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Técnicas Cirúrgicas ilustradas: Monteiro e Starling
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E-book1.560 páginas10 horas

Técnicas Cirúrgicas ilustradas: Monteiro e Starling

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Sobre este e-book

Técnicas Cirúrgicas Ilustradas – Monteiro & Starling V.I é um e-book que apresenta os assuntos e procedimentos cirúrgicos habitualmente mais abordados nos estágios acadêmicos de cirurgia e no primeiro ano de residência médica, distribuídos em 28 capítulos, cerca de 800 páginas, enriquecido com 278 ilustrações.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de jul. de 2022
ISBN9788569815006
Técnicas Cirúrgicas ilustradas: Monteiro e Starling

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    Pré-visualização do livro

    Técnicas Cirúrgicas ilustradas - Ernesto Lentz de Carvalho Monteiro

    A FORMAÇÃO DO CIRURGIÃO GERAL E ESPECIALIZADO

    CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

    Existe hoje uma tendência à formação de cirurgiões superespecializados, sem que eles tenham tido treinamento em outras áreas da cirurgia, consideradas essenciais para a performance técnica que todo cirurgião deve possuir, ou seja, sem a formação na indispensável, discutida e pouco compreendida área da cirurgia geral.

    Mesmo se considerando que as residências médicas de cirurgia especializada exigem como pré-requisito a residência em cirurgia geral, deparamo-nos com o fato de que a maioria dos chamados serviços de cirurgia geral são, na realidade, serviços especializados, pois concentram suas atividades principalmente em cirurgia videolaparoscópica e da parede abdominal, sem contemplar seus residentes com o indispensável treinamento em anestesiologia, cuidados intensivos, urgências e emergências cirúrgicas, ginecologia e obstetrícia, cirurgia vascular, cirurgia torácica, cirurgia oncológica e tantas outras áreas. Quando muito, algumas residências propiciam curtos estágios de três ou quatro semanas nesses serviços especializados, que é insuficiente.

    Ora, o superespecialista isola-se em sua prepotência nos grandes centros médicos, porque ele sabe que, em situações difíceis, pode contar com ajuda imediata de competentes colegas de outras áreas. O mesmo não acontece com o cirurgião de pequenas comunidades. Este, o verdadeiro cirurgião geral, se expõe como o único responsável para operar um paciente com apendicite aguda, executar uma toracotomia de urgência em um trauma torácico, uma rápida via de acesso a um grande vaso em um trauma vascular, uma sutura de tendão ou mesmo uma operação cesariana, entre tantos exemplos que se poderia citar.

    Urge valorizar o cirurgião geral e repensar a sua formação.

    COMO ERAM NOSSOS MESTRES

    Um pouco de história da Cirurgia em Minas Gerais é importante para que se faça menção às características daqueles que nos tornaram cirurgiões e para que seus perfis sirvam de diretriz à nossa missão de ensinar.

    É bom lembrar que a prioridade dos antigos professores era o aluno. Não eram presos a esta formalidade chamada carga horária nem tinham na sua titulação acadêmica o objetivo principal de suas vidas. Viviam para ensinar. Pesquisavam também, seguindo o sagrado princípio de que o professor que não pesquisa trai a sua própria vocação. Em adendo acrescentamos: o professor que não dá aulas, que não tem tanto na cabeceira dos doentes quanto nas salas de aula sua prioridade como professor, também trai seus alunos.

    Alysson de Abreu (15/01/1906 – 06/05/1980) era nosso chefe na II Clínica Cirúrgica da Faculdade de Medicina da UFMG. Substituía o Prof. Luiz Adelmo Lodi (23/03/1894 – 02/01/1979), Catedrático, que à época ocupava a Diretoria da Faculdade. Éramos seguidores diretos da famosa escola cirúrgica de Oswaldo Borges da Costa (07/07/1916 – 14/07/2000), fundador do Hospital do Rádio, hoje Hospital Borges da Costa. Alysson era um completo cirurgião do sistema digestório. Transitava com desembaraço, desde os mais complexos tumores do esôfago às suas magistrais colectomias e amputações abdominoperineais do reto, sem se descuidar do que ele chamava de miudezas da proctologia, ou seja, as hemorroidas, as fístulas perianais, os cistos pilonidais, etc. Operava pela manhã no Hospital das Clínicas ou no Hospital Borges da Costa e, às tardes, levava seus residentes para o Sanatório Morro das Pedras, hoje Hospital Madre Tereza, então referência nacional em cirurgia de tuberculose, onde diariamente praticava toracoplastias, pneumectomias, drenagens pleurais, etc.

    Welerson Lourenço de Lima (16/12/1916 – 26/07/1976), ao lado de sua atividade cirúrgica no mesmo serviço, era professor de Anatomia na Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. Como cirurgião, era aficionado da cirurgia gástrica e da parede abdominal. Era também especialista em ortopedia, com isto lucrando alunos, monitores e estagiários, pela oportunidade de um aprendizado extracurricular em traumatologia.

    Wilson Luiz Abrantes, à época, recém-formado, acompanhava os mestres anteriormente citados, adquirindo invejável tarimba em cirurgia geral. Era Professor de Anatomia e dava às cirurgias intenso brilho, com suas dissecações minuciosas, especialmente quando operava hérnias e afecções cervicais, principalmente os bócios. Como chefe de equipe no Hospital de Pronto Socorro, se tornou um mestre na cirurgia do trauma. Tinha especial atenção com a cirurgia das vias biliares e pâncreas, bem como da hipertensão porta.

    No mesmo serviço, contávamos ainda com: Haroldo da Silva Pereira (1902 - 1980), cirurgião tarimbado e objetivo, conselheiro dos jovens; Paulo Adelmo Lodi, na cirurgia de cabeça e pescoço; André Esteves de Lima, na cirurgia cardiovascular e o não menos grande: Olendino Ferreira Prados (19/08/1919 – 03/12/1995), na cirurgia plástica. Todos esses mestres aumentavam as possibilidades dos estagiários de se introduzirem nesses ramos especializados da cirurgia.

    A II Clínica Cirúrgica proporcionava, portanto, uma situação privilegiada de aprendizado, onde as áreas principais eram intensamente vivenciadas pelo aluno. Além deste serviço, onde fomos formados, a Faculdade de Medicina da UFMG tinha outros de grande valor que merecem menção.

    João Baptista de Rezende Alves (24/06/1907 – 24/09/2002) chefiava a então Cátedra de Técnica Operatória, à qual se anexava uma enfermaria de cirurgia no Hospital da Cruz Vermelha. Cirurgião polivalente, de lendária habilidade, foi o precursor das residências de cirurgia geral em Belo Horizonte. Dele tive o privilégio e a honra de receber a coordenação da disciplina Técnica Operatória, hoje Técnica Cirúrgica.

    Rivadávia Versiani Murta de Gusmão (15/03/1893 – 27/09/1963), Catedrático de Clínica Cirúrgica I da Faculdade de Medicina da UFMG, tinha sua enfermaria na Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte, e mantinha intensa atividade, no mesmo estilo polivalente dos professores da época, auxiliado por assistentes famosos, como seu filho Rivadávia Hebster Gusmão, o Rivinha, e o ainda atuante José Sílvio Rezende, de excepcional talento cirúrgico, grande mestre da Cirurgia Torácica.

    Luiz Andrés Ribeiro de Oliveira (03/05/21 – 14/08/1977), cirurgião de extrema disciplina, Catedrático da Clínica Cirúrgica II e discípulo de João Baptista de Rezende Alves, deu especial ênfase à cirurgia torácica e à cardiovascular. Os diferentes serviços eram, assim, locais de aprendizado com as condições ideais para a formação do cirurgião geral, estruturados dentro de diretrizes que hoje se dissiparam em múltiplos serviços especializados.

    Faz-se mister lembrar a grande escola de cirurgia torácica, criada e dirigida no Hospital Júlia Kubitschek pelo extraordinário Cid Wildhagen Figueiras (04/09/1924 – 04/11/1973), que nos aceitava como estagiários, proporcionando-nos um aprendizado extra no complexo tratamento cirúrgico dos tuberculosos.

    Paralelamente aos serviços específicos de cirurgia, tínhamos acesso também a duas vertentes de conhecimento, de grande valor: a primeira, referente ao aprendizado de Anatomia, que entre nós foi de extrema importância, pois tivemos a oportunidade rara de contar com a diuturna ajuda de dois grandes mestres: o saudoso Prof. Otaviano Neves (13/08/1898 – 22/11/1961), prático e exigente, seguido pelo expoente internacional Prof. Libberato João Afonso Di Dio (07/05/1920 – 07/06/2004), falecido ainda em plena atividade, no vigor dos seus 84 anos e a segunda, surgida nas salas de necropsia, tanto na Faculdade de Medicina, com o mestre Luigi Bogliolo (18/04/1908 – 05/09/1981), como no Instituto de Medicina Legal, com vários legistas exponenciais. Aproveitando a oportunidade das necropsias, que não raro se estendiam a mais de doze horas, vários de nós tiveram a oportunidade de, ao lado de um enriquecimento na correlação anatomoclínica, aprimorar técnicas de dissecção.

    Cumpre acentuar que os grandes mestres citados eram, acima de tudo, médicos, na plenitude da palavra. Íntegros e honestos eram modelos de ética profissional, dando a todos nós um dos princípios básicos da medicina, que é o relacionamento médico-paciente-família.

    COMO ERA A FORMAÇÃO DO CIRURGIÃO GERAL

    Na década de sessenta, exceção feita a raros serviços, não existia no Brasil a estrutura atual, controlada pelo MEC, de Residência Médica e/ou Especialização, bem como regras bem definidas para a formação de professores. A preocupação do estudante de medicina, em sua maioria, era formar-se para o exercício pleno da profissão, em uma cidade do interior, para onde se dirigia logo após a graduação. Alguns poucos procuravam imediatamente o campo das especialidades, menos numerosas àquela época. Para este fim, tinham um único caminho: conseguir estágio em serviço especializado no Brasil ou no exterior, onde permaneciam, em média, de um a dois anos, dedicando-se principalmente a especialidades já consagradas, como ginecologia e obstetrícia, ortopedia, oftalmologia, otorrinolaringologia ou dermatologia, dentre outras. A maioria, entretanto, se direcionava à clínica geral ou à cirurgia geral, frequentemente abraçando as duas áreas, como os lendários médicos do interior. Após algum período de exercício profissional, quatro a cinco anos em média, muitos se decidiam pela especialização ou pela carreira universitária, procurando formação, como mencionamos anteriormente, em serviços especializados, no Brasil ou no exterior. É importante lembrar que muitos dos nossos professores, especialistas renomados em várias áreas, iniciaram suas vidas como clínicos ou cirurgiões do interior.

    Como nos formávamos cirurgiões gerais? A vocação para a cirurgia ou para a clínica se manifestava, na maioria das vezes, precocemente, despertada por exemplos de médicos na família, tradição, leituras e fatores subjetivos diversos. Outras vezes ela era mais tardia, agigantando-se em nossas mentes como uma paixão, levando-nos a passar noites em claro, ou seja, uma verdadeira obsessão. Tardia ou precoce, a vocação naturalmente direcionava o médico para aquele fim. Desde o início do curso médico, as disciplinas mais ligadas à cirurgia imediatamente mereciam nossa atenção especial. A Anatomia sempre ocupou lugar de destaque nos interesses do futuro cirurgião. Assim, procurávamos nos ligar ao professor, dissecando em horas vagas, ensaiando trabalhos e iniciando atividade docente como monitores, o que nos ligaria a esta importante disciplina ao longo do curso e para sempre.

    Entre as disciplinas cirúrgicas, a Cirurgia Ambulatorial sempre foi de fundamental importância para o treinamento. Como atachès dos serviços, nos ligávamos ainda precocemente aos ambulatórios de pequenas intervenções, realizando grande número delas, de complexidade crescente, começando com drenagem de abscessos e chegando até às cirurgias de fimose, biópsias de linfonodos profundos, etc. Iniciávamos aí um fato importante em nossa formação que era esta atividade extracurricular, intensificada nos períodos de férias escolares. Por volta do quarto ano, após cursar a cadeira de Técnica Operatória, já nos integrávamos a algum serviço de nossa simpatia, voluntariamente ou por convite especial, onde procurávamos aproveitar todas as chances de participação que nos apresentavam com especial ênfase ao acompanhamento de cirurgias diversas. Sempre que aparecia oportunidade, instrumentávamos os atos cirúrgicos e, em pouco tempo, nos tornávamos instrumentadores quase oficiais. Quando mais amadurecidos, atuávamos como segundo auxiliar. Progressivamente, conquistando espaço, íamos tendo oportunidade de fechar paredes, até chegarmos à realização de vias de acesso. Paralelamente a este treinamento, participávamos também das reuniões clínicas e do acompanhamento dos pacientes no pré e pós-operatório, iniciando assim o indispensável amadurecimento em clínica cirúrgica.

    Como já dissemos, não existiam as residências médicas. No sexto ano, entretanto, os hospitais contratavam os estudantes para a função de interno residente, das diferentes clínicas. Residindo no hospital, as oportunidades se abriam e, ao final do curso, era surpreendente o nosso aproveitamento, superior, penso eu, ao da maioria das atuais residências. Éramos realmente cirurgiões gerais, capazes de assumir empregos de cirurgião e exercer, em qualquer comunidade, a importante função de cirurgião geral. Era um sistema pouco formal e dependia, é claro, de bons chefes. Trazia, entretanto, excelentes resultados, considerando-se principalmente o menor número de alunos, o que propiciava um melhor relacionamento no trinômio aluno/professor/paciente.

    A FORMAÇÃO DO CIRURGIÃO HOJE

    Existe uma sequência de ensino e aprendizado com etapas bem definidas que não podem ser suprimidas. São elas: ensino de cirurgia para o médico generalista no curso de graduação; residência em cirurgia geral, destinada à formação do cirurgião geral e pré-requisito para a residência em cirurgia especializada (pelo menos um ano).

    CIRURGIA NO CURSO DE GRADUAÇÃO

    Embora seja louvável e recomendável a participação do aluno em atividades extracurriculares, em programas de monitoria, estágios e cursos, entre outros, não podemos admitir que o estudante dependa, como no passado, dessas atividades para tornar-se um profissional competente na área que escolher. As faculdades de medicina têm o dever e a obrigação de oferecer um currículo consistente aos seus alunos, recursos humanos e materiais adequados à formação do médico que preencha as necessidades da comunidade. É fundamental que as escolas médicas dêem prioridade absoluta ao curso de graduação, investindo em recursos materiais e selecionando professores que, além da competência técnica, tenham vocação para ensinar. Um curso de medicina não é apenas um passaporte para o aluno aprender medicina em residências médicas ou em estágios informais, até porque as oportunidades de residência médica em serviços credenciados pelo MEC são oferecidas a menos de 20% dos recém-formados. Os outros, por opção ou falta de oportunidades, contam para seu exercício profissional apenas com o que aprenderam na Faculdade. Uma escola de medicina tem, portanto, em seu curso de graduação, uma responsabilidade muito maior com a formação do médico generalista, isto é, aquele profissional completo que saiba atender com carinho e tratar com competência aos pacientes portadores dos problemas de saúde da comunidade a que pertencem, que saiba dar socorro às emergências clínicas e cirúrgicas, que conheça propedêutica na palma da mão, na criança e no adulto, sabendo conduzir um pré-natal e um trabalho de parto, cuidar de um recém-nascido, tratar uma desidratação aguda na infância, identificar com segurança um sopro cardíaco, os sinais de uma insuficiência cardíaca ou de um edema agudo do pulmão, os achados abdominais palpatórios em uma apendicite aguda, a ausculta pulmonar em uma pneumonia, identificar as condições predisponentes para uma embolia pulmonar e uma infinidade de outras situações clínicas e cirúrgicas. Em termos de habilidades cirúrgicas, que diploma é este que uma faculdade coloca nas mãos de um estudante, que é incapaz de cateterizar uma veia, drenar um abscesso, drenar um tórax, tratar um pneumotórax, conduzir um trabalho de parto, incluindo a realização de uma cesariana, controlar um trauma vascular até que o paciente tenha acesso a uma equipe especializada e tantos outros exemplos?

    A pós-graduação, formando especialistas e professores, é missão precípua das universidades, mas não pode existir em detrimento dos cursos de graduação. No momento em que publicamos este livro, ainda existe uma inversão de valores na Universidade brasileira. Há um descaso total para com a atividade docente e exagerada valorização para a titulação acadêmica de professores. O que é mais perene e útil para a sociedade: um trabalho científico de pouca expressão, encomendado para uma tese ou um médico bem formado? Os hospitais ditos universitários passaram a se reger pelas regras do SUS, nem sempre as mais adequadas para o ensino.

    Para que uma pós-graduação, em qualquer nível, seja eficiente, é imprescindível que o candidato seja um médico bem formado. Não se pode receber para residente de cirurgia geral, primeiro passo para qualquer especialização cirúrgica, um médico que não conheça propedêutica, que não saiba examinar pacientes, que não saiba interpretar exames complementares, que não conheça as regras de antissepsia, que não saiba comportar-se em um centro cirúrgico ou que não domine técnicas básicas de cirurgia e outras habilidades que devem ser da responsabilidade dos cursos de graduação.

    Sendo a terapêutica cirúrgica um recurso útil a todas as especialidades e sendo o médico generalista obrigado a dominar várias habilidades cirúrgicas, é recomendável que todos os períodos do curso médico contenham disciplinas ligadas ao aprendizado cirúrgico. A solução de continuidade, atualmente encontrada na maioria dos currículos das faculdades de medicina favorece o esquecimento de habilidades já adquiridas.

    A anatomia é assunto por demais complexo e importante, de forma que a extensão de seu estudo pelos dois primeiros anos do curso médico, certamente favoreceria seu aprendizado. Consideramos indispensável, para aquisição de habilidades cirúrgicas, a utilização de peças anatômicas preparadas (ossos e órgãos), bem como a disponibilização de pelo menos um cadáver para dissecção para cada quatro alunos. A associação do estudo anatômico com as vias de acesso cirúrgicas e os cuidados em uma dissecção são fundamentais para a formação não só do médico generalista, como também do cirurgião geral e especializado. Dentro de uma recomendada filosofia de integração entre os ciclos básico e profissional, é importante que os alunos possam ter acesso, o mais precocemente possível, a pacientes com afecções como as hérnias, os bócios e mesmo doenças vasculares, onde anatomia e terapêutica cirúrgica estão intimamente ligadas. Para uma melhor compreensão não só dos aspectos anatômicos, mas também dos aspectos patogênicos de uma doença e para melhor desenvolvimento de habilidades cirúrgicas, a anatomia deve ser estudada do ponto de vista sistêmico e regional.

    Os alunos também devem ter acesso a aulas práticas em centros cirúrgicos, visando ao treinamento nas técnicas de instrumentação cirúrgica e em todos os procedimentos cirúrgicos básicos especialmente as técnicas de sutura nos diferentes tecidos, empregando cadáveres, animais de experimentação, manequins, materiais adequados e dispositivos especiais. Em disciplinas de cirurgia ambulatorial, os alunos iniciariam o treinamento in anima nobile, realizando pequenas intervenções de complexidade crescente.

    Aulas de cirurgia em hospitais e prontos socorros são essenciais para introduzir aos alunos o atendimento global do paciente cirúrgico, desde seu internamento até a alta, tanto nos casos eletivos como nas urgências e emergências cirúrgicas, obtendo assim, além do aprendizado em clínica cirúrgica, a oportunidade de participar, como auxiliares, em cirurgias maiores.

    RESIDÊNCIA EM CIRURGIA GERAL

    A especialidade cirurgia geral tem sido objeto de muitas controvérsias referentes ao conceito que dela se faz e ao seu papel na terapêutica cirúrgica. Existem mesmo aqueles que acham que a cirurgia geral acabou como especialidade. Em alguns centros, chega-se mesmo a eliminar-se o pré-requisito da residência em cirurgia geral para a formação do cirurgião especializado. Situaremos o problema por partes:

    1. Se nas grandes cidades existem especialistas disponíveis em todas as áreas, até mesmo com plantão de corpo presente em vários hospitais, a mesma situação não ocorre em centros menores ou na periferia dos grandes centros. Além de não ser interessante para um especialista ficar à disposição de um hospital para raras eventualidades, tal disponibilidade resultaria em ônus financeiro insuportável para as instituições. Assim, é indispensável que, para essa situação, presente na maioria das cidades brasileiras, exista profissionais aptos para atender às urgências e emergências cirúrgicas, representadas pelos diferentes casos de abdome agudo, pelos traumas em suas múltiplas variedades, principalmente a lesão vascular, frequentemente mortal, sem contar os casos eletivos que podem ser resolvidos com competência pelo cirurgião não especializado, como as hérnias, as varizes, as histerectomias, as ressecções intestinais, as neuro e tenorrafias primárias, e muitos outros exemplos. É como o clínico geral que não precisa de um especialista ao seu lado para tratar uma pneumonia, uma desidratação aguda, um hipotireoidismo ou fazer o controle da fase aguda de um glaucoma, de uma embolia pulmonar, de um enfarte agudo do miocárdio, entre outros. Existe, portanto, espaço e necessidade para o especialista em cirurgia geral.

    2. O cirurgião especializado tem que, necessariamente, passar pela cirurgia geral. Basta observarmos a técnica inadequada daqueles especialistas que não alisaram os bancos da cirurgia geral. Não têm o desembaraço nem a destreza necessários quando o seu ato cirúrgico extrapola seus estreitos limites. É o caso do obstetra que se perde quando encontra uma alça intestinal em seu caminho, do ortopedista que se depara com lesão associada de vasos ou de nervos, do especialista em cirurgia videolaparoscópica que se amedronta na vigência de uma conversão para uma via de acesso convencional, do flebologista que, ao dissecar tributárias da veia safena magna, não sabe o que fazer ao deparar-se com uma hérnia femoral, do cirurgião plástico que diante de uma abdominoplastia abre inadvertidamente a cavidade abdominal, além de outros inúmeros exemplos, sem falar nos diferenciados cirurgiões de transplante, que obrigatoriamente têm que dominar técnicas sofisticadas de todas as áreas.

    3. O cirurgião do trauma, aquele que dá plantão nos hospitais de pronto socorro, talvez represente o especialista que mais necessite de uma formação abrangente, por que nos momentos críticos é ele que, na maior parte das vezes, tem que resolver, solitariamente, problemas afeitos a todas as especialidades cirúrgicas.

    Fica patente, pelo exposto, que a especialidade cirurgia geral existe, é indispensável para a maioria das comunidades e representa etapa indispensável na formação do cirurgião especialista.

    COMO FORMAR O CIRURGIÃO GERAL

    Não existem mais os antigos serviços de cirurgia, como aqueles descritos no tópico Como Eram Nossos Mestres, onde praticamente todas as especialidades da época tinham um representante na mesma enfermaria. A tendência atual, irreversível, é a divisão da cirurgia em vários setores, dia a dia mais numerosos, considerando-se o grande avanço tecnológico tanto em técnicas como em equipamentos, tornando praticamente impossível que um cirurgião domine todas as especialidades cirúrgicas, obrigando-o, por opção amadurecida, a dedicar-se a um determinado setor, tornando-se expert na área escolhida. Continuará, entretanto, existindo espaço para o cirurgião geral, aquele que, sem ser ginecologista ou obstetra, saiba diagnosticar e tratar uma prenhez ectópica; sem ser cirurgião vascular saiba executar uma via de acesso a uma artéria subclávia lesada; sem ser cirurgião de tórax saiba tratar um pneumotórax hipertensivo; sem ser coloproctologista, seja capaz de realizar uma colectomia, e tantos outros exemplos. Fica assim bem definida a necessidade de se montar os programas de residência em cirurgia geral de forma multidisciplinar.

    Daremos a seguir algumas normas que julgamos indispensáveis para qualquer programa de residência em cirurgia geral:

    1. Subordinação a uma chefia única, que poderia ser o Coordenador do Departamento de Cirurgia da Instituição ou do Departamento de Residência Médica.

    2. Presença de instrutores competentes, dedicados, identificados com o ensino, disponíveis para assistência em tempo integral aos residentes em todas as suas atividades. É importante acentuar que o residente, em virtude de estar em formação, não é o responsável direto pelo atendimento, devendo manter com seu instrutor a relação professor-aluno. Residente não deve ser mão de obra de baixo custo. Ele é o auxiliar de um titular do atendimento, que deverá estar sempre ao seu lado, por problemas de ordem ética e legal. Serviços que deixam os residentes respondendo por atividades diversas, sem preceptoria, não devem ser credenciados.

    3. Residentes com dedicação integral e exclusiva ao programa, isto é, sem direito a qualquer outra atividade médica fora do horário de trabalho. A já esquecida moradia no hospital é altamente desejável, pois identifica o residente com a instituição, facilita o contato a qualquer momento e permite uma efetiva participação de todos nas mais diferentes atividades, ainda que em dado momento ela não seja uma obrigação.

    4. Remuneração suficiente para sustento básico do residente, incluindo moradia, alimentação, transporte, assistência médica, vestuário hospitalar e lazer.

    5. Descanso semanal e férias anuais, de acordo com as leis vigentes.

    6. Estágio nas diferentes especialidades cirúrgicas, anestesiologia e UTI (Unidade de Terapia Intensiva), com os residentes cumprindo nestes estágios a mesma programação específica de cada serviço, não sendo apenas um mero observador.

    7. Áreas de atuação: anestesia, pronto socorro, UTI, cirurgia do sistema digestório, cirurgia de cabeça e pescoço, cirurgia vascular, cirurgia infantil, cirurgia oncológica, cirurgia torácica, cirurgia ginecológica e obstétrica e cirurgia urológica.

    8. Avaliação periódica, com exigência de horas extra, caso o residente não tenha adquirido as habilidades mínimas programadas¸ evidentemente obedecendo aos limites legais.

    9. Realização de uma grande reunião semanal, que é de grande importância, como instrumento de integração, enriquecimento cultural e atualização de protocolos e rotinas, ocupando uma tarde toda, com a presença de chefes e residentes, para apresentação de casos, discussão de condutas, críticas e sugestões em todos os níveis, com espaço para discussão de artigos de revistas. Esta prática além de unir o grupo, fiscaliza condutas, cobra estudo e traz mais responsabilidade ao residente.

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    O Cirurgião Geral ainda é o mais útil, entre os especialistas em cirurgia, para o atendimento às comunidades menores e mesmo às grandes cidades, onde a maioria dos pacientes não tem acesso a serviços especializados. Sua formação deve ser cuidadosa, não só pelo grande espaço que ocupa na assistência médica como especialidade, como também por ser a base na formação do cirurgião especializado, cujas residências obrigatoriamente deverão ter como pré-requisito a residência em cirurgia geral. Sem esta formação, o especialista fica limitado e dependente, expondo seu paciente a riscos indevidos.

    Pela sua importância e exigência técnica, o cirurgião geral necessita ter formação completa, o que demanda tempo mais prolongado, sendo três anos o ideal para que todas as áreas básicas sejam eficientemente contempladas.

    É comum, nos editais de residência médica em cirurgia especializada, constar como pré-requisito um ano de cirurgia geral. Entretanto, um ano de formação em cirurgia geral dá ao médico certa habilidade na realização de pequenos procedimentos, como uma traqueostomia, uma dissecção de veia ou mesmo a retirada de pequenos tumores de pele ou tecido subcutâneo. Isso seria suficiente em especialidades como cirurgia oftalmológica, neurocirurgia ou otorrinolaringologia, onde o cirurgião especialista não fará procedimentos como a abertura da cavidade abdominal ou torácica. Para estes, contudo, recomenda-se pelo menos 2 anos na residência em cirurgia geral, mas considera-se que a boa formação em cirurgia geral, durante três anos, facilita enormemente o aprendizado das especialidades cirúrgicas, permitindo, conforme a área, formar um especialista seguro.

    PONTO DE VISTA

    A terapêutica cirúrgica tende a se subdividir cada vez mais. O superespecialista é muito importante, mas jamais ocupará o espaço do cirurgião geral.

    ÉTICA MÉDICA E CIRURGIA

    INTRODUÇÃO

    Regula-se a responsabilidade médica por três foros distintos, a saber: administrativo, civil e penal. A responsabilidade administrativa, afeita aos casos extrajudiciais, pode ser apurada em relação às posturas éticas ou contratuais. O compromisso ético é regulado pelos Conselhos Regionais de Medicina, visando especialmente à composição moral da classe, sendo dotada até de poder de veto sobre a atividade profissional, conforme elenco de penalidades exposto no Quadro 3.1. Os deveres contratuais são averiguados internamente pelos empregadores, através de inquéritos, sindicâncias (Enunciado 77 do Tribunal Superior do Trabalho) ou processos administrativos, com fundamento na legislação trabalhista ou nos estatutos de servidores.

    A responsabilidade civil, ligada ao direito privado, impõe o compromisso de ressarcir os danos produzidos. A responsabilidade penal é o compromisso profissional maior, não ligado apenas ao paciente, ou à classe médica, mas a toda a sociedade. Constitui, pois, elemento de Direito Público que, por meio da repressão ou prevenção, tenta evitar a ocorrência de fatos lesivos aos bens jurídicos dos cidadãos. Não visa apenas beneficiar à vítima, mas reprimir e recuperar o culpado, em benefício de toda a sociedade.

    Quadro 2.1

    Penalidades Éticas

    A. Advertência confidencial, em aviso reservado;

    B. Censura confidencial, em aviso reservado;

    C. Censura pública, em publicação oficial;

    D. Suspensão do exercício profissional por até 30 dias;

    E. Cassação do exercício profissional.

    Fonte: Artigo 22 da lei 3.268/57

    Interessa, ao presente capítulo, a Responsabilidade Ética, que é regulada pelo Conselho Regional de Medicina (CRM), por intermédio da Resolução 1.246, de 8 de janeiro de 1988, que se constitui no Código de Ética Médica (CEM), estatuto que, em 145 artigos, estabelece as posturas exigidas aos profissionais médicos, para o adequado exercício da profissão.

    GENERALIDADES

    As decisões médicas, frequentemente, demandam conflitos entre os membros de uma mesma equipe e até entre as diversas especialidades. A arte de frear ímpetos intervencionistas, bem como, diante de cada caso, de pensar e refletir com fundamentação científica ou vivência prática constitui-se num diferencial que deve ser almejado por todos.

    A avaliação do risco cirúrgico deve ser feita com bastante critério, para que se possa decidir sobre a indicação da operação e a técnica a ser empregada. Muitas vezes, a decisão de não operar constitui-se em maior sabedoria do que operar. A relação custo/benefício deve ter um resultado sempre favorável ao paciente. As intervenções cirúrgicas, pelos seus custos emocionais, biológicos e até materiais, devem ser indicadas com critérios bem fundamentados.

    Operar indivíduo canceroso, caquético, em más condições gerais ou alguém com quadro sindrômico, sem precisão diagnóstica, merece atenção especial. O nível técnico dos modernos métodos propedêuticos raramente exige a realização de laparotomia exploradora. A tendência atual é de que a intervenção seja sempre terapêutica. Naturalmente, existem as situações especiais. As intervenções operatórias têm seus momentos certos. Retardar ou antecipar injustificadamente pode prejudicar o paciente, gerando responsabilidades éticas e legais ao médico assistente.

    O acompanhamento clínico e laboratorial do paciente, quase sempre, torna os procedimentos e resultados mais eficazes. Uma pessoa jovem, com dor na fossa ilíaca direita, com leucograma no limite da normalidade, pode mostrar alterações no mesmo exame seis horas mais tarde e, com o auxílio do exame clínico, pode-se concluir o diagnóstico e decidir-se pela cirurgia. Outro dado que se utiliza frequentemente é a drenagem da sonda nasogástrica, nos pacientes com semiobstrução intestinal. Se após três horas o volume aspirado não se alterar, ou aumentar, indica-se a cirurgia. Esses dois exemplos enfatizam a importância da atenção do médico ao observar o paciente em intervalos curtos, o que permite o diagnóstico em tempo hábil e a intervenção no momento oportuno.

    A úlcera perfurada exige cuidados médicos especiais. Sabe-se que, ao período agudo de choque, decorrente da agressão do suco gastrointestinal ao peritônio, segue-se uma fase de abrandamento dos sintomas, com instalação de peritonite generalizada. O exame clínico, bem conduzido, evita que este estágio seja atingido, prevenindo-se, por conseguinte, índices maiores de morbidade e mortalidade.

    Na cirurgia videolaparoscópica têm ocorrido complicações, frequentemente graves, em consequência de equipamentos inadequados ou da inexistência de aparelhagens indispensáveis, como recursos de radiografia ou exame de congelação, no per-operatório. A ausência de preceptor, durante operações feitas por médicos residentes, constitui falta imperdoável. A videolaparoscopia, com gravação de imagens do procedimento cirúrgico, permite a divulgação a terceiros, daquilo que, antes, era prerrogativa sigilosa da equipe cirúrgica.

    O paciente submetido à cirurgia convencional ou videolaparoscópica merece atenção especial no pós-operatório imediato. Deve-se agir prontamente, frente a qualquer anormalidade na evolução clínica, evitando-se alta precoce e, consequentemente, o agravamento de uma intercorrência em curso no domicílio.

    Nas colecistectomias, sempre que houver perfuração da vesícula, deve-se fazer cultura da bile. O ideal seria que este exame fosse feito de rotina, o que infelizmente não ocorre. Esse procedimento, na eventualidade da presença de coleção líquida, sub-hepática ou subfrênica, no pós-operatório, seria um excelente guia para a terapêutica. Óbitos, sem o cumprimento desses cuidados, podem responsabilizar o médico assistente.

    É importante refletir sobre a formação de novos cirurgiões, os quais se dedicam muito à videolaparoscopia, sem o correspondente preparo para as técnicas convencionais. Numa intercorrência, com necessidade de conversão da via de acesso, esse cirurgião despreparado em técnicas convencionais certamente terá dificuldades, causando prejuízo ao paciente.

    TEMAS ESPECÍFICOS

    Nesse tópico, serão discutidos temas importantes como atualização médica, técnica nova-modernidade, sigilo profissional, práticas ilícitas, danos culposos, iatrogenias, delegação de trabalhos médicos, definição de personagens, greve, passagem de plantões, práticas consentidas, abandono de paciente, omissão de socorro, conferência médica, eutanásia, documentos médicos, transplante de órgãos, honorários médicos, pesquisa médica, publicidade, notificação de riscos, capacidade de decidir e identificação do paciente.

    ATUALIZAÇÃO MÉDICA

    O Artigo 5º do CEM determina o compromisso de permanente atualização científica, estabelecendo ao médico a obrigação de manter-se informado sobre os avanços da ciência. A estagnação e o obsoletismo constituem flagrante negligência. Há que se conciliar o trabalho em campo, com os serviços de retaguarda.

    TÉCNICA NOVA-MODERNIDADE

    A revolução tecnológica tem propiciado a criação de instrumental médico jamais imaginado. A automação, aliada à informática, tem permitido realizar intervenções cirúrgicas com microcâmeras, restringindo as vias de acessos a meros orifícios. Já se tornou realidade a execução de operações intercontinentais, ou seja, com o cirurgião em um continente ou país e o paciente em outro, através da transmissão de imagens. Essas inovações devem ser bem recebidas, mas o entusiasmo não pode comprometer a segurança do paciente. A rigidez protocolar na implantação das novidades deve ser respeitada. Não se justifica conquistar o título de campeão da vanguarda se a realidade dos resultados não puder ser publicada e, sobretudo, não acompanhar os resultados estatísticos da comunidade científica. Na escolha de novas técnicas, rumo à modernidade, não se pode preterir precipitadamente, os procedimentos clássicos, que por vezes, são antigos, mas não obsoletos. Frequentemente o antigo é revivido para salvar o novo.

    O avanço científico tem feito surgir novos procedimentos, como as cirurgias para cura da miopia, as neurotripsias para tratamento de ejaculação precoce, os procedimentos de alongamento peniano para correção de disfunção sexual, os procedimentos plásticos para transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastias e neofaloplastia, e os procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários. Esses procedimentos devem obedecer às normas de pesquisa envolvendo seres humanos, aprovadas pelo Conselho Nacional de Saúde (Resolução nº 196/96) e o contido no CEM.

    As telas sintéticas, cada vez mais utilizadas no reparo das hérnias recidivadas e incisionais, apresentam características peculiares. Sabe-se que essas próteses podem retrair até mais de 20% em sua área, após implante no paciente. Essa porcentagem está na dependência, inclusive, da sua re-esterilização, o que não é raro. São necessários estudos mais dirigidos, mormente nos países mais pobres, onde a prática de reaproveitamento de sobras de próteses é uma realidade.

    A videolaparoscopia, com inúmeras indicações bem sucedidas, deve ser vista com reservas nas cirurgias oncológicas, onde a excelência tecnológica está longe de superar a habilidade do tato humano. Sua utilização na cirurgia de hérnias inguinais merece atenta reflexão, visto que mesmo os trabalhos que apresentam resultados positivos têm mostrado grandes inconvenientes. A vídeo-cirurgia exige anestesia geral, grampeadores e trocáteres, encarecendo sua execução, por vezes, de forma proibitiva.

    Na área de gastroenterologia tem-se usado o plasma de argônio, na ressecção da mucosa distal, no esôfago de Barrett. As complicações são frequentes e os resultados devem ser mais bem avaliados. São relatadas complicações do tipo ulcerações e estenoses, dentre outras. Há que se avaliar o novo epitélio que vai revestir a área mucosa destruída, sem se esquecer de que é necessário confeccionar, previamente, uma válvula antirrefluxo eficaz, com o objetivo de impedir agressões ao novo epitélio. O mesmo acontece nas mucosectomias endoscópicas nos tumores superficiais do estômago. É sabido que estes tumores dão metástases em 10% dos casos e, muitas vezes, essas metástases não são detectadas pelos exames por imagem, no pré-operatório, mesmo nos serviços altamente diferenciados do primeiro mundo. Uma ressecção, acompanhada de linfadenectomia regional, tem maior chance de sucesso que uma mucosectomia endoscópica.

    A esplenectomia por videolaparoscopia no tratamento de doença hematológica perde espaço quando se considera a possibilidade de baços acessórios remanescentes. A destruição de plaquetas transfundidas no pré e no peroperatório, nas cirurgias mais prolongadas, tem como consequência hemorragia copiosa e conversão da via de acesso laparoscópica para a convencional.

    SIGILO PROFISSIONAL

    As posições doutrinárias quanto ao segredo médico dividem-se, classicamente, em três correntes distintas. A absolutista preconiza silêncio total, em qualquer eventualidade. A abolicionista é contrária a qualquer forma de segredo e a do grupo intermediário aceita o segredo como regra, mas permite exceções, desde que, para salvaguarda de um interesse maior. Tanto o CEM quanto o Código Penal Brasileiro abraçaram a doutrina intermediária, talvez espelhando o próprio pensamento de Hipócrates que, há quatrocentos anos antes de Cristo, já assentia em conservar, em segredo, o que não fosse necessário revelar. O tema é regulamentado nos artigos 102 a 109 do CEM e pela Resolução 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina (CFM). O sigilo é a regra, a quebra, a exceção.

    O CEM e as legislações civis e penais são unânimes na obrigação da guarda do segredo, até diante das requisições judiciais. Nesses casos, o médico deve comparecer em juízo e justificar sua obrigação de silêncio. Esse compromisso, rigorosamente, deveria ser estendido aos prontuários, folhas de observação clínica e fichários, que se constituem na síntese expressa das revelações do paciente a seu médico, daí a tutela legal. O prontuário médico, como matéria, pertence ao médico; como essência, ao paciente.

    Qualquer exposição do pensamento médico, seja oral, por escrito ou por meio de registros clínicos, só atende à lei se houver autorização expressa do paciente, justa causa ou dever legal. Mesmo as publicações científicas devem evitar lançamentos de dados que permitam a identificação do paciente.

    PRÁTICAS ILÍCITAS

    Nesse tópico, estudam-se diversas transgressões da lei, praticadas como atos médicos. O CEM veta a prática médica, mesmo que de forma correta, por profissionais graduados, mas não registrados no CRM. No caso do incriminado não ser médico, o ato não se tipifica como falta ética, mas como delito criminal. A apuração deste fato extrapola a competência do CRM, constituindo-se em dever do Estado, por intermédio do seu poder de polícia. Configuram-se como atos criminosos, que podem ser praticados pelos médicos, no exercício profissional, os abortamentos ilegais, tratamentos médicos arbitrários, quebra de sigilo profissional, omissão de socorro, atestados falsos e assédio sexual, dentre outros.

    DANOS CULPOSOS

    O artigo 29 do CEM regulamenta a prática de condutas danosas ao paciente, quando decorrentes de práticas culposas, o que caracteriza o chamado erro médico. Entende-se por erro médico à intercorrência negativa, por culpa do profissional. A sociedade, frequentemente, confunde erro médico com mau resultado ou com a chamada intercorrência médica. Para se caracterizar uma situação como erro médico não basta apenas um mau resultado; há que se comprovar a culpa. O mau resultado sem culpa não é erro médico, mas um fato escusável, isto é, um incidente que pode ocorrer independentemente de todo zelo e diligência. Essa situação há que encontrar guarida na literatura médica, por meio do relato da possibilidade daquele insucesso, entre as complicações naturais e previsíveis do procedimento. Cumprindo-se, rigorosamente, as recomendações técnicas, o mau resultado será reconhecido como limitação da ciência e não mera fraqueza do homem ou da Instituição. Nessa condição, não se justifica sanção ética, penal ou indenizatória.

    A culpa é o elemento diferenciador da justificativa de punição e se configura pela ocorrência de pelo menos um de seus três pressupostos básicos: negligência, imprudência e imperícia. Negligência é a falta de cautela, a displicência no trato dos atos médicos. Imprudência é uma ação imprópria, por excesso de confiança ou prepotência e, até mesmo, por açodamento, onde o profissional pratica uma atitude temerária. Imperícia não é propriamente o uso de técnica equivocada ou obsoleta, mas, fundamentalmente, o exercício profissional sem a adequada habilitação. Por isso, em casos de manobras erradas ou técnicas obsoletas, para se evitarem polêmicas, os advogados tendem a denunciar a situação como negligência profissional, o que por si só caracterizaria culpa, por irresponsabilidade no aperfeiçoamento ou na atualização, exaurindo, assim, debates desnecessários.

    Na caracterização do erro médico, dispensa-se a necessidade de ocorrência de dolo ou vontade do profissional. Basta que o mau resultado decorra de uma das impropriedades acima elencadas. O delito configura-se como crime culposo. Na evidência de uma atitude voluntária, caracteriza-se um ato doloso. Em relação à responsabilidade ética, o paciente ou seu representante, pode fazer denúncia ao CRM. A apuração inicia-se através de Sindicância. Se nesta for reconhecido algum fundamento, evolui para Processo Ético Profissional (PEP). A defesa pode ser feita com apoio de advogado ou pelo próprio profissional. A condenação nesse foro implicará nas penalidades dispostas no artigo 60 do Código de Processo Ético (Quadro 2.1).

    IATROGENIAS

    As iatrogenias podem ser escusáveis ou culposas. São escusáveis quando independem da conduta médica. O mau resultado se estabelece apesar de todo cuidado e zelo praticados. Assim, não se justifica imputação de responsabilidade. As iatrogenias culposas são decorrentes de atos levianos, caracterizados por imperícia, negligência ou imprudência do médico.

    Podem constituir iatrogenias escusáveis, por exemplo, uma das duas seguintes situações: a biopsia hepática percutânea, para a qual todos os cuidados pré-operatórios foram tomados e o paciente apresenta sangramento grave, que exija tratamento cirúrgico por meio de laparotomia; a infecção de uma ferida cirúrgica, numa intervenção com os cuidados de praxe, infecção essa que pode levar a uma série de complicações como septicemia, hérnia incisional, deformidade da parede abdominal, etc.

    Infelizmente, o Brasil é um país em desenvolvimento, onde frequentemente não se utiliza, rotineiramente, a melhor técnica, por limitação de recursos. Não se pode responsabilizar o médico por resultados adversos, em decorrência de deficiência no hospital em que trabalha, especialmente nas instituições públicas. A recusa de atendimento ao paciente, por carência material, estabeleceria o caos, sobretudo entre a população mais carente, além de configurar omissão de socorro. O profissional médico, consciente das fragilidades estruturais, tem acrescido às vicissitudes de seu árduo cotidiano, o conflito do impacto social. Não raro é envolvido em denúncias judiciais ou administrativas, onde, ao final, às duras penas, consegue demonstrar que na verdade é também mais uma vítima do sistema social.

    Outros exemplos de iatrogenias escusáveis: nas cirurgias de tireoide por bócio multinodular ou com cistos que ocupam toda a glândula, opta-se por uma tireoidectomia total, que é sempre acompanhada de hipotireoidismo, o que exigirá a reposição de hormônio tireóideo até o final da vida do paciente; nos bócios tóxicos difusos, a ressecção em excesso pode levar a um hipotireoidismo, mas se a ressecção for insuficiente haverá permanência do hipertireoidismo; nas ressecções radicais dos tumores da tireoide pode haver ablação das paratireoides ou lesão do nervo recorrente; a impotência sexual masculina após as ressecções abdominoperineais do reto ou prostatectomias radicais é frequente, assim como a perda da libido e o aparecimento de sinais de feminilização nos pacientes submetidos à orquiectomia para controle hormonal dos tumores avançados da próstata.

    As Iatrogenias culposas podem comprometer o médico e a Instituição, uma vez que esta é responsável solidária pelos atos de seus prepostos. A Instituição hospitalar deve zelar pela seleção de seus profissionais, seja pelo interesse na saúde de seus usuários, seja porque tem responsabilidade solidária por seus atos. Podem constituir iatrogenias culposas os maus resultados cirúrgicos originados de procedimentos eletivos que exijam médicos especialistas, quando praticados por médicos generalistas, em hospitais dotados dos referidos especialistas. É difícil, no entanto, estabelecer os limites entre o lícito e o punível, entre o erro flagrante e o fortuito, entre a prudência e o inconsciente. Um autor que publica suas complicações, descrevendo-as detalhadamente, seria réu confesso, porque seus resultados foram piores que os obtidos nos centros avançados, por trabalhar em condições adversas? São frequentes as demonstrações de cirurgias convencionais ou laparoscópicas, realizadas por equipes de cirurgia de outros estados ou de outros países. Nessa situação, se o paciente complica ou morre e se a equipe já retornou à sua cidade de origem, o que fazer? O artigo 61 do CEM estabelece que é vedado ao médico abandonar paciente sob seus cuidados. Existem normatizações que devem ser seguidas nesses procedimentos.

    DELEGAÇÃO DE TRABALHOS MÉDICOS

    O artigo 30 do CEM regulamenta a impertinência da conduta de se delegar a profissionais não médicos trabalhos da alçada médica. Isso, além de se constituir em risco potencial à saúde do paciente, vez que o paramédico não está preparado, nem autorizado, à prática médica, constitui-se também numa depreciação à própria classe médica. O médico dever assumir, pessoalmente, toda a assistência médica, tanto nos atos intelectivos, quanto nas atividades manuais. É vedado ao médico autorizar terceiros, não médicos, a fazer colocação de gesso, fechamento de vias de acesso às regiões operadas, punção medular etc. A participação de paramédicos, na assistência médica, deve limitar-se aos atos próprios de cada atividade profissional.

    DEFINIÇÃO DE PERSONAGENS

    Os artigos 31 a 34 do CEM regulamentam a identificação dos personagens da prestação do trabalho médico, vedando tanto a omissão da autoria de atos praticados, quanto a atração para si de procedimentos alheios. Essas condições podem ocorrer, por exemplo, nos casos em que procedimentos médicos praticados por residentes ou outros membros da equipe são consignados no prontuário ou nas fichas de cobrança, como atos dos preceptores. Além de falta ética, constitui, também, crime de falsidade. Numa eventual necessidade de exposição judicial do prontuário médico, a troca de autores implicaria em agravamento. Ainda nessas reflexões há que se lembrar da impropriedade de se atribuir, levianamente, a terceiros a justificativa de fracassos próprios, como o diagnóstico não foi bem feito porque a radiografia não era de boa qualidade, o laboratório não era confiável, entre outros. O exame complementar inadequado deve ser questionado quando visto pela primeira vez e não a posteriori, para justificar resultados terapêuticos insatisfatórios.

    GREVE

    O CEM regulamenta a atividade de greve, direta e indiretamente. O artigo 15 exprime que o médico deve ser solidário aos movimentos de defesa da categoria. O Artigo 78 veda ao profissional posicionar-se contrariamente aos movimentos legítimos da categoria, com a finalidade de obter vantagens. Esses corolários permitem interpretações restritivas, sob a égide da preservação da liberdade individual, em relação à chamada ditadura da maioria. Deve ser entendido que, se o primeiro incentiva a participação nos movimentos legítimos da categoria, o segundo restringe a oposição, se motivada por interesse na obtenção de vantagens pessoais. Nesse sentido não há que se perquirir do constrangimento ilegal ou de qualquer restrição à legítima liberdade individual. Não se justifica valer-se da manta de direitos individuais para obtenção vantagens pessoais em relação a movimentos da categoria.

    De maneira prudente, ética e legal, o CEM, por intermédio do artigo 35, veda ao médico Deixar de atender a setores de urgência e emergência, quando for de sua obrigação fazê-lo, colocando em risco a vida de pacientes, mesmo respaldado por decisão majoritária da categoria.

    PASSAGEM DE PLANTÕES

    O artigo 36 do CEM declara vedado ao médico afastar-se de suas atividades profissionais, mesmo temporariamente, sem deixar outro médico encarregado do atendimento de seus pacientes em estado grave. Isto vale tanto para pequenas ausências de um plantão, quanto para viagens sem comunicação a pacientes internados ou em assistência domiciliar. Tudo deve ser conversado e combinado, devendo haver disponibilização de substituto competente. O artigo 37 do CEM regulamenta o comparecimento a plantões preestabelecidos. Coíbem-se a falta e o atraso, não justificados, bem como a saída antes da chegada do substituto. É mais fácil justificar faltas ou atrasos a compromissos, por ter permanecido em substituição a colega retardatário, que o abandono do plantão de urgência, antes da chegada do plantonista sucessor.

    PRÁTICAS CONSENTIDAS

    Nos atos médicos, em geral, o consentimento do paciente tem sido indireto, sendo raras as instituições que, rotineiramente, registram a aquiescência às diversas manipulações. Essa relação de confiança entre médico e paciente tem facilitado o trabalho dos advogados, na exigência de ressarcimento de danos, os quais alegam desconhecimento, por parte do doente, dos procedimentos médicos realizados e dos seus riscos ou, pior que isso, informam ao Juiz sobre a orientação verbal do médico, na qual constava ‘’Absoluta ausência de riscos’’. Não deve o profissional médico abrir mão desse consentimento, preferencialmente por escrito, nem de oferecer relatório prévio, devidamente protocolado, sobre riscos e benefícios do procedimento. Estará, assim, resguardando tanto direitos próprios quanto da instituição. O valor do consentimento se restringe aos atos lícitos. A concordância do paciente ou de seus familiares, não exclui responsabilidade por atos ilegais. Não basta o acordo das partes, faz-se também necessária a licitude do trabalho executado. Noutras palavras: a autorização do cliente não exime o profissional da responsabilidade por prática de atos ilícitos.

    O legislador foi cuidadoso ao abordar a liberdade individual. Tanto na Constituição Federal, quanto nos Códigos Penal e Civil, há nítida e inquestionável defesa à liberdade e à autodeterminação. Criminalmente, as intervenções cirúrgicas escapam da imputação de delito, por seus objetivos nobres, fins terapêuticos e, sobretudo, pela autorização do paciente. Contrariamente a isso, nas situações de iminente perigo de vida, além de não necessitar de consentimento, acha-se o médico no dever legal de prestar o atendimento devido, indiferentemente aos regulamentos disciplinares, administrativos ou de qualquer outra imposição superável. Nestas circunstâncias, estará o médico escudado pelo Artigo 146 do Código Penal que, tratando do constrangimento ilegal, é muito claro em seu parágrafo terceiro, eximindo dessa possibilidade a intervenção médica ou cirúrgica se justificada por iminente perigo de vida. Ao contrário, o não atendimento, nesses casos, impõe crime de responsabilidade penal por omissão de socorro, que será tratado adiante.

    Perigo de vida e risco de vida são coisas diferentes. Risco é a possibilidade do perigo, enquanto perigo é uma situação real e, sobretudo, presente ou iminente. Perigo de vida não pode ser uma condição prognóstica, porque em termos de perspectivas, qualquer afecção pode evoluir para o pior. A condição de perigo de vida caracteriza-se pelo acometimento de sistemas vitais, como instabilidade neurológica (torpor ou coma), respiratória ou hemodinâmica.

    Seguem-se algumas situações em que o tratamento médico arbitrário encontra amparo legal. A ampliação de campo operatório pode ser necessária. Durante uma intervenção cirúrgica programada pode surgir uma intercorrência mórbida, que imponha necessidade de ampliação do procedimento proposto. Apesar de não haver abordagem expressa na legislação brasileira, existem jurisprudências muito bem sedimentadas quanto ao direito do médico no prolongamento do ato cirúrgico, de acordo com os ditames científicos exigidos para o caso, independente do que fora anteriormente programado. Configura-se nessa hipótese verdadeiro estado de necessidade de terceiro, justificando assim a conduta adotada. A transfusão de sangue em testemunha de Jeová é uma situação teoricamente fácil de resolver, mas muito delicada frente a um caso real, pela firmeza com que os adeptos da citada religião tratam do assunto. Inúmeros trabalhos médicos têm sido publicados, sobretudo na América do Norte. Acumulam-se jurisprudências favoráveis à administração de sangue, principalmente em crianças e nas situações de iminente perigo de vida. Deve o médico, nesses casos, agir com muita cautela e respeito, sem se deixar levar pela parcimônia e pelos circunstantes. Resumem-se, didaticamente, em três, as possibilidades de envolvimento do médico com a testemunha de Jeová: casos emergenciais, com iminente perigo de vida; casos eletivos, em que há disponibilidade de outros médicos e casos em que o médico assistente é o único profissional disponível.

    Na iminência de perigo de vida, prepondera a autonomia do médico. Amparado pelo parágrafo 3º do artigo 146 do Código Penal, que trata do constrangimento Ilegal, tem o direito amplo de arbitrar o tratamento a ser aplicado, seja ele clínico ou cirúrgico, independentemente do consentimento do cliente ou de seu representante legal. Basta caracterizar o iminente perigo de vida. A lei, em nenhum momento, protege o direito à morte, desde que haja recurso técnico disponível.

    Em situações eletivas, em que haja disponibilidade de outros profissionais, não está o médico na obrigação de dar o atendimento solicitado, podendo delicadamente deixar de assumir o caso. O próprio CEM, em seu artigo 47, é muito firme em enunciar que o médico não está obrigado a prestar atendimento, senão na iminência de perigo de vida ou nas localidades onde não houver outro profissional disponível.

    Na condição eletiva em que o médico seja o único profissional disponível, estará impedido de eximir-se do atendimento. A transfusão de sangue deve ser antecedida de uma solicitação judicial, documentada com boa exposição de motivos. Cumprindo a decisão judicial, que geralmente tem sido favorável às transfusões, estará o médico protegido de qualquer imputação legal.

    Indiferentemente à conduta adotada, é imprescindível um comportamento discreto e prudente, tanto em relação aos familiares, quanto ao próprio pessoal do hospital, comumente muito excitados nesses casos. Optando-se pela transfusão, deve esta ocorrer reservadamente, sem grandes celeumas que viriam traumatizar ainda mais a todos, além de induzir atritos de consequências imprevisíveis. Dispensa-se a homologação de vencidos e vencedores: basta que uma vida haja sido salva.

    A alta médica, seja hospitalar, seja setorial como da unidade de tratamento intensivo ou bloco cirúrgico, merece especial atenção, uma vez que pode justificar futuras cobranças de responsabilidades. O chamado termo de desistência, tido por muitos como carta de isenção, pela evidência da vontade do signatário, na realidade é muito frágil, pela incompetência franca do leigo em avaliar suas reais condições de saúde. A lei sempre resguarda a vida e a saúde como valores acima da liberdade individual. Não se permite ao cidadão expor-se a riscos desnecessários, mesmo que a seu próprio critério. Havendo perigo de vida, a assinatura do termo de desistência não exclui a responsabilidade, podendo o profissional vir a responder por omissão de socorro, periclitação da vida ou mesmo ser imputado de causar epidemia, se a moléstia for contagiante. Nos casos cirúrgicos eletivos, a desistência à operação é fato comum, disponível ao médico ou ao paciente, nos limites da cortesia e do urbanismo.

    ABANDONO DE PACIENTE

    A relação médico-paciente deve ter sempre início, meio e final éticos, técnicos e civilizados. Eventuais tormentas de percurso devem ser gerenciadas com maturidade e profissionalismo. O paciente e seus familiares podem exceder-se nas emoções, provocando desencontros interpessoais. O médico, como gestor do trabalho profissional, deve manter o equilíbrio e a razão, serenando os ânimos. Na permanência de indisposições, com estabelecimento de inconveniência na continuidade do trabalho, permite-se a transferência para outro profissional médico ou equipe, por iniciativa de quaisquer das partes. Nesse momento e a posteriori, devem ser envidados máximos esforços, para que a relação razão/emoção seja francamente favorável à primeira. A conferência com outros profissionais, atendimentos concomitantes, participações especiais e até mudança de equipe médica, são realidades cada vez mais concretas. Há que prevalecer sempre o que for melhor para o paciente. Sem molestar a autoestima, há que se despir de vaidades e autoritarismos, cultivando o médico a altivez da modéstia, sem subserviência.

    OMISSÃO DE SOCORRO

    A punição pela omissão de socorro constitui a materialização de um dever moral de solidariedade, que deveria existir entre os homens e, até mesmo, entre todos os seres vivos. Numa sociedade verdadeiramente racional, o amor à vida deveria prevalecer em qualquer circunstância. Precavendo-se das fraquezas humanas, a norma penal brasileira sanciona detenção ou multa a qualquer pessoa que deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, a criança abandonada ou extraviada ou a pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em eminente perigo. A obrigação de assistir cabe a qualquer pessoa, que estiver mais próximo ou mais viável. Estando mais de uma pessoa disponível e prestando uma delas socorro, as demais se eximem do encargo, a menos que haja necessidade de mais de uma pessoa para a assistência.

    Como o dispositivo legal impõe a obrigatoriedade da assistência a qualquer pessoa, imputa-se ao médico muito maior responsabilidade ética e legal, dada a natureza essencialmente assistencial de sua profissão. Isso é valido para os necessitados de assistência à saúde. Em relação às outras carências, se posta o médico em igualdade de condições com os demais cidadãos, estando as autoridades públicas mais comprometidas, por terem o comando gerencial e os recursos. A lei não determina que o médico atenda a todos que o procurem. Conforme já referido, a consulta médica deve ser o encontro livre da necessidade do cliente com a disponibilidade do médico. Nos eventos aflitivos, havendo risco de vida, deve o profissional oferecer assistência completa, indiferentemente aos obstáculos sociais ou administrativos. Será mais ameno e mais humano defender-se de uma transgressão burocrática do que tentar justificar ou transferir as responsabilidades por omissão de socorro. Nenhum tribunal redime ou atenua uma pena por omissão de socorro, em razão de restrições administrativas, ausência de convênios ou outras condições semelhantes; pelo contrário, essas argumentações poderão constituir-se em elementos comprobatórios da omissão.

    O texto legal dispensa a obrigatoriedade de assistência quando, para sua realização, houver risco objetivo à integridade física do assistente. Entende-se essa posição como aquela semelhante ao estado de necessidade, em que, devido ao perigo comum, a lei permite o sacrifício de um bem, já que a salvaguarda de ambos é impossível. Isso não se aplica, porém, ao profissional previamente investido naquela missão, como o bombeiro, o policial e o salva-vidas, dentre outros.

    Merece particular reflexão o fato de clínicas e pequenos hospitais que, carentes de recursos humanos e materiais, ostentam publicidade alusiva a pronto atendimento, atraindo clientes em risco de vida, que seriam triados para outros serviços, retardando a assistência médica e consumindo momentos vitais. Comprovando-se a existência de danos, em consequência do tempo despendido com a intermediação, comportam-se indagações éticas e jurídicas.

    CONFERÊNCIA MÉDICA

    O atendimento médico por equipes multidisciplinares tem se tornado prática cada vez mais frequente. A extensão do saber médico não comporta mais o individualismo. A especialização representa uma necessidade ética e técnica. Nesse novo contexto, o profissional de hoje deve estar preparado, emocionalmente, para interferências técnicas em seu trabalho.

    A participação de especialista deve ser convocada pelo médico assistente, sempre que necessária. Eventualmente pode ser solicitada por familiares, seja como apoio técnico, seja como uma segunda opinião. A não participação de especialistas para se evitar divisão de honorários, em pacientes abastados ou por falta de honorários, em pessoas carentes, constitui condição inusitada. Essa ignomínia, não rara, merece o repúdio geral, pela posição antiética, ilícita, mas sobretudo desumana.

    EUTANÁSIA, DISTANÁSIA E ORTOTANÁSIA

    Esses temas estão sempre em discussão mundo afora e requer uma conceituação, antes de se tecer maiores considerações.

    • Ortotanásia ou morte correta ocorre quando a morte advém de um processo natural. O médico acompanha o paciente a fim de evitar seu sofrimento sem, no entanto, tentar prolongar a vida de forma artificial.

    • Distanásia é o ato de prolongar a vida de um paciente de forma artificial, seja por drogas de qualquer tipo para esse fim, seja por meio de aparelhos de forma inútil, uma vez que a morte já é certa e não apenas uma possibilidade e, ao contrário de se trazer ajuda ou alívio, prolonga-se o sofrimento do paciente e

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