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Bel-Ami
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E-book383 páginas4 horas

Bel-Ami

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Sobre este e-book

Bel-Ami é um romance realista publicado em 1885 sob a forma de folhetim. O romance explora a sociedade e as atitudes em relação à riqueza, ao poder e ao oportunismo, retratando a ascensão social de Georges Duroy, homem ambicioso e sedutor, além de arrivista e oportunista, lançado ao topo sociedade parisiense graças à ajuda das amantes e do conluio entre a imprensa, as finanças e a política. Maupassant descreve as ligações existentes entre o capitalismo, a política e a imprensa, além da influência feminina, privadas da vida pública da época. A obra é apresentada como uma pequena monografia da imprensa parisiense, onde Maupassant retrata a sua própria experiência como jornalista.
IdiomaPortuguês
EditoraMimética
Data de lançamento29 de abr. de 2024
ISBN9789895620166
Bel-Ami
Autor

Guy de Maupassant

Guy de Maupassant was a French writer and poet considered to be one of the pioneers of the modern short story whose best-known works include "Boule de Suif," "Mother Sauvage," and "The Necklace." De Maupassant was heavily influenced by his mother, a divorcée who raised her sons on her own, and whose own love of the written word inspired his passion for writing. While studying poetry in Rouen, de Maupassant made the acquaintance of Gustave Flaubert, who became a supporter and life-long influence for the author. De Maupassant died in 1893 after being committed to an asylum in Paris.

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    Bel-Ami - Guy de Maupassant

    Capítulo 1

    Recebido o troco da sua moeda de cem soldos, Jorge Duroy saiu do restaurante.

    Vaidoso por natureza e pela sua linha de antigo oficial do exército, endireitou o busto, torceu o bigode com um gesto militar e habitual e passeou sobre os comilões abancados um olhar rápido e circular, um destes olhares de bonito rapaz que têm qualquer coisa do olhar de um gavião. As mulheres tinham erguido a cabeça, três operárias, uma professora de música, de meia-idade, mal penteada, com um chapéu sempre carregado de pó e um vestido mal justo ao corpo, e duas burguesas com os respetivos maridos, freguesas assíduas daquela casa de pasto que fornecia jantares a preços fixos.

    Quando se viu na rua, ficou um instante parado, sem saber o que havia de fazer. Estava-se a 28 de junho, e restavam-lhe no bolso apenas uns três francos e quarenta até ao fim do mês. Isto representava dois jantares sem almoços, ou dois almoços sem jantares, à escolha. Refletiu que, sendo as refeições da manhã de vinte e dois soldos, em vez dos trinta que custavam as da tarde, lhe restaria um franco e vinte cêntimos se se contentasse apenas com os almoços, o que representava ainda duas refeições de pão com salsichas e dois copos de cerveja, no bulevar, a grande despesa e o grande prazer das suas noites. Pôs-se a caminho, descendo a Rua de Nossa Senhora do Loreto. Seguia, como no tempo em que usava a farda de hussardo, de peito retesado, as pernas um pouco entreabertas como se acabasse de desmontar, e avançava brutalmente pela rua cheia de gente, acotovelando a todos para se não desviar do seu caminho. O chapéu alto, já bastante velho, inclinava-o para um lado, e batia forte os tacões no lajedo, tendo assim o aspeto de desafiar sempre alguém, os transeuntes, as casas, a cidade em peso, por vaidade de soldado que regressou à vida civil.

    Embora modestamente vestido com uma fatiota de sessenta francos, conservava certa elegância espalhafatosa, um pouco vulgar, é certo, mas nem por isso menos real.

    Alto, bem-apessoado, louro, de um castanho vagamente sardento, com um bigode retorcido, olhos azuis, claros, de pupila pequeníssima, cabelos naturalmente frisados, penteados de risca ao meio, parecia-se imenso com o homem fatal dos romances populares.

    Era uma destas noites de Verão em que o ar falta em Paris. A cidade, quente como uma estufa, parecia transpirar na noite abafadiça. Os esgotos exalavam pelas suas bocas de granito o seu hálito empestado e as cozinhas subterrâneas lançavam para a rua, pelas suas janelinhas baixas, os infectos miasmas das águas de lavar a louça e dos restos de comida.

    Os porteiros, de mangas arregaçadas, a cavalo em cadeiras de palhinha, cachimbavam às portas, e os transeuntes passavam fatigados, de chapéu na mão, a cabeça ao léu.

    Quando Jorge Duroy chegou ao bulevar, parou de novo, indeciso sobre o que iria fazer. Tinha agora vontade de alcançar os Campos Elísios e a avenida do Bosque de Bolonha para encontrar um pouco de frescura debaixo das árvores; mas um outro desejo o oprimia, o de um encontro amoroso. Como surgiria esse encontro? Nada podia prever, mas esperava-o há três meses, todos os dias, todas as noites. Às vezes, graças ao seu simpático aspeto, à sua elegância, roubava aqui ou além um pouco de amor, mas o que queria e esperava era sempre mais e melhor.

    Sem dinheiro, mas de sangue quente, excitava-se ao contacto das vagabundas que murmuram pelas esquinas convites aos que passam, mas não se atrevia a segui-las por não lhes poder pagar; e esperava também outra coisa, outros beijos menos vulgares.

    Gostava contudo desses pontos de reunião das meretrizes, os seus bailes, os seus cafés, as suas vielas; gostava de as acotovelar, de lhes falar tratando-as intimamente tu cá, tu lá, de aspirar os seus perfumes violentos, sentindo-se bem junto delas. Eram mulheres, enfim, mulheres para amar. E não as desprezava com o desprezo nato dos chefes de família.

    Virou a esquina da Madalena e seguiu a onda da multidão acabrunhada pelo calor. Os grandes cafés, cheios de gente, transbordavam para os passeios toda a multidão de fregueses que a luz crua iluminava. Nas mesas pequeninas, quadradas ou redondas, os copos continham líquidos vermelhos, amarelos, verdes, castanhos, de todos os tons; e no interior das canecas brilhavam os grossos cilindros transparentes do gelo que arrefeciam a bela água clara.

    Duroy atrasara o passo, devorado pela sede, uma sede ardente de Verão que lhe secava a garganta e lhe trazia à ideia a sensação deliciosa das bebidas frias escorrendo pela boca. Mas se bebesse sequer dois copos de cerveja, bem podia dizer adeus à magra ceia do dia seguinte, e as horas famintas do mês eram tão suas conhecidas...

    Disse com os seus botões: «É preciso esperar pelas dez horas para ir à cerveja do Americano. Raio de sede!...» E encarava toda aquela gentinha abancada, gente feliz que podia beber o que lhe apetecesse. Vagabundeando por diante dos cafés, ia calculando pelo aspeto, pelo vestuário, o dinheiro que cada freguês podia trazer consigo. E a cólera invadia-o contra aqueles tipos sentados e tranquilos. Se lhes revistasse os bolsos, encontraria ouro, moedas de prata e de cobre. Em média, cada um deveria ter pelo menos dois luíses; eram bem uns cem; cem vezes dois luíses, aí estavam quatro mil francos! E murmurava: «Súcia!», dando-se ares de grande janota. Se os pudesse apanhar na esquina de uma rua, na sombra bem negra, com que prazer lhes torceria o pescoço, palavra de honra!, sem o mínimo escrúpulo, como fazia às galinhas dos campónios nos dias das grandes manobras.

    E recordava os seus dois anos de África, a maneira como ceifava os árabes nos postos avançados do Sul. E um sorriso cruel e satisfeito entreabria-lhe os lábios ao lembrar-se de uma aventura que custara a vida a três homens da tribo dos Ouled-Alane e que lhe valera, a ele e aos seus camaradas, vinte galinhas, dois carneiros e muito ouro, e de que rir durante seis meses. Nunca foram descobertos os culpados, que aliás pouca maçada deram a procurar, considerando-se o Árabe um pouco presa natural do soldado.

    Em Paris as coisas eram diferentes. Não se podia assim facilmente tentar cavalarias altas, de sabre na ilharga e revólver em punho, longe da justiça civil, em liberdade. Sentia no íntimo todos os instintos do militar à solta em país conquistado. Tinha saudades dos seus dois anos do deserto. Que burrice não se ter deixado ficar por lá! É verdade que sempre esperara na volta coisa melhor. E afinal!... ai!... afinal!... Deu um estalinho com a língua, como que para verificar a secura do seu palatino.

    À volta dele a multidão continuava a passar, extenuada e vagarosa. E Jorge pensava sempre: «Súcia de estúpidos! Todos estes imbecis trazem dinheiro no bolso.»

    Acotovelava-os, assobiando uma ária alegre. Alguns repontavam; as mulheres, sobretudo, chamando-lhe nomes.

    Próximo do Vaudeville parou defronte do Café Americano, hesitante em tomar imediatamente uma cerveja, tanto a sede o torturava. Antes de se decidir viu a hora nos relógios da calçada. Eram nove e um quarto. Já sabia; se apanhasse a cerveja na sua frente, engolia-a e depois que havia de fazer até às onze horas?

    «Irei até à Madalena e voltarei devagar para ganhar tempo», disse consigo próprio.

    Quando chegava à Praça da Ópera, cruzou com um homem gordo, cuja fisionomia não lhe era de todo estranha. Pôs-se a segui-lo, investigando a sua memória e murmurando sempre intrigado: «Onde diacho vi eu esta cara?»

    Não havia meio de se lembrar; depois, de repente, por um singular fenómeno, apareceu-lhe o mesmo homem mais magro, mais novo, envergando um uniforme de hussardo. Exclamou de repente:

    — Olha! é o Forestier!

    E, apertando o passo, foi bater-lhe no ombro. O outro voltou-se, encarou-o e perguntou:

    — Que deseja?

    Duroy desatou a rir:

    — Não me conheces?

    — Não.

    — Jorge Duroy, do 6.º de hussardos.

    Forestier estendeu-lhe a mão:

    — Oh! meu velho! Venham de lá esses ossos! Como vai isso?

    — Bem, obrigado. E tu?

    — Assim, assim... Imagina que ando todo emplasmado, seis meses do ano a tossir, o raio de uma bronquite que apanhei em Bougival, quando regressava a Paris, faz hoje exatamente quatro anos.

    — Mas o aspeto não é mau.

    E Forestier, enfiando-lhe o braço, falou da sua doença, contou as consultas, as opiniões e os conselhos dos médicos, a dificuldade de cumprir à risca as suas prescrições, de cuidar da saúde, na posição em que se encontrava. Mandavam-no passar o Inverno no Sul, como se, casado e jornalista, o pudesse fazer.

    — Dirijo a secção política da Vida Francesa. Faço o «Senado» para a Época e, de tempos a tempos, crónicas literárias para o Globo. Faz-se pela vida, com a breca!

    Duroy olhava-o surpreso. Tinha mudado muito, agora com uma atitude de homem muito seguro da sua pessoa, ventre de quem sabia tratar-se. Era um pau de virar tripas noutros tempos, um boémio estouvado. Em três anos Paris fizera dele um homem sério e barrigudo, já com brancas a luzir, apesar dos seus 27 anos.

    Forestier perguntou:

    — Aonde vais?

    Duroy respondeu:

    — Sem destino, a fazer horas.

    — Queres tu vir daí até à Vida Francesa, onde tenho de rever umas provas? Depois vamos tomar qualquer coisa...

    — Pois sim!

    E seguiram ambos, de braço dado, com a familiaridade fácil que subsiste entre companheiros de colégio e velhos camaradas de regimento.

    — Que fazes tu por Paris? — inquiriu Forestier.

    Duroy encolheu os ombros:

    — Que hei de fazer? Vegeto, rebento de fome, ora aí está. Quando acabei o tempo, quis vir para aqui para... para tentar fortuna, ou, antes, para viver em Paris; e há seis meses que sou empregado nos escritórios do caminho-de-ferro do Norte a mil e quinhentos francos por ano, uma miséria!

    Forestier concordou:

    — Não é uma situação desafogada, lá isso não.

    — Mas que queres tu que eu faça? Sou sozinho, não conheço ninguém, ninguém se interessa por mim. Boa vontade não falta, falta o melhor.

    O companheiro olhou-o da cabeça aos pés, como homem prático que analisa um assunto, e proferiu convicto:

    — Olha, menino, o essencial é ter descaramento. Um homem audacioso e descarado consegue tudo, é mais facilmente ministro do que chefe de repartição. E preciso impor-se e não pedir. Mas como diabo não arranjaste coisa melhor do que esse mísero emprego no Norte?

    Duroy replicou:

    — Fartei-me de procurar por toda a parte. Nada descobri. Tenho agora em vista um lugar de picador na escola de equitação do Pellerin. São uns três mil francos.

    Forestier indignou-se:

    — Não faças isso, homem! Se devias ganhar dez mil francos... E bater com a porta na cara do futuro. Ao menos lá na repartição estás oculto, ninguém te conhece, podes sair e abrir caminho, se tens coragem. Mas, uma vez picador, adeus amigo! É como se fosses chefe de criados num hotel onde Paris inteiro vai jantar. Quando tiveres dado lições de equitação a certos sujeitos ou a suas filhas, nunca mais poderão acostumar-se a considerar-te seu igual.

    Calou-se, refletiu alguns segundos e perguntou:

    — És bacharel?

    — Não. Fui reprovado duas vezes.

    — Isso não quer dizer nada, desde o momento em que foste até o fim nos teus estudos. Se falarem de Cícero ou de Tibério, sabes pouco mais ou menos quem eram?

    — Naturalmente.

    — Claro, ninguém sabe mais, à exceção de uma dúzia de imbecis, que nem por isso conseguem ver-se livres de entalações. Não é nada difícil passar por forte; a questão é não se deixar apanhar em flagrante delito de ignorância. Manobra-se, foge-se à dificuldade, torneia-se o obstáculo e intruja-se os outros por meio de um dicionário. Todos os homens são tapados como portas, burros completos.

    Falava com a tranquila petulância de quem conhece a vida e sorria vendo passar a multidão. Mas de repente desatou a tossir, parou para deixar passar o acesso e depois, num tom de desalento:

    — Não há maneira de me ver livre desta maldita bronquite! E estamos no Verão! Este Inverno tenho de o passar em Menton, que remédio! A saúde primeiro que tudo.

    Chegaram ao bulevar Poissonnière, diante de uma grande porta envidraçada, tendo coladas nos vidros, pelo lado de dentro, as páginas abertas de um jornal. Liam-no três pessoas paradas no passeio.

    Por cima da porta brilhavam grandes letras de fogo, desenhadas pelos bicos de gás:

    A VIDA FRANCESA

    E os transeuntes passavam bruscamente na claridade que estas três palavras lançavam na noite, apareciam de repente em plena luz, visíveis, claros como de dia, e sumiam-se logo na sombra. Forestier empurrou a porta:

    — Entra — disse.

    E Duroy entrou. Subiu uma escadaria luxuosa e suja que toda a rua devassava, atravessou uma antecâmara, onde dois empregados da casa cumprimentaram o seu companheiro, depois parou numa espécie de saleta de espera, poeirenta e velha, forrada com um falso veludo de um verde desbotado, cheio de nódoas e roído aqui e além, como se os ratos por ali tivessem passado.

    — Senta-te — disse Forestier —, não me demoro.

    E desapareceu por uma das três portas que abriam para este gabinete.

    Um cheiro estranho, particular e inexprimível, o cheiro das salas de redação, flutuava no ambiente. Duroy permanecia imóvel, um tanto intimidado, sobretudo surpreendido. De tempos a tempos passavam homens apressados, entrando por uma porta e saindo por outra, sem que tivesse tempo de os observar.

    Eram homens novos, quase rapazelhos. de ar atarefado, levando folhas de papel que o vento da sua marcha agitava; tipógrafos, cuja blusa cheia de nódoas de tinta deixava ver um colarinho muito branco e uma calça de fazenda igual à de pessoas da sociedade; e conduziam com precaução tiras de papel impresso, provas frescas, ainda húmidas. Às vezes entrava um homem vestido com uma elegância demasiado aparente, a sobrecasaca muito apertada, com a calça desenhando-lhe os músculos das pernas, o pé calçado num sapato de biqueira muito aguçada, qualquer repórter mundano que trazia os ecos da sociedade.

    Outros chegavam, graves, importantes, de chapéu alto de abas direitas, como se este formato os distinguisse do resto dos homens.

    Forestier reapareceu de braço dado com um rapazola alto, magro, de 30 a 40 anos, de casaca e gravata branca, muito moreno, o bigode retorcido em pontas aguçadas, com um ar insolente e muito satisfeito da sua pessoa.

    E Forestier, despedindo-se, chamou-lhe querido mestre.

    O outro apertou-lhe a mão:

    — Até logo, meu caro.

    E desceu a escada, a assobiar, a bengala debaixo do braço.

    Duroy perguntou:

    — Quem é?

    — Jacques Rival, o famoso cronista, o duelista. Veio rever umas provas. Garin, Montel e ele são os três primeiros cronistas de espírito e atualidade que temos em Paris. Ganha aqui trinta mil francos por ano, a dois artigos por semana.

    E, como iam a sair, encontraram um homenzinho de grande cabeleira, gordo, muito sujo, que subia as escadas esbofado.

    Forestier saudou-o em voz baixa.

    — Norberto de Varennes — explicou —, o poeta, o autor do Sol Morto, outro tubarão. Cada conto dos seus custa trezentos francos, e os mais extensos não têm duzentas linhas. Mas vamos ao Napolitano, começo a estourar de sede.

    Abancados a uma das mesas do café, Forestier mandou vir dois bocks e engoliu o seu de uma assentada, ao passo que Duroy bebia a cerveja a lentos goles, saboreando-a como uma coisa preciosa e rara.

    O companheiro, calado, parecia refletir, depois, de repente:

    — Porque não tentas tu o jornalismo?

    O outro olhou-o, surpreendido:

    — É que... nunca escrevi nada...

    — Ora adeus! É uma questão de experimentar. Podia empregar-te como meu ajudante, para me colheres informações, fazer visitas. Terias, para começar, duzentos e cinquenta francos e carros pagos. Queres que fale ao diretor?

    — Se quero...

    — Olha, vem jantar comigo amanhã. Somos cinco ou seis: o patrão e a mulher, Jacques Rival, Norberto de Varennes e uma amiga de minha mulher. Aceitas?

    Duroy hesitava, corando, perplexo. Por fim murmurou:

    — É que... não tenho fatiota decente.

    Forestier ficou estupefacto:

    — Não tens uma casaca? Oh! diabo! mas isso é uma coisa indispensável. É melhor não ter uma cama em Paris do que não ter uma casaca.

    Depois, vasculhando as algibeiras do colete, tirou moedas de ouro, pegou em dois luíses, pô-los diante do seu antigo camarada e, num tom cordial e familiar:

    — Dar-me-ás isso quando puderes. Aluga ou compra a roupa de que precisas, arranja-te como puderes, mas vem jantar amanhã comigo, das sete para as sete e meia, na Rua Fontaine, 17.

    Duroy, embaraçado, guardou o dinheiro:

    — Obrigado, meu velho, nunca esquecerei este favor...

    O outro interrompeu:

    — Outra cerveja, não? Rapaz, mais dois bocks!

    E, depois de beberem, o jornalista perguntou:

    — Queres vir dar um giro por aí? Tenho uma hora livre.

    — Com o maior prazer.

    Puseram-se a caminho da Madalena.

    — Que diabo havemos de fazer? — perguntou Forestier. — Há quem diga que em Paris um sujeito que não tem que fazer encontra sempre em que se ocupar; é falso. Eu pelo menos não encontro. Uma volta pelo Bosque só com uma mulher é agradável, mas nem sempre há uma mulher a jeito; os cafés-concerto podem distrair o meu farmacêutico e a consorte, a mim não. Que fazer então? Nada. Devia haver aqui um jardim de Verão, como o Parque Monceau, aberto de noite, onde se ouvisse boa música bebendo refrescos debaixo das árvores. Não seria um lugar de prazer, mas um retiro de distração; e a preços caros para atrair o belo sexo. Podíamos andar pelas alamedas bem areadas, iluminadas a luz elétrica, e sentar-nos quando quiséssemos para ouvir a música de mais perto ou de mais longe. Tivemos quase isso noutros tempos no Musard, mas era de um gosto rococó e com música de mais, música de baile, e pouco espaçoso, pouca sombra, muito pouca sombra... Seria preciso um jardim enorme e bonito. Seria um encanto. Onde queres tu ir?

    Duroy, perplexo, não se decidia. Por fim resolveu-se:

    — Não conheço as Folies-Bergère...

    O companheiro exclamou:

    — As Folies-Bergère! É um forno crematório. Em todo o caso...

    Voltaram para trás para alcançar a rua do Faubourg Montmartre.

    A frontaria iluminada do teatro lançava um grande clarão para as quatro ruas que diante dele se cruzam. Uma fila de trens esperava a saída.

    Forestier ia a entrar, mas Duroy reteve-o um momento:

    — E os bilhetes?

    O outro respondeu com importância:

    — Comigo não se paga.

    Pediu ao respeitoso fiscal um bom camarote e empurrou a porta forrada de tecido, com batentes embainhados de couro. Estavam na sala.

    Uma nuvem de fumo velava um pouco, como um fino nevoeiro, o fundo da sala, a cena e o lado oposto do teatro. E elevando-se continuamente, em delgados fios brancos, de todos os charutos e cigarros que toda a gente fumava, esta ligeira bruma subia sempre, acumulava-se no teto e formava sob a larga abóbada, em volta do lustre, um véu enevoado de fumo.

    No vasto corredor da entrada que conduz à galeria circular por onde vagueia a turba espaventosa de mulherio, de mistura com a multidão enorme dos homens, um grupo de moças esperava os que entravam diante de um dos três balcões onde imperavam, pintadas e envelhecidas, três vendedoras de bebidas e amor. Por detrás, os altos espelhos refletiam-lhes as costas e as fisionomias dos passeantes.

    Forestier rompia pelos grupos, com pressa, como pessoa que tem direito à consideração alheia.

    Aproximou-se de uma arrumadora.

    — O camarote 17?

    — É aqui.

    E encerraram-nos numa pequena boceta forrada de vermelho, com quatro cadeiras da mesma cor, tão juntas que mal deixavam livre a passagem. Os dois amigos sentaram-se, e, à esquerda seguindo uma longa linha arredondada que ia terminar no palco pelas duas extremidades, uma série de caixas semelhantes continham criaturas igualmente sentadas, de quem só se via a cabeça e o peito.

    Na cena, três rapazes vestidos de malha, um mais alto, um médio e um mais baixo, faziam à vez exercícios num trapézio.

    O alto adiantava-se primeiro, a passos curtos e rápidos, sorrindo e saudando com um movimento da mão como para atirar um beijo.

    Via-se-lhe debaixo da malha desenharem-se os músculos dos braços e das pernas: deitava o peito para fora para dissimular o estômago muito saliente, e a sua figura parecia a de um praticante de cabeleireiro, porque uma risca cuidada lhe abria o cabelo em duas partes iguais, precisamente ao meio do crânio. Agarrava o trapézio com um salto gracioso e, dependurado pelas mãos, girava à volta como uma roda em andamento; depois, os braços rígidos, o corpo direito, mantinha-se imóvel, deitado horizontalmente no vácuo, preso à barra apenas pela força dos pulsos.

    Saltava depois para o chão, saudava de novo, a sorrir sob os aplausos da plateia, e ia encostar-se ao cenário, mostrando bem a cada passo a musculatura da perna.

    O segundo, mais baixo e mais gordo, avançava por sua vez e repetia o mesmo exercício, com mais crescente simpatia do público.

    Duroy não queria saber do espetáculo: o que o interessava era o grande corredor cheio de homens e prostitutas.

    Forestier chamou-lhe a atenção:

    — Repara para a plateia: só burgueses com mulheres e filhos, boas cabeças de burro que vêm aqui para ver. Nos camarotes, alguns ociosos, poucos artistas, moças de meia-escolha; e por detrás de nós, a mais patusca miscelânea que é possível imaginar em Paris. Quem é essa gente? Observa-a. Há de tudo, todas as castas e todas as profissões, mas a crápula domina. Empregados de lojas e bancários, de armazéns, dos ministérios, jornalistas, souteneurs, militares à paisana, ociosos elegantes de casaca, que vêm de jantar e saem da Ópera antes de entrarem os Italianos, e uma multidão de tipos suspeitos que desafiam a análise. Quanto às mulheres, uma só que marca: a do Café Americano, criatura para um ou dois luíses, que espreita o estrangeiro de cinco luíses e previne os seus fregueses quando está disponível. Há seis anos que as conheço a todas; vêem-se todas as noites, todo o ano, nos mesmos sítios, salvo quando fazem uma estação higiénica em S. Lázaro ou em Lourcine.

    Duroy não o ouvia. Uma das mulheres contemplava-o, debruçada do camarote. Era uma morena gorda, muito pintada, os olhos bistrados a lápis e umas sobrancelhas enormes e fictícias. O peito, muito desenvolvido, enchia-lhe a seda escura do vestido; e os lábios pintados, vermelhos como uma chaga, davam-lhe qualquer coisa de bestial, de ardente, que despertava desejos. Chamou com um sinal da cabeça uma amiga que passava, uma loura de cabelos vermelhos, gorda também, e disse-lhe em voz bastante elevada para ser ouvida:

    — Muito simpático, aquele rapaz: por dez luíses não lhe dizia que não.

    Forestier voltou-se e, sorrindo, bateu uma palmada na coxa de Duroy:

    — Aquilo é contigo; estás a ter saída, meu caro, os meus parabéns!

    O antigo militar tinha corado e apalpava com um movimento maquinal do dedo as duas moedas de ouro no bolso do colete.

    Tinha descido o pano; a orquestra atacava uma valsa.

    Duroy propôs uma volta pela galeria.

    — Como queiras.

    Saíram, e foram logo arrastados no turbilhão dos passeantes. Iam aos empurrões, tendo diante dos olhos uma multidão de chapéus. E as mulheres, aos pares, passavam nesta onda, atravessavam-na com facilidade, deslizavam por entre os cotovelos, os peitos e as costas, como se estivessem à vontade em sua casa, à maneira de peixes na água, no meio deste oceano de machos.

    Duroy, maravilhado, deixava-se ir, aspirava com embriaguez a atmosfera viciada pelo tabaco, pelo cheiro dos homens e os perfumes das mulheres. Mas Forestier suava e tossia.

    — Vamos para o jardim — disse ele. E, virando à esquerda, penetraram numa espécie de jardim coberto, que duas grandes fontes de mau gosto refrescavam. Sob o arvoredo, em caixotes, homens e mulheres bebiam sobre mesas de zinco.

    — Outro bock? — perguntou Forestier.

    — Da melhor vontade.

    Sentaram-se, pois, a ver passar o público.

    De tempos a tempos, uma mulher parava e perguntava com um sorriso banal:

    — Não pagam nada?

    E como Forestier respondia:

    — Um copo de água da fonte...

    ...ela afastava-se com um palavrão.

    Mas a gorda morena que há pouco se apoiara ao camarote dos dois amigos reapareceu, caminhando com arrogância, de braço dado com a loura gorda. Era um belo par de fêmeas, bem sortidas.

    Sorriu ao avistar Duroy, como se os seus olhos tivessem dito já coisas íntimas e secretas; e, arrastando uma cadeira, sentou-se tranquilamente em frente dele com a sua amiga e mandou vir duas groselhas.

    Forestier, surpreendido, proferiu:

    — Nada de cerimónias, hem?!

    Ela retorquiu:

    — Foi o teu amigo que me seduziu. É na verdade muito simpático. Era capaz de me obrigar a fazer uma tolice.

    Duroy, intimidado, não encontrava nada que dizer: torcia o bigode frisado, sorrindo ingenuamente. O criado trouxe os refrescos, que as mulheres despejaram de um trago; ergueram-se depois e a morena, com uma pequena saudação amigável da cabeça e uma leve pancadinha do leque, disse a Duroy:

    — Obrigada, filhinho. Tens a palavra difícil.

    E foram-se, bamboleando o traseiro.

    Forestier desatou a rir:

    — Não há que ver, meu velho, tens sorte com as mulheres. É bom olhar por isso. Pode levar-te longe.

    Calou-se um segundo e acrescentou depois nesse tom sonhador das pessoas que pensam alto:

    — É ainda por elas que se chega mais depressa.

    E, como Duroy sorria sempre, sem responder, perguntou:

    — Ficas? Eu safo-me, estou farto.

    O outro murmurou:

    — Demoro-me um bocado. Ainda é cedo.

    Forestier levantou-se:

    — Bem! Até amanhã. Não te esqueças! Rua Fontaine. 17, às sete e meia.

    — Entendido; até amanhã. Obrigado.

    Apertaram as mãos e o jornalista afastou-se.

    Logo que o viu pelas costas, Duroy sentiu-se livre e de novo apalpou alegremente as duas moedas de ouro no bolso; depois, levantando-se, pôs-se a percorrer a multidão com o olhar investigador.

    Avistou logo as duas mulheres, a loura e a morena, que ainda vagueavam, com a atitude altiva de mendigas, através da turbamulta dos homens.

    Foi direito a elas, mas, quando

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