonardo Tonus

    Uma janela para o outro: A hora da estrela e o desamparo em Lispector

    Lucia Helena

    Caminha, Genet e a passividade que move a narrativa

    Márcio Venício Barbosa

    O poeta das palmeiras às voltas com cifrões

    Marisa Lajolo

    pesquisadores do grupo de pesquisa o passado no presente: releituras da modernidade

    O gato de botas, um grande agitador dos contos populares

    François Weigel

    Nuances do pictural: a aquarela machadiana em Missa do galo

    Maria Cristina C. Ribas

    O Brasil do século XIX no diário de viagens de Maria Graham

    Maria da Conceição Vinciprova Fonseca

    As aventuras de uma africana no Brasil do século XIX: estrangeira, mulher e escrava

    Maria Elizabeth Chaves de Mello

    Paul Valéry e os possíveis de um texto

    Maria Ruth Machado Fellows

    Jules Verne, feminista antes do tempo?

    Mônica Fiuza Bento de Faria

    Ilações sobre o preconceito racial em Negrinha

    Simone Maria Bacellar Moreira

    Pélagie-la-Charrette e Ulisses: cartografias imaginárias

    Stela Maria Sardinha Chagas de Moraes

    doutorandas do grupo de pesquisa o passado no presente: releituras da modernidade

    Movimentos e mudanças no memorial de Maria Moura: a dimensão formadora da viagem

    Elisângela Santos Petrucci Peçanha

    Fachadas descortinadas: cenas da belle époque carioca em crônicas de Machado de Assis

    Thaís Bartolomeu Barcellos

    Sobre os autores

    Texto de orelha

    Para Alcida Caldeira Brant e Pierre Guisan, que se foram enquanto eu organizava este livro, a certeza de que estão aqui, na minha dor e saudades imensas.

    Prefácio

    José Luís Jobim

    Windows é o nome dado pela Microsoft ao sistema operacional que opera a maioria dos computadores pessoais hoje no mundo. A organizadora deste volume, Maria Elizabeth Chaves de Mello, chama a atenção para as janelas geradas pelo sistema operacional de nossos computadores que se tornaram substitutas provisórias das janelas reais através das quais víamos o mundo, em um momento no qual também podíamos dele participar de forma mais presencial.

    Windows também significa acesso ao outro, aquele em relação ao qual nos constituímos de alguma maneira, por processos que já foram descritos através de muitas dicotomias: identificação-rejeição; dominação-subalternização; controle-resistência; tolerância-oposição etc. As janelas para o outro, aqui, abrem-se com a fala daqueles a quem também vemos como objetos dos estudos literários (Antonio Carlos Secchin, Antônio Torres, Daniela Kopsch, Gloria Vianna, Godofredo de Oliveira Neto, Solange Rebuzzi), mas que neste volume ocupam um lugar de fala como autores, tematizando suas próprias obras e suas posições diante delas. No caso de Secchin e Vianna, ambos lidam adicionalmente com uma espécie de outro de si mesmos, porque também ocuparam a função de críticos literários, levando-os a ter uma escrita muito autoconsciente de seus próprios fundamentos. Não é por acaso, então, que a primeira seção do livro é designada pela organizadora, em sua introdução a este livro, como LABORATÓRIO DE LITERATURA – ESCRITORES POR ELES MESMOS.

    As seções seguintes são nomeadas pela inserção e/ou relação profissional dos autores. A segunda seção, intitulada PESQUISADORES CONVIDADOS, abrange trabalhos de docentes e pesquisadores de diferentes universidades brasileiras e francesas: Ângela Dias, Carlinda Fragale Pate Nuñez, Eliana Yunes, Ida Alves, Jacqueline Penjon, Leonardo Tonus, Lúcia Helena, Márcio Venício Barbosa, Marisa Lajolo. A terceira reúne os pesquisadores do grupo de pesquisa do CNPq liderado por Maria Elizabeth Chaves de Mello, desde 2004 e registrado como O passado no presente: releituras da modernidade: François Weigel, Maria Cristina Ribas, Maria da Conceição Vinciprova Fonseca, Maria Ruth Fellows, Mônica Fiuza, Simone Bacelar Moreira, Stela Maria Sardinha Chagas de Moraes, além da própria organizadora. Finalmente, dentro deste mesmo grupo de pesquisa, dá-se destaque às pesquisadoras ainda em formação: Elisangela Santos Petrucci Peçanha e Thaís Bartolomeu Barcellos.

    Para completar o circuito, falta agora o leitor. Boa leitura!

    Por que as janelas para o outro?

    A ideia do título Janelas para o outro surgiu na pandemia, entre 2020 e 2021. Da noite para o dia, em março de 2020, ficamos todos isolados e confinados, cada um na sua casa, no seu canto, no seu lugar. Uma quarentena que se prolongou por 2021, afetando a moral, o emocional, o psiquismo, a saúde mental de muitos de nós, além, evidentemente, da saúde física e da vida de outros. Nenhum ou quase nenhum contato social, exceto pelas janelinhas do Zoom, do Google Meet, do Whatsapp, do Messenger, onde criamos arremedos de vida social e acadêmica, ao longo de meses e meses de isolamento e desalento, em que o outro tornou-se o maior problema, ao mesmo tempo em que se constituía na maior falta. Desprovida do contato com os pares, amigos, parentes, filhos, netas, alunos, o que restava a uma professora de literatura, senão o consolo da leitura? Foram muitas e muitas viagens imaginárias. E muitos, muitíssimos encontros virtuais, pelas janelinhas da internet. Reuniões, bancas, aulas, palestras, lives com a família e amigos. O contato social, profissional, acadêmico e afetivo passou a ser feito pelos quadradinhos de aplicativos e plataformas, em modo remoto. E aí, surgiu a obsessão da ideia do outro, da falta que ele nos faz, do que representa para cada um, da importância da vida e do contato social, de quais seriam as janelas para esse outro que nos falta e amedronta, ao mesmo tempo. Isso me levou a pensar em juntar pessoas e seus textos, mostrando como viam o outro e as janelas para ele, de alguma forma. Daí surgiu a organização deste livro, cujo tema seria o outro, através, na e pela literatura. O outro pela janela literal e metafórica. Penso na arte como uma janela para o encontro com o outro, o meio pelo qual saímos de nós mesmos para entrarmos em outrem, na empatia necessária que os atos de escrever e ler suscitam ou pedem. Lembro-me de Sartre, quando ele afirma que Il n’y a d’art que pour et par autrui. A literatura como a janela que nos permite olhar para um outro mundo, que nos faz esquecer a miséria da nossa condição. Passei, então, a convidar pessoas que poderiam abordar o texto literário com essa cumplicidade, com essa abordagem da janela para o outro, tanto literal quanto metaforicamente.

    E fui fazendo convites. O que mais me surpreendeu, inicialmente, foi a pronta aceitação da ideia, por parte de quase todos os convidados, que acataram a solicitação de mais um trabalho, com generosidade. Parecia até que esperavam por esse momento. À medida que os trabalhos foram chegando, foi interessante observar como cada autor interpretou, viveu e reproduziu a ideia da literatura como janela para o outro. Em cada texto, o outro é um outro. Cada autor construiu uma janela, pela qual saía para o outro, ou era levado para ele. Foi uma constatação de que é para o outro e pelo outro que se faz arte, o outro sendo essencial para que se pense na escrita e na leitura. Entusiasmada com essa ideia, constatando os múltiplos sentidos que a palavra janela abrange, convidei também alguns escritores contemporâneos que, generosamente, enviaram-me reflexões ou ensaios de sua autoria sobre os seus próprios trabalhos. A ideia é ver como cada escritor considera a sua obra. O resultado é uma série de reflexões interessantes e enriquecedoras sobre a arte de escrever, sobre o outro visto pelo escritor, que veio coroar a ideia do encontro com o outro. O livro se abre com esses autores, como uma comissão de frente, formada pelos que estão com a mão na massa, que contribuem, cada um a sua maneira, para construir a literatura no Brasil de hoje.

    Laboratório de Literatura - Escritores por eles mesmos

    A primeira parte do livro, como foi dito, é composta por escritores, que dão seu testemunho sobre o que fazem, como fazem, ou como abordam o fazer literário. É uma entrada no livro, esse conjunto de reflexões sobre a própria escrita, feito por gente que está com a mão na massa, alguns veteranos, outros iniciantes. A esses autores, minha eterna admiração e gratidão. Estes testemunhos serão, com certeza, muito importantes para os estudiosos de literatura, hoje.

    O primeiro a entrar no laboratório foi o grande poeta e ensaísta Antonio Carlos Secchin. Ele nos traz um verdadeiro trabalho de investigação e pesquisa, um texto de mestre. Membro da Academia Brasileira de Letras, grande pesquisador dos estudos sobre poesia, Secchin nos presenteia com um belo texto, que nos conta como fez e refez o poema Trio em três versões, desvendando, para o leitor, a sua arte de fazer poético, de modo lúdico e saboroso. As várias vozes do crítico, do poeta, do professor, do homem de letras se reúnem, mostrando a confluência das várias pessoas que vivem em Antonio Carlos Secchin.

    Ao poeta imortal, segue-se um dos seus pares, também ele imortal da ABL, também ele de nome Antônio, também ele grande escritor. Em seus romances, Antônio Torres vem contribuindo, cada vez mais, para o crescimento da literatura brasileira, na busca de suas raízes, nos seus romances históricos. Em Os romances dos meus sonhos, o autor cria um texto onírico, surrealista, em que entram em cena sonhos, reminiscências e ficção, numa provocação para a reflexão sobre o que seria a arte do romance. A leitura do texto nos leva a pensar sobre o real e o imaginário, nas suas relações com a literatura.

    Em seguida, temos Daniela Kopsch, jornalista e escritora, pesquisadora na Université Paris 4, Sorbonne, em Paris. Com simplicidade e demonstrando grande competência de pesquisadora, a autora aborda o seu romance de estreia, O pior dia de todos, publicado em 2019, elaborado a partir de uma experiência traumática, quando, como jornalista, cobriu a tragédia real de Realengo, em 2011. De maneira espontânea e delicada, Daniela Kopsch nos revela os segredos da sua arte, oferecendo-nos uma reflexão sobre a questão do trabalho da narrativa no romance. O ensaio nos leva a pensar na criação literária, propondo uma relação entre a escrita e o exercício de alteridade, pensando a literatura como o espaço de encontro entre o ser e o outro.

    Passamos para Gloria Viana, professora e escritora, com as reflexões que faz sobre o seu livro O exílio de Capitu, em que a narradora estabelece um curioso diálogo com Capitu e nos faz reler Dom Casmurro em perspectiva. Curiosamente, a narradora não tem nome e nem pode ter, pois tem todos os nomes e nenhum. Ela empenha-se em provar que é possível ler e compreender novas e infinitas camadas de um mesmo texto, podendo-se abrir, aqui e ali, brechas em que se desvelam algumas das apropriações e desapropriações feitas na composição do texto.

    O texto que se segue é A estátua africana, Sandro, Jussara e o poeta Castro Alves, de Godofredo de Oliveira Neto, que nos oferece uma deliciosa, intrigante e instigante crônica da série A caminho do Fundão, em que a questão da arte, do amor e da estrangeiridade se misturam, propiciando-nos boas reflexões sobre a arte e o amor. Trata-se de um texto que pode ser estudado como um questionamento do que seria, afinal, o gênero crônica. Ficção ou documento do quotidiano? Quais os seus limites? Haveria limites?

    Encontramo-nos, então, com Solange Rebuzzi, no seu texto poético, que leva o título de A bordo do Clementina e depois. Agora, reflexões sobre esta escrita. Nele, Solange narra, de maneira comovida e comovente, o encontro com os seus antepassados, imigrantes vindos da Itália, naquele momento, em 1877, a bordo do navio Clementina. O encontro se dá pela literatura, no relato que ela faz dessa viagem... O texto oscila entre o fato histórico, a ficção e a subjetividade, sendo um objeto de reflexão para os estudos sobre o encontro do imaginário com a História.

    Pesquisadores convidados

    Muito tenho a agradecer aos meus convidados, todos grandes pesquisadores, de diferentes universidades brasileiras e francesas, que deixaram de lado seus afazeres, pesquisas, aulas, palestras e trabalhos, para me enviarem textos que podem trazer contribuições importantes para a área de Letras.

    A fila desses pesquisadores convidados abre-se, na ordem alfabética, com Ângela Dias, cujo texto estuda o romance de Patrícia Melo, Mulheres empilhadas, sobre a violência contra a mulher, ao tematizar o massivo feminicídio disseminado no Brasil, como ocorrência corriqueira, não devidamente discutida no nosso espaço público. Ângela Dias demonstra como a escritora assume um viés neonaturalista, ao compor, num estilo decididamente brutal, à altura da violência que elabora, uma ficção com forte tendência documental, a partir do levantamento exaustivo de casos reais de assassinato, num experimentalismo engajado na denúncia do contingente de vítimas silenciadas.

    Da literatura contemporânea, passamos para a tragédia clássica, com o texto Medeia ou a arte de sobreviver à origem, em que Carlinda Fragale Pate Nuñez pretende demonstrar como uma realidade social e política – a rejeição ao estrangeiro/estranho – é exposta de modo veraz e convincente para o polítes (cidadão) que vai ao teatro, na Atenas do séc.V a.C., através de uma arqueologia do mito de Medeia. A autora constata que a contradição entre a precária aceitação do ksénos (ou xénos, estrangeiro), num ambiente elitista (legatário do extinto ambiente eupátrida que os mitos palacianos reproduzem), e o imaginário olímpico, também povoado por divindades arcaicas que fornecem aos poetas-mitógrafos personagens de diferentes procedências, constitui a mola mestra desta peça profundamente trágica.

    Em seguida, temos a presença do estudo da poesia, na contribuição de Ida Alves, que, no texto De sala de convívio e janelas para três poetas portugueses, faz um estudo de poesia a partir do tema proposto para o nosso livro, Janelas para o outro. A autora analisa o simbolismo e os sentidos da janela, em autores de peso como Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Cesário Verde, Ruy Belo, Carlos de Oliveira, apontando para Luís Quintais. Esta linhagem teria se iniciado com Baudelaire, talvez o primeiro autor a dar, em poesia, destaque reflexivo à janela, esse espaço banal ao redor do sujeito moderno, que se firmava no espaço da cidade parisiense em transformação.

    No gênero folhetim, temos Transferência cultural franco-brasileira no século XIX: de um mistério a outro, em que Jacqueline Penjon parte do romance Les Mystères de Paris, de Eugène Sue, mostrando como ele espalhou-se pela Europa, pelo mundo, e deu origem a um fenômeno tão intenso de adaptações, traduções e paródias, que se falou em "mysterymania", estudada na França por Marie-Eve Thérenty ou Anne-Marie Thiesse e, no Brasil, por Nelson Schapochnik. Vários Mysterios do Rio de Janeiro serão publicados mais ou menos até 1924. Na maioria dos casos, levam um subtítulo esclarecendo o objetivo do autor. A ligação com Os Mysterios de Paris foi desaparecendo, mas o gosto pelo submundo, pelos subterrâneos, pelas irmandades de tratantes e criminosos deu origem ao romance judiciário e ao romance policial

    Passamos, em seguida, a Leonardo Tonus, cujo texto parte de algumas questões fundamentais para se pensar no ofício de professor de literatura, hoje. A primeira seria a de como ficaria a sobrevivência do campo literário diante da incapacidade de se comercializar ou de se publicar livros, conjugando-se o fenômeno da pandemia com o advento forçado do mundo digital em nossas vidas. Do geral, Leonardo Tonus passa para o particular, na questão da produção literária brasileira contemporânea, questionando a função dos professores de literatura, dos leitores e alunos. E, num desalento, pergunta-se para quem e para que produzir literatura, hoje. Seu texto, intitulado Sujeitos inxilados, sujeitos esperantes, indaga uma saída ou possíveis saídas para esse impasse.

    Com Lucia Helena, em seguida, temos um texto instigante e enriquecedor – Uma janela para o outro: a hora da estrela e o desamparo em Lispector, em que parte da constatação de que, na autora, o paradigma da inquietude se encontra com uma escrita híbrida, que se interroga acerca dos itinerários do ser em trânsito. Lucia Helena demonstra como A hora da estrela entrelaça o relato da história de Macabéa com o drama pessoal do narrador, que não sabe como lidar com a sua criatura/personagem, deparando-se com a relação entre o Criador e a criatura que escreve, isto é, o escritor, um criador com minúscula.

    Por sua vez, Márcio Venício Barbosa propõe, no seu texto Caminha, Genet e a passividade que move a narrativa, um estudo comparativo de Bom Crioulo, de Adolfo Caminha, e Querelle de Brest, de Jean Genet, romances publicados com um intervalo de meio século, que trazem em comum os temas da homossexualidade e do crime na vida de marinheiros sedutores. Ambos os romances deixam clara a interdependência que equilibra os polos passivo e ativo nas narrativas e, ainda que tendam a valorizar, de certa forma, aqueles personagens que têm traços mais fortes de masculinidade, permanece, mais que nas entrelinhas, a força subjacente da passividade como motor da narrativa.

    Finalmente, Marisa Lajolo presenteia-nos com O poeta do sabiá às voltas com cifrões, no qual a autora investiga algumas cartas de Gonçalves Dias, que sugerem a precariedade de condições disponíveis para a profissionalização do escritor. Trata-se de um outro e pouco conhecido Gonçalves Dias: o intelectual pobre, cioso de seus direitos e muito atento às precárias condições de exercício e remuneração da escrita literária no Brasil de seu tempo. Em pauta, as aventuras e desventuras editoriais de Gonçalves Dias, aqui tomadas como porta de entrada para um conhecimento mais minucioso da história da leitura e da escrita no Brasil.

    Pesquisadores do grupo de pesquisa O passado no presente: releituras da modernidade

    Neste lugar do livro, inserem-se os pesquisadores do grupo O passado no presente: releituras da modernidade, cadastrado no CNPq, desde 2004. A esses colegas, de diferentes universidades brasileiras e às duas doutorandas que integram o grupo, o meu agradecimento, pelo muito que têm atuado na pós-graduação em estudos de literatura, na UFF.

    Abrindo a fila, deparamo-nos com O Gato de botas, um grande agitador dos contos populares, interessante ensaio de François Weigel, que traz uma contribuição ao nosso livro, apresentando o Gato de botas de Perrault como um tricksters, devido ao seu caráter de malandragem, que, como ele mostra ao longo do texto, é corrente em vários personagens do animal gato, ao longo da história da literatura francesa, mesmo entre os antecessores do conto perraultiano. François Weigel faz um percurso panorâmico, mostrando a filiação do chat botté a toda uma linhagem de gatos tricksters e provocando uma reflexão sobre a função desse personagem, na literatura.

    Maria Cristina Ribas contribui com Nuances do pictural: a aquarela machadiana em Missa do galo. Na análise que faz de Missa do galo, a autora desenvolve seu estudo das relações entre a literatura e outras artes, neste caso, a pintura, demonstrando como o ensaio da tipologia permite descrever as personagens, os lugares, as cenas, ou os detalhes das cenas, como se eles fossem quadros ou evocassem temas de quadros, em várias configurações no texto literário.

    Em seguida, passamos ao texto de Maria da Conceição Vinciprova Fonseca, O Brasil do século XIX no diário de viagens de Maria Graham, um estudo da viajante inglesa que esteve no Brasil e sobre ele escreveu. A autora nos apresenta a Maria Graham, mostrando-nos o seu olhar ambíguo, ao mesmo tempo compassivo, indulgente e crítico da sociedade brasileira, retratando-a como injusta, desigual e escravocrata, que a torna exótica para uma inglesa, mas que é mostrada com uma acuidade no olhar, rara em mulheres naquele tempo.

    Maria Elizabeth Chaves de Mello estuda, em Aventuras de uma africana no Brasil do século XIX: estrangeira, mulher e escrava, o romance de 2016 de Ana Maria Gonçalves, intitulado Um defeito de cor. A intriga se passa no século XIX e nos é narrada por Kehinde, uma africana escravizada e trazida para a Bahia. O romance oferece-nos a ocasião de refletirmos sobre o encontro entre o mesmo e o outro, quando esse outro é mulher, negra, escrava e estrangeira, nos oitocentos. O leitor é levado a perceber o caráter de entre lugar, em que vive a heroína do romance, seu olhar de perplexidade, próprio do estrangeiro.

    Maria Ruth Fellows apresenta uma leitura crítica da obra de Paul Valéry, no ensaio Paul Valéry e os possíveis de um texto. Dentre os escritos do autor, a pesquisadora escolhe aqueles que apresentam suas reflexões sobre o objeto literário, sobretudo as que apontam para as possibilidades inerentes a um texto. Assim, o papel do leitor, a permanência das obras, a função da crítica e a literatura em si mesma são questões fundamentais. A autora conclui que a atualidade das ideias do escritor nos permite aproximá-lo de pensadores contemporâneos, o que a leva a destacar a importância da leitura da sua obra para todos aqueles que, hoje, se interessam pelo estudo da literatura.

    Em seguida, passamos para o texto de Mônica Fiuza que, estudando a obra de Jules Verne, questiona a suposta misoginia do autor, através da análise de alguns personagens e histórias criados por ele. Seu ensaio tem um título provocador – Jules Verne, feminista antes do tempo? – e é seguido de um outro texto, do próprio autor, traduzido pela mesma Mônica Fiuza, o Discurso pronunciado por Jules Verne na cerimônia de entrega de prêmios do Liceu para moças, em 29 de julho de 1893.¹ Um trabalho instigante e enriquecedor para os estudos da condição feminina no século XIX.

    Com Simone Bacelar Moreira, deparamo-nos com o texto Ilações sobre o preconceito racial em Negrinha, no qual a pesquisadora analisa o conto Negrinha, do polêmico autor Monteiro Lobato. Neste conto para adultos, segundo Simone, o narrador relata uma série de violências cometidas contra uma criança negra, narradas de uma maneira ironicamente natural. Simone assinala que, embora, para o leitor infantil, o autor crie um mundo imaginário cheio de encantamento, para os leitores adultos, ele destaca as crueldades e injustiças próprias da sociedade brasileira daquele momento.

    Em "Pélagie La Charrette e Ulisses": cartografias imaginárias, Stela Maria Sardinha Chagas de Moraes questiona como a epopeia da autora Antonine Maillet instaura o mito acadiano – a odisseia acadiana –, renovando a história de um povo sem pátria que, tendo conservado sua língua, suas tradições e sua cultura, se sente em casa, de Caraquet à ilha do Prince Édouard. Assim, através da literatura, renova-se a alma do país.

    Doutorandas do grupo de pesquisa O passado no presente: releituras da modernidade

    Duas doutorandas do programa de Estudos em Literatura da UFF também trouxeram suas contribuições para enriquecerem o nosso livro. A elas muito agradeço, pelo esforço, boa vontade e generosidade.

    Elisangela Santos Petrucci Peçanha, com o texto Movimentos e mudanças no Memorial de Maria Moura: a dimensão formadora da viagem, aborda a saga da grande guerreira do sertão brasileiro, no Memorial de Maria Moura, mostrando como ela é perpetuada neste romance, a partir de experiências que lhe garantiram escolhas na vida e, sobretudo, chancelaram questões sociais e de feminilidade bem avançadas para o século XIX.

    Finalmente, em Fachadas descortinadas: cenas da Belle Époque carioca em crônicas de Machado de Assis, Thaís Bartolomeu Barcellos percorre o Rio de Janeiro do final do século XIX e início do XX, acompanhando o olhar arguto, atento e irônico do grande cronista que foi Machado de Assis, através dos espaços geográficos da cidade, mas também dos inúmeros personagens presentes na sua crônica.

    Foi muito enriquecedor ter organizado este livro. Com os colegas, amigos, alunos e ex-alunos, descobri que, de uma tragédia como a pandemia do coronavírus, podemos extrair muita coisa, se soubermos abrir janelas para o outro. E como as janelas dos já citados Zoom, Google Meet, Skype, Messenger e WhatsApp são o que nos permite o acesso ao outro, ficam as janelas no título, com tudo o que elas representam de símbolos, neste momento. Através delas, viajemos com o outro e para o outro. A mim, restam-me os agradecimentos, que, por falta de palavras, deixo de fazer como merecem. Obrigada!

    A minha imensa gratidão,

    Maria Elizabeth Chaves de Mello

    Organizadora

    laboratório de literatura escritores por eles mesmos

    Os trinta versos de um soneto

    Antonio Carlos Secchin

    Trio² (versão 2002)

    Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac,

    que no Parnaso ecoa como voz primeira,

    já sabe que bem cabe em verso alexandrino

    o poeta que logrou vestir-se de palmeira:

    Antônio Mariano Alberto de Oliveira,

    que esculpe passo a passo exótica colmeia,

    inapelavelmente encaixa em doze sílabas

    Raimundo da Mota de Azevedo Correia.

    Jubilosos na métrica do próprio nome,

    aprisionam em seus versos as pombas e estrelas,

    apostando que em jaula firme e decassílaba

    não haverá qualquer perigo de perdê-las.

    Adestram a voz do verso em plena luz do dia.

    Lá fora a fera rosna a fome da poesia.

    Devia ter 14 ou 15 anos quando ouvi, pela primeira vez, alguém (Helena Fernandes, minha professora de português do ensino médio) dizer que o nome completo de Olavo Bilac – Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac – correspondia a um alexandrino perfeito. Mas não é exatamente assim: a rigor, o nome de Bilac, para deixar de ser uma simples sucessão de 12 sílabas e tornar-se de fato um alexandrino, necessitaria inserir-se numa série que o acolhesse enquanto tal: num poema, onde deixaria de ser uma sequência de substantivos próprios para transformar-se num verso.

    Acalentei a intenção de inserir esse longo nome num texto poético. Décadas depois, mais familiarizado com a poesia brasileira, constatei algo que, salvo engano, passara despercebido: os nomes completos dos dois outros poetas do famoso trio máximo de nosso Parnasianismo, Alberto de Oliveira e Raimundo Correia, igualmente poderiam constituir-se em versos dodecassílabos. A ideia de unir os três num soneto era tentadora. Além disso, eu já disporia de três versos prontos, bastava-me compor os outros 11.

    Assim, em 2002, em meu livro Todos os ventos, publiquei o poema Trio, na versão que abre este estudo. Uma peça em alexandrinos, rimados nos versos pares, os dois finais em rimas emparelhadas, na regra do soneto inglês.

    Algumas referências e alusões do poema talvez não sejam captadas pelo leitor contemporâneo, tão pouco afeito à poesia parnasiana. De qualquer modo, procurei remeter a textos-chave do movimento. No verso 4, o diálogo se estabeleceu com a abertura de Aspiração,³ de Alberto de Oliveira: Ser palmeira! existir num píncaro azulado!. A colmeia, no verso 6, não aponta para texto específico, e sim para o trabalho metódico, regular, do poeta-abelha, preenchendo com o mel dos versos o poema-colmeia (colmeia, aliás, com e fechado, segundo o Dicionário Houaiss e de acordo com minha necessidade de rima com Correia). O verso 11 dialoga com dois dos mais consagrados poemas do movimento: As pombas, de Raimundo, e Ora, direis, ouvir estrelas, de Bilac.

    Quando, em 2017, revi os textos de Todos os ventos para integrá-los à minha poesia reunida em Desdizer, efetuei mudanças em cinco versos, assinaladas abaixo em negrito.

    No verso 3, substituí verso alexandrino por num dodecassílabo. A mudança deveu-se, simplesmente, ao fato de que eu necessitaria utilizar a palavra alexandrina no verso 11, e cuidei preventivamente de impedir a redundância vocabular. No 6, mesmo sacrificando a aliteração em "esculpe passo a passo, cogitei que haveria ganho com a presença de vaso, que alude a duas das mais renomadas peças de Alberto, o Vaso grego e o Vaso chinês". No 8, a opção foi rítmica: o nome do poeta comporta 12 sílabas, porém não constitui dois hemistíquios perfeitos, uma vez que a tônica central incide na quinta, e não na sexta sílaba –Rai/mun/do/da/Mota. A operação para deslocar Mo da quinta para a sexta sílaba exigiu transformar o ditongo Rai no providencial hiato Raï, estratégia que deixei registrada graças aos bons préstimos do extinto trema. Mas, se estiquei uma sílaba na primeira metade do verso, urgia eliminar outra na metade final, para que ele não ficasse de pé quebrado, contabilizando 13 sílabas. Para superar o impasse, omiti a preposição de no sobrenome do autor. No verso 10 original, duas ocorrências me soavam insatisfatórias: a contiguidade de três vogais nasais ("aprisionam em) e a oscilação gratuita entre presença/ausência de artigo definido em substantivos vizinhos (as pombas e estrelas). Por fim, no verso 11, parecia-me algo estranho falar de jaula decassílaba" em poema que não comportava tal medida. A atenuante, a haver alguma, é que eu pensara na produção do trio, na qual o decassílabo é abundante. Mas julguei a nova formulação do verso preferível por constituir-se, inclusive, em exemplo de isomorfia.

    Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac,

    que no Parnaso ecoa como voz primeira,

    já sabe que bem cabe num dodecassílabo

    o poeta que logrou vestir-se de palmeira:

    Antônio Mariano Alberto de Oliveira,

    que esculpe vaso em vaso exótica colmeia,

    inapelavelmente encaixa em doze sílabas

    Raïmundo da Mota Azevedo Correia.

    Jubilosos na métrica do próprio nome,

    querem deixar no chão as pombas e as estrelas,

    apostando que em jaula firme e alexandrina

    não haverá qualquer perigo de perdê-las.

    Adestram a voz do verso em plena luz do dia.

    Lá fora a fera rosna a fome da poesia.

    Em 2018, saiu a edição portuguesa de Desdizer. Aproveitei a ocasião e alterei um verso: em vez de querem deixar no chão as pombas e as estrelas, vão deixando no chão as pombas e as estrelas.⁵ Primeiro, o verso torna-se mais afirmativo, consoante a índole em geral assertiva da poesia parnasiana; segundo, melodicamente, houve ganho de uma rima interna (vão/chão), sem prejuízo da aliteração "chão/deixando; por fim, pareceu-me ritmicamente melhor a sequência tônica-átona-tônica-átona de vão deixando do que a tônica-átona-átona-tônica de querem deixar".

    Quando o texto me parecia razoavelmente reformulado com essas soluções, decidi, em 2019, arriscar algo mais radical: alterar o sistema rímico do texto, de modo a que todo o poema (como os parnasianos) fosse rimado, e não apenas em seus versos pares. Isso implicaria expressivas mudanças, pois inevitavelmente as novas palavras em fim de sete versos afetariam o sentido da versão anterior. Queria, entretanto, preservar o tom original, no que ele continha de uma, digamos, compreensiva ironia frente aos valores do Parnaso. Ironia, a meu ver, indispensável: não se trata de endossar esses valores; mas compreensiva, na tentativa de entendê-los por meio da utilização e testagem dos próprios mecanismos formais da poética parnasiana, sem o emprego da explícita e algo fácil irreverência que se contenta em ridicularizar a produção do período. Em suma, tentar discutir seus limites no âmbito daquilo a que o Parnasianismo se propôs, em vez de estigmatizá-lo por não ter sido tão modernista quanto deveria (?) ter sido.

    Detalhemos o projeto da nova configuração do texto. Os sete versos pares já apresentavam rima. A princípio, o problema, então, residiria nos demais. Na prática, porém, necessitei alterar uma rima em verso par, como se lerá. No conjunto, 10 versos sofreram modificação, entre mínima e radical. Permaneceram idênticos à versão de 2018 somente os de número 1, 2, 8 e 14. Na contabilidade geral, da primeira edição, de 2002, à atual, inédita em livro, constato que 30 versos diferentes já compareceram nas 14 linhas do soneto.

    Passemos às recentes mudanças. No verso 3, urgia uma rima para Bilac. No intuito de enfatizar a circunspecção parnasiana, escolhi fraque. No 4, anteriormente, o poema afirmava que Alberto lograra o intento de transmudar-se em palmeira; agora, ele se limita à tentativa.

    A estrofe 2, que se abre e se fecha com nome de poetas, sofreu, no verso inicial, pequena mudança: inseri trema em Mariano, conforme fizera em Raimundo, para destacar o metricamente necessário hiato. No miolo, alterações de maior vulto: em vez de esculpir vaso em vaso exótica colmeia, com a cacofonia de -ca col-, agora Alberto deposita em vaso (com toda a maliciosa ambiguidade: vaso grego? chinês? ou de outra natureza?) o produto que semeia. Ao vaticinar a sobrevivência do amigo Raïmundo contra a fogueira do tempo, a fala atribuída a Oliveira ajudou-me a eliminar outro incômodo: a reiteração metalinguística no tocante à métrica dos versos: na versão 2002, havia três incidências: alexandrino, doze sílabas, decassílaba. Na de 2019, somente uma: alexandrina, na estrofe 3.

    O imperativo de rimar alexandrina facultou uma formulação que considero superior à que existia antes desse constrangimento rímico, comprovando que os protocolos formais eventualmente podem, por que não?, abrir caminhos ao texto, ao invés de cerceá-los. Assim, no lugar de mais um verso metalinguístico (Jubilosos na métrica do próprio nome), surgiu, por demanda da rima, um outro, que incide, criticamente, nas certezas da realidade à prova de abalos do autor parnasiano (Poupados do terror que a vida dissemina).

    Para o poeta construir tal aparato de segurança, a negação de um mundo volúvel e volátil se impõe, mesmo que para isso se faça necessário investir com violência contra tudo que transgrida a ordem e ouse apontar para o campo do fugidio e do longínquo. Daí que pombas e estrelas não sejam mais, delicadamente, deixadas, e sim arremessadas ao chão. Daí, também, que o espaço noturno seja exorcizado, e com ele todos os seus fantasmas potenciais.

    Uma proposta similar – a de uma poesia diurna, para não causar sustos – comparece nos penúltimos versos da versão anterior – Adestram a voz do verso em plena luz do dia – e da derradeira: O trio adestra o verso à limpa luz do dia. Aqui, a prioridade foi solucionar os problemas técnicos da versão vigente. A voz do verso era quase pleonástica, sendo improvável algum verso mudo. O adjetivo plena é pouco expressivo, praticamente um lugar-comum em ocorrências similares. O imperativo métrico induzia, de modo artificioso, a condensar -tram a em uma única sílaba. O trio adestra eliminou a metricamente incômoda desinência plural, além de propiciar a aliteração dos encontros consonantais tr. A limpa luz substitui a anódina plena luz; isso fornece, creio, ganho de sentido, ao estampar o ideal de assepsia parnasiana, e possivelmente também ganho formal, mediante uma nova aliteração, agora em l.

    Contra tanta segurança autoimposta pelo trio, a fera faminta da poesia, incansavelmente, continua a assombrar os que apostam e creem num mundo excessivamente domesticado.

    Trio (versão 2019)

    Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac,

    que no Parnaso ecoa como voz primeira,

    já vê que ali bem cabe, de gravata e fraque,

    um poeta que tentou vestir-se de palmeira:

    Antônio Marïano Alberto de Oliveira,

    que deposita em vaso os versos que semeia,

    responde que o futuro esconde da fogueira

    Raïmundo da Mota Azevedo Correia.

    Poupados do terror que a vida dissemina,

    arremessando ao chão as pombas e as estrelas,

    declaram que na jaula justa e alexandrina

    não há de haver perigo ou plano de perdê-las.

    O trio adestra o verso à limpa luz do dia.

    Lá fora a fera rosna a fome da poesia.

    Os romances dos meus sonhos

    Antônio Torres

    Que é a vida? Uma ilusão,

    uma sombra, uma ficção;

    (...) toda a vida é sonho,

    e os sonhos, sonhos são.

    Pedro Calderón de la Barca, na peça A vida é sonho, encenada pela primeira vez em 1635.

    1

    Vida, sonho, ficção: eis a pauta desta história, cujas origens remontam a um tempo imemorial no melhor dos mundos para um romancista ter nascido: o meio agrário e ágrafo, chegado a longas estiagens, sem rádio e sem notícias das terras civilizadas, do qual este aqui vem. Ali, dormia-se para sonhar.

    Os homens, com a chuva, sinônimo de bonança; as moças, com os rapazes que foram embora e nunca mandaram dizer quando viriam buscá-las; elas e eles, os que ficaram, partilhavam a realização do mesmo desejo – o de viver numa cidade de luzes verdes e... Sonhos dourados! Já as mães sonhavam que os filhos se fossem mesmo, desde que as levassem.

    Em tal mundo, começava-se o dia a contar sonhos, não lhes faltando episódios aterrorizantes, protagonizados pelos fantasmas de parentes usurários que em vida haviam enterrado todo o dinheiro que possuíam em lugares tão bem escondidos que os seus herdeiros jamais suspeitariam onde ficavam. Desenterrá-lo se tornava uma pendência terrena a ser cumprida pelos mortos, para poderem descansar em paz. E nisso o sonho avançava, com os cangaceiros do inferno atrapalhando, com um barulho danado, todo o esforço de quem sonhava em pôr as mãos numa fortuna libertadora da alma penada da vez – e de encher a burra.

    Nunca se soube de um só desses relatos com final feliz. Invariavelmente todos terminavam com a vitória das forças infernais. Aí os galos cantaram, a alma e os seus perseguidores sumiram, e eu acordei. A previsibilidade dos desfechos não impedia a mesa do café da manhã de ser transformada num reino da fabulação, como a confirmar a teoria de Jorge Luís Borges de que os sonhos constituem o mais antigo dos gêneros literários.

    2

    Dos meus próprios já fiz dois romances. Um terceiro nasceu do sonho contado por uma santa da minha cabeceira chamada Carson McCullers, a memorável romancista de O coração é um caçador solitário e Reflexos num olho dourado, sem esquecermos a contista de A balada do café triste, cujo conto que dá título ao livro rendeu no cinema o desempenho mais arrasador de toda a brilhante carreira de lady Vanessa Redgrave. Mas o que me tirou do buraco num momento de crise, quando tinha uma ideia na cabeça e nenhuma frase na ponta dos dedos para tocá-la adiante, foi outro, intitulado O transeunte.

    Começa assim:

    A fronteira crepuscular entre o sono e a vigília era, neste momento, romana: fontes salpicando e ruas estreitas com arcos. A dourada e pródiga cidade de flores e pedra polida pelos anos. Às vezes, em sua semiconsciência, estava outra vez em Paris, ou entre escombros de guerra alemães, ou esquiando na Suíça e num hotel entre a neve. Algumas vezes, também, era um barbeiro na Geórgia, certa madrugada em casa. Era Roma esta manhã, na região sem tempo dos sonhos.

    Eis a chave de ouro que um romancista nordestino tomaria emprestada de quem Tennessee Williams – o de Um bonde chamado desejo, lembra? – disse o seguinte: Encontrei em seus escritos tamanha intensidade e nobreza de espírito como não tínhamos em nossa prosa desde Herman Melville. Logo, não seria um empréstimo qualquer.

    Fui em frente:

    Era outra a cidade, e outros o país, o continente, o mundo deste outro personagem, um homem que já não sabia se ainda tinha sonhos próprios.

    Assim nascia o meu 11º romance: com uma onírica epígrafe que levaria tal personagem à cama, na sua primeira noite de aposentado.

    Era São Paulo naquela noite.

    Na cidade onde seria capaz de suportar tudo, menos a falta do que fazer, ele revive os caminhos que o levaram a ela, embalado pela imagem da sua mãe a enfiar a linha pelo fundo de uma agulha, sem óculos, imaginando-a a ver o mundo através desse ínfimo buraco.

    Nessa noite, o oráculo daquele homem iria ser uma mulher cujo nome vira pela primeira vez na tela de um cinema, onde se refugiara para se refazer do choque de uma briga feia entre dois homens, da qual havia presenciado o fim, quando um deles enfiou uma faca na barriga do outro, que se estrebuchara de olhos esbugalhados, entalando-se em suas próprias ofensas, a urrar de dor – ai Jesus –, enquanto o agressor não se dera ao trabalho de puxar a enorme lâmina que enterrara no bucho do seu desafeto, escafedendo-se antes de ser agarrado pela turba que avançava, aos gritos.

    Passara-se isto numa bela tarde de uma cidade ensolarada chamada Recife, na qual acabara de chegar e vagava tranquilo até se sentir em solo perigoso. Desviando-se do alvoroço a passos rápidos, seguindo em sentido contrário à fuga do criminoso, tão sem destino quanto ele, o protagonista desta história acabou entrando num cinema, atraído pelo título do filme que ali estava passando: O coração solitário. Que logo iria descobrir ser uma adaptação de um romance – de quem, quem? Daquela que ele ia ler uma página na primeira noite da sua aposentadoria, para chamar o sono que o levaria a flanar por uma cidade de sonhos, onde de cara seria assaltado no metrô, a caminho de um cemitério no qual buscaria uma lápide com esta inscrição: Um mapa-múndi que não inclua a Utopia não é digno de consulta, pois deixa de fora as terras onde a humanidade está sempre aportando. Mas o que iria encontrar mesmo no túmulo lendário era um poema com um verso assim: Aqueles que choram por ele serão párias e os párias sempre choram. Mesmo se sentindo um deles, não deu a viagem por perdida. Passos adiante, veria um famoso bulevar da cidade virar um rio largo e profundo. E todos os seus edifícios se transformarem em árvores, com o curso do rio passando a abrir um clarão sem fim no meio de uma floresta indevassável. Uma revoada de pássaros a chilrear as Bachianas Brasileiras, de Villa-Lobos, tornaria o quadro diante dos seus olhos ainda mais espetacular. Numa tentativa de retorno à realidade, ele olharia para os pés, antes apoiados numa calçada, que não haveria mais. Em seu lugar, surgiria uma plataforma, da qual ele avistaria um portal com o letreiro Bem-vindo ao Oiapoque. Aqui começa o Brasil.

    De sonho em sonho ele fará um passeio com

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1