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O Focinho do Peixe-Boi
O Focinho do Peixe-Boi
O Focinho do Peixe-Boi
E-book599 páginas9 horas

O Focinho do Peixe-Boi

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Sobre este e-book

Este compêndio trata da relação amorosa em seus aspectos mais profundos. Personagens retirados do cotidiano expressam-se em sua intimidade de uma maneira extremamente contundente. A dinâmica da sexualidade neste livro é vista sob o aspecto da mais aberta demonstração de sua pontualidade nos dias modernos. Entretanto, a linguagem é poética quando a trama exige maior fundamento de realismo. O estudo das personagens é introspectivo e cheio de surpresas. De uma forma exuberante, Henriques cria a dimensão do romance em descrição em primeira pessoa do singular e terceira pessoa. Com isso, redunda o texto em uma performance magistral e que gira, quando se faz o epílogo, para uma demonstração exótica de análise sensorial e psíquica de cada criatura que faz parte desse mundo e seus amores.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de mai. de 2024
ISBN9786527019459
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    O Focinho do Peixe-Boi - José Humberto da Silva Henriques

    INTRODUÇÃO

    DIA 1

    Numa tarde do mês de julho de 2002 procurou os meus serviços Mlle. Buggiarda d’ Morallis & Honóri. Meu consultório de analista – psiquiatra em todos os termos que o ofício exige -, situava-se naquele tempo numa das ruas ajardinadas de Ibiraçu das Flores. Era uma mulher de beleza exótica, destilando olhos de um modo esquivo, muito e embora tivesse soluços taramelados dentro deles, de uma forma risonha e de carícia permanente. Pelo cumprimento exigi-me às leis de atenção, notando em sua face a fuga incompleta para um lugar que não existe. Havia um dossiê de alternativas em sua figuração. Falava manso, um caráter infantil e aparentemente desprotegido na voz, a escala não mudando enquanto revelava-me a vida em si, buscando a compreensão de um entendimento em minha face – o que demonstrava um caráter exigente e a inteligência que objetiva as reações. Era jovem – regulava em modo antigo de como diziam os anciãos, o regular a idade em seus vinte e sete anos - e vestia-se de forma simples, porém contundente. Bonita, a roupa dela se vestia. Com mais palavras saindo de sua boca, percebi que não era bonita, mas uma das mulheres mais belas sobre a qual eu havia metido os meus olhos de analista. Não se afetava em nada, dizia as coisas de forma natural, não querendo velar nada que pudesse ser dito, como a princípio compreendi com clareza. Revelava que o seu par – que dizia ser o par perfeito e o chamava sempre por meu amado -, não cria da necessidade dela se submeter ao analisado, pois que temia a ruptura entre o seu umbigo e o sal das manhãs. Calei-me diante da assertiva, sequer fiz qualquer observação. Deixei que desse objeto ao que vinha. Devagar fui observando certos detalhes que na maioria das vezes passam despercebidos aos homens, mas que às mulheres – mormente e jus – pode ser que jamais escapassem. Os cabelos tinham as raízes escuras e o contorno alourado, determinação de tintas que tornam as morenas crentes que são louras. A boca era um fenômeno de raridade, percebi nela a implantação distinta das gengivas – quando sorria mais apicalmente, como fez duas ou três vezes quando citou o nome do namorado como sendo somente meu namorado . Gengivas rebaixadas, os dentes muito claros e de comprometimento pequeno, como soem ser as dentaduras dos índios do Brasil. Foi assim que compareceu à sua primeira data de revelações. Como era médica residente, distinto fosse que houvesse maior entalhe de decisões enquanto o barco descia as águas de seu mundo. Mlle. Buggiarda era médica residente em clínica, e tinha as pretensões de lavorar com glândulas. Portanto, apreciava os humores e as filigranas impostas pelos detalhes. Foi com um anseio de síntese, eu mesmo, agora e sob força de exigência, quis dar um nome revelado ao seu modo de ser bela entre tantas, oxalá a mais bela que eu houvera posto sob análise. Deixei-a absolutamente à vontade para revelar o que bem entendesse. E mirava a sua forma de ser com a busca de um nome que pudesse apor à sua ficha de analisada. Foi com ternura antiga que descobri o nome do susto. Achei a palavra certa: encantei-me com ela e vi suas sarças em um fogo flambado: ela era exótica .

    INTRODUÇÃO

    DIA 2

    Sendo a segunda-feira o dia em que me surgira pela primeira vez, esperei que retornasse com seus soluços de olhos – retornou na quinta, conforme era o estabelecido para jornadas de tal naipe -, e pudesse haver continuidade no processo de adesão ou recusas. Não eram as duas primeiras consultas procedimentos com ação pecuniária, posto que as seguintes o seriam. Deixei-a à vontade para saber se queria continuar ou não. Já que era médica, pode ser que algum entretido a demovesse de analisar-se, os arbítrios eram consorte – deixei claro depois, verbalmente – à sua real e desejada manutenção de transferências. Punha-se à vontade, informal, mas mantendo a certeza de uma lividez de certos modos. Depois de cumprimentos sociáveis, permiti que usasse as palavras como bem lhe aprouvessem. Explicou-me Que estava ali, mas que o meu namorado é meio avesso às decisões, embora me apoie em tudo, já que penso que me serão proveitosas as reverências ao método. Disse a ele que eu precisava, que me ia ser bom, que já estava sendo bom! E que ele temia rupturas . Pela primeira vez atalhei a conversa e configurei a hipótese de que ao analista não cabe ajuntar ou separar, mas somente abrir caminhos. Afrontar o que pode ser de sendas diante da criatura que tem as dúvidas. Acrescentei que o medo talvez fosse somente uma coisa que já vinha começada; que pudesse não ser o receio da ruptura, mas o anseio que qualifica o empurrão em queda de abismo. Ouvi o seu silêncio e esperei que continuasse. Havia em seu estado de ânimo alguma espécie de fragilidade, os confrontos consigo mesma começavam a revirar-se na banda vermiforme da alma. Sugeriu-me o momento que assim fosse. Num dizer de calmaria, adiantou-me que fora afeita aos amores estranhos – ela dizia complicados, ora estranhos -, que certa vez envolvera-se com um cego e que tivera conluios sexuais com ele, numa decisão de martírio que posteriormente sua alma não era capaz de sanar. E, que, maioria das relações amorosas que mantivera até então eram carregadas de estupor, de arrependimento e de mágoa. Sabia-se cruel, sabia-se terrivelmente destruidora. Disse. Não há nenhum homem que comigo esteja que não acabe na desorientação! Calei-me diante de todas as respostas que ela procurava se dar. As respostas que queria que eu desse. Quebrando a monotonia do tom, perguntei-lhe sem que esperasse, se era fiel ao namorado a quem tanto se referia. Assustou-se, devidamente incomodou-se com a pergunta. Olhou para uma cópia de Juan Miró que havia na parede ao lado e respondeu que Sim. Sempre! Reafirmou. De qualquer forma, a palavra destruição que ela usava me pareceu paradoxal. Se a análise continuasse, pode ser que vida de um romance espetacular tivesse início. E continuou. A cada dia me deslumbrava mais com a forma que ela usava para contar seus recatos e ansiedades. Defini pela última vez seu modo de se apresentar. Escrevi com caneta vermelha na sua ficha, abaixo, em espaço reservado para detalhes. Mulher exótica . E grifei duas vezes a informação. Depois usei a caneta azul para escrever o parecer do analista. Para ela, eu já sabia, havia que usar duas canetas, uma vermelha para a exótica e uma azul para a sua contrapartida.

    Começava a busca pela pérola.

    PRIMEIRA

    PARTE

    CAPÍTULO 1

    Mlle. Buggiarda nasceu no dia 8 de novembro, dias alvissareiros, na cidade de Belém do Pará. Já de si encorpada, veio à luz do mundo com grande litania de volume, coisa que manteria em seu estádio de existência por toda a vida. Mulher grande, alongada. A facezinha de bebê, ainda em choros de primeiras semanas, grande e alargada, a ponto da mãe dizer que a face da filha era somente o retrato exato da lua cheia. Lua cheia. Belíssima lua cheia que atravessaria os dias vindouros, acrescida de amálgama de humores, um dia seria o refestelado do desejo dos homens. Porém, em nascimento não era bela, desconfiava a mãe que a face em demasia escarpada era somente uma falha para a perfeição de seus detalhes. Nariz chato, como nas substâncias reveladoras de parte negra ou indígena, sem a aliteração que comporia o conjunto um dia estrito e geométrico. Chorona por compleição, a menina era a graça que a mãe esperava. Enveredava-se por choros longos, tão logo percebesse a mãe a uma distância mesmo apequenada. As venturas entre ambas começavam num embaraço de relação apicular, a vida inteira uma dependência entre uma e outra. Espelhos.

    Em dias que se seguiram, as normalidades das coisas, a menina aferrava-se ao choro sempre que era deixada em seu berço, choro convulso, a tal face intenso que se tornava roxa e presumivelmente uma preocupação para a mãe. Se apanhada ao colo e embalada, cedia e tornava-se calma, totalmente acalentada de humores, mas outra vez metida ao berço desandava a urrar, a condenada sem fim. Houve um momento em que a mãe, desconfiada que algum senso era por demais sensível na menina, apanhou uma de suas blusas, aquilo que tinha mais à mão, usada e com seu cheiro impregnado durante a roda do dia, deixou aquilo ao lado do rosto da miúda. Qual a grande surpresa, tão logo se apercebeu do contorno de mãe que havia na peça, a chorona com semanas de vida apenas agarrou-se a ela e adormeceu num tempo imediato. A mãe sorriu e descobria que a filha seria dela um eterno extrato de umbigo, o sem fim do sempre, ser. Em torno, as aprendizagens de uma mãe se iniciavam e seriam a parte eterna de um comportamento. As alegrias de ambas, a cada dia uma novidade, mãe/filha. E cada novidade já sendo por demais velha. A mãe decidia-se a não querer adivinhar os mundos vindouros, era jovem demais para conviver com qualquer futuro.

    Dona Piselli, jovem ainda e mãe pela primeira vez, navegada de suas alegrias diante da menina Lua Cheia, percebia o endereço das ternuras. A pequena sugava a chupeta e adormecia profundo, os dedinhos das mãos, cada um a ofegar as lãs que o tecido oferecia. Ria-se daquilo, terna e sabendo que doravante as choraminganças exageradas haviam de desaparecer. Descobrira o segredo frugal do animalzinho nela existido, o odor materno que redime e acalenta. Ao dizer sobre a menina usava as metonímias e os eufemismos, outras figuras tão imediatas quanto estas:

    - Nasceu enorme. Foi um problema desde que nasceu, posto que uma gravidez tranquila, arrebenta-me pelo exagero da cabeça grande, como sempre repito, a lua cheia em figura completa. Nunca vi na minha vida uma menina com a cabeça assim tão grande!

    Buggiarda, recebendo em batismo o nome que tinha, somente por um diminutivo de nome toscano, por extensão de uma personagem de Carlo Porta, que havia encabulado a mãe nos tempos de suas leituras, Il Quartieri del Pensiero. Ainda pequena, nela era difícil conceber-se a extensão dos genes, até onde ia um e até onde se imiscuíam os todos. Os olhos puxados, nem tanto, rasos e com aspecto sempre inchado, denunciavam com franqueza a sua lida bugre. Os lábios e o nariz – quando ainda pequerrucha – mostravam a horda negra e a parte branca ficava encravada entre os dois, mais denunciada pela desejação da mãe de que fosse toda pura, ao invés de composta por uma salada sem começo, meio e fim. Olhada com mais afinco – como se olha uma fotografia entre a calma e a curiosidade -, nada nela era, em verdade, a somatória das divisões, ou divisão de tudo. Nela havia uma mistura de homogeneidade que construía a dízima periódica responsável pelos três genes distribuídos de igual maneira. Gorducha, as pernas fazendo os pilões que são a grandeza dos bebês saudáveis, Buggiarda aviava-se como uma menina somente, uma espécie de compromisso apenas com o normativo das questões. Em nenhum instante prorrompia em ideia de que todo vulcão começa pela boca: seu fascínio despertado pelos cônjuges de medo. A mãe admirava-se dela, aferrava-se ao compromisso de que, doravante, haveria em seu mundo um motivo mais substancial para requerer-se à vida, mesmo como acontece com as mães e seus sentimentos. Pois que o futuro nem sempre pode ser um passado itinerante, às vezes se dá ao estático.

    Era nascida de família afeita às tradições, pais instalados sob longa data nos arredores de Icaraçaoá, a terra condicionada como medida de enredo, com soía acontecer quase sempre em antanho. Primava-se pela regra da ética e dos bons costumes, tinha na simplicidade um mundo de alegrias, como julgava que deviam ser as venturas simples de um mundo. Educada em regime interno, colégio com substantivos franceses e internato com mãos de freiras, aprendera desde cedo que nas pequenas prisões é que começa a curiosidade da liberdade. Sua compleição pequena, a pele morena e cabelos escuros, oxalá a queda lusitana de como é que se nasce e se vive. Tinha no equilíbrio uma busca de soluções, embora cresse que por vezes o seu pessimismo alentasse por demais a corda para um lado pior. Se tinha as alegrias, enquanto moça, os sonhos todos que se descritos, todos nem cabem na grande sacola dos elementos. Sonhadora por excelência, porém, jamais se enveredou pelo lado onírico de forma capital. A vida nem jamais o permitiu. Sentia as elisões de todos os momentos e configurava-se num equilíbrio de austeridade. O rosto severo, incluído numa banda doce de faixas, as metades de uma delicadeza muito substancial.

    Dizia-se a tebaida. Lugar de convento quase, o colégio interno. aprendia a pele lisa das sensações. As canções que eram proibidas ficaram-lhe como marca de uma desavença com as curiosidades. Canções inocentes, porém proibidas, como era a marca registrada de tudo que ofendesse o que fosse judaico e o que fedesse a cristão. Aprendiz de suas buscas e tradições, tinha nas moralidades a flexível haste de cada coisa que pudesse ser nomeada. Tão logo se desfez dos primeiros cursos em colégio interno em Bonfim, Icaraçaoá a teve de volta às suas ruas. Menina ainda, escolheram-lhe um modo simples de haver-se com as liberdades e com a vida. Havia que se casar. Para os pingos, as letras e os bons entendedores de tudo que um dia se argumenta, era a hora e, ademais, era assim que havia que ser. Sem nada que pudesse servir de maior adorno – nenhuma paixão ou enlace de amor -, marcou-se a data e o noivado transcorreu com a velocidade de matadouro. Havia muita lucidez, porém, em tudo nela. era enviada para a romanesca situação de um tiro no escuro. Tanto podia o jato atingi-la na face, quanto no coração, ou em ousadia de porrada: no cerne das colisões, alma inteira. Um amargo de sentimento figurava-se-lhe. Sentia que estava pronta para sofrer. Não queria, via que não era hora para aquilo. Jovem demais. Todavia, voltar atrás sob a canga e o jugo dos pais era remar contra a corrente e ainda com remo quebrado.

    Sabia-o. Inteirava-se das realidades, todavia, não mais tinha como haver outra forma de suicídio. O que devia fazer era recriminar-se para sempre, as coisas que eram escritas com suas letras garrafais, sem dáctilos de reserva. Foram bodas normais e havia risos felizes dos dois lados da Igreja do Rosário, bem como não mudava em nada os conselhos que o vigário emitia. Carota ia com seu taciturno terno escuro, preto, as riscas de giz muito pequenas, quase imperceptíveis, um sorriso atacado de tosse e bronquite mais um leve chamego de álcool nas bordas da vida. Ele mesmo, diante da mulher bonita que era, não sabia ao certo que diachos estava acontecendo. Teciam-lhe as visões, deixava-se abater por um mundo cheio de interesses e avarezas. Carota trazia nos culotes do pescoço, alas grossas e determinadas das qualidades essenciais das misturas. Enquanto ela era lusitana em aparte e em todo, uns sinais ibéricos, quiçá ao norte de Portugal, ele atingia o nomadismo das substâncias de mistura majoritária. O perfil do cafuz, uns modos de tonel dentro do corpo. Homem alto, distinguia-se ao lado dela, mignon, como é o tipo que se figura em medida.

    Feita para ser a eterna dona de casa, o então marido feito para ser o sempre mantenedor das vias operárias da família. Nada anormal no que era a vida, assim merecidamente resumida em seus contornos. Não foram dias excepcionais para nenhum dos dois, a lua-de-mel entretida quase que na mudança somente de atitudes, uma grande obrigação para a grande, obrigação física ao homem delegada. Cumpria-se o ajuste das partes, exato como as partes devem ser. A mulher mantinha-se dentro de uma redoma de solidão muito pior do que aquela que encontrara em seus dias de internato em Bonfim. Se lá era presa, pelo menos se aviava com as fofocas dilatadas ao lado das amigas, as flores da sexualidade livres e saudáveis para a busca dos sonhos mais capitosos. As canções proibidas que lhes agitavam, a ela e às moçoilas de companhia, os seus encantos de rapariga bonita e a sua temperança de ser-se. Dentro de casa, sem muito mais o que fazer a não ser esperar um marido que chegava sempre bêbado, viu na desesperança e no descoroçoo o limite da sobrevivência. A vida apanhava-lhe com a canga pesada ao pescoço. Não era nada disso que imaginava, muito menos que queria, tudo destoava das gregárias opiniões que a cada uma das raparigas sacolejava em tempo de sua adolescência. Os príncipes que cada uma concebia em chegadas divinais, tudo endereçado a uma sexualidade ainda sem nenhuma exploração.

    Casara-se em Icaraçaoá, lugar de sua ascendência para as coisas do coração – sua preferência de lugar, amor de longa conversa, cidade da qual jamais arredaria o pé em um futuro que vinha próximo e a galope -, mas tão logo se instalava, Carota foi transferido para Belém do Pará, e lá foi que compuseram a rotina de sua existência. Esposa jovem, ela ia aonde a sua atenção servia como guia. Calada, atendendo aos precipícios que se antepunham e orando para que cada um deles fosse menos profundo ou com chão macio o suficiente para as quedas.

    Com certa tendência à indiferença de afetividade, submetia-se ao que era possível diante do que podia, em silêncio, ser chamado a sua grande desgraça. Num modo de qualquer janeiro viu-se grávida. Irremediavelmente grávida. Os grandes calores e eflúvios de Belém tocavam barcos em sua nova condição; com o instinto aguçado e vendo-se ainda menina – não bailara nem uma das canções que foram as proibidas durante a sua adolescência -, aferrou-se ao estado novo de sua vida com as garras de determinação. Afinal, nela a vida se refazia. Cumpria a segunda parte de seus contratos de forma fiel. Primeiro o enlace, depois a manutenção das grades da família. Pensou que a novidade espancaria para longe os fantasmas de sua banda afetiva, seus idos e sofridos diante de um homem que não se cabia em ser só. Isolado e difícil de ser capturado em qualquer ideia, Carota fazia de suas madrugadas o inferno mais dantesco que as antigas freiras de Bonfim pudessem sugerir. Aliás, nelas havia ainda a raridade de uma alegria, mas havia. No marido não, tudo era lúgubre. Sempre havia nele uma resposta áspera a ser dada, mutilado entre o grito ofensivo, violento, e a amargura das palavras ruins. Difícil dizer a ele uma coisa amena e obter resposta igual.

    Se Belém era bela, claro que em todo o era. Para ela, todavia, as coisas tinham um outro significado. Procurava integrar-se consigo mesma para sofrer menos. E a cada dia sentia-se uma jovem desfigurada de seus sensos. Quando se perguntava a se tinha saudades do lugar, de suas chuvas marcadas para as quatro horas da tarde, sempre pontuais, era sempre a mesma resposta que se podia ouvir:

    - A gente só sente saudades dos lugares onde pôde ser feliz!

    Não negava que Belém era beleza embarcada em supremacia. Os arvoredos que compunham as largas avenidas – de forma paradoxal, Buggiarda se lembrava desses detalhes com as frases muito plenas de alegria -, o tacacá e a maniçoba que eram vendidos por dona Violla numa esquina perto de Ver-o-Peso. Os sabores do peixe tambaqui e de outras carnes de cor rosada. Piselli calava-se quanto a isto. Saída de suas terras circulares de Icaraçaoá, pais enraizados ao que era da terra, nunca mais ela voltou a meter seus dedos descalços em qualquer barrela. Tornara-se uma mulher urbana na concepção plena da palavra. O edifício onde morava e onde concebera a menina era teatro central em Belém do Pará. Urbana na franca acepção do som que a palavra pode conter. Dizia que só se sente saudades do lugar onde a gente foi feliz! Em Belém, ardor de sóis e catalepses, a cidade é um alegre riso de ponta-cabeça, tal ponto, que a qualquer momento uma tartaruga pode cair dentro de um prato de sonho. Ou um passarinho de cor mestiça arrebentar-se em cantoria ou revoada.

    Depois, com mais tempo passando, houve entre eles uma espécie de trégua elementar, o que para Carota era alívio, para ela era a substância da redenção. Belém jamais parecera tão vereda, tão bela, quando conseguiu abster-se de certas tristezas. Da janela do edifício podia observar a grandeza de um ipê amarelo que floria no mês de agosto. A barriga já avantajada pela andadura do bebê que vinha a galope. Os movimentos grandes e a forma pontiaguda da barriga avisavam – segundo concepção de comadres -, que aquele era um sinal promissor: uma menina, com certeza plena, elas falavam, era uma belíssima menina. A Carota, porém, não havia grande sumidade em qualquer notícia que fosse. Era cidadão mundano, dono de horizontes mais abundantes, largos. E não houve um único dia que não desse fel à gravidez da mulher, que ele não entrasse apartamento adentro sem o viço recendente do cigarro e do conhaque, sempre depois que as horas ficavam irregulares e irreverentes no coração das criaturas que esperavam. As noites vinham com gongo pesado, as nuvens descendo e abafando o que mais se pudesse respirar. Horas altas, com tanque desabado de mais chuva, ele chegava. Com a prenhez, o alívio da mulher sobrepujou-se, ele não mais a procurava para as conjunções e preposições que a carne pede ou exige.

    Feliz com a encarnação dos modelos de riso, a mãe retumbava, porém já tinha em mente que haveria de criar a sua filha sozinha. Alguma coisa lhe dizia o fato, se a princípio desmoronava-se o arquétipo timbrado de suas virtudes, terrível é que vinha a possibilidade, com mais tempo ela toda se disseminou na aceitação de que hora por ora, outra qualquer, haveria que assumir o contralto de seus fundamentos de dignidade. Além dela, a paz que uma mulher aceita e bebe para uma vivência, se não normal de todo, pelo menos sossegada. Foi assim que devagar levou avante seu projeto de pensamento. A Carota não havia outra solução que aquela que assumia para sua vida, compreendido entre uma espécie de ansiedade que gerava angústia e um desprezo por tudo que é importante dentro desta existência. Buggiarda teve seu contato direto com o mundo diante desse entretenimento de modos, as coisas como são e não podem ser mudadas. A cidade, porém, grandeza de Belém, entrava em sua alma por todos os poros. E, de forma continuada, os fluidos disseminavam-se por dentro da filha, não bastassem os seus genes todos girados para a translação de ser bugra.

    Assim que chegou o mês de novembro havendo mais a recarga da espera, que tudo eram os dias e os tempos, a menina veio ao mundo com sua estrutura de bichinho sadio. Segundo mesmo se devesse esperar, passou-se o que devia ser a espera. Estava marcado, segundo gráfico médico, para os primeiros dias de novembro. Portanto, atrasara-se um pouco, somente para afinar-se em seu dia 8 do mês.

    - Nasceu enorme. Por pouco não me desfaz! Uma cabeça que não se vê todo dia. A menina é cabeçuda por excelência. E uma cara invulgar de tomar mais espaço dentro do mundo que uma Lua Cheia!

    Chorona por temperamento e caráter, devagar a mãe foi se habituando a irritar-se com as convulsões soluçadas de um choro interminável. E aprendia a deixar ao seu lado a blusa com seu cheiro, uma toalha usada, qualquer coisa que destilasse a presença e o calor antigos. De uma forma capitosa, era notório que começava entre as duas uma história de amor resplandecente – e de certa forma assim tão comum, e por sê-lo ainda inigualável. A menina apegava-se ao que tinha diante dos olhos e das mãozinhas, a carinha de lua-cheia, bela como havia de um dia ser insuperável. A lua se enchendo de mais plenitude, agarrando-se a um dardo de constelação inigualável. Beleza extrema, o sentido do que ser exótico nascendo e retumbando. Um dia, por curiosidade, diante do choro esganiçado da filha, Piselli apanhou uma camisa do pai e deitou-a às suas mãozinhas. Queria atender-se, saber se a menina deixaria o choro como acontecia diante de suas blusas. Obteve resposta. Em vão, mais é que chorava. Entendeu que somente com a especificidade do destilado materno é que a menina se afiançava.

    O peso da vida e das exigências sem exigências – as monumentais crias de amargura que atingem as criaturas que se soldam ao sempre de-antes – fizeram da casa de Piselli a inocência desqualificada. Com a vinda do bebê chorão, as alegrias da mãe tornaram-se especulares. Mudava a contingência para mais o que fosse e Belém parecia agora mais bela. O ipê despira-se de sua saia de folhas e vinha nova bagagem de mês de agosto. Floreava-se com o amarelão comum das alegrias de ipê: retratadas. Piselli achava-se enfim numa saudade dos tempos em que Bonfim era clausura em sua cabeça. As terras do pai, ali tão íntegras e conjugadas a Icaraçaoá. Com o marido não havia mais nenhuma coisa que pudesse ser resgatada. A cada dia punha-se mais ferino, agressivo, oxalá atingisse nas ruas o calor dos louvores que em casa não encontrava. Distúrbio que se avantajava. Para ela era o alívio quando o homem esquecia-se de seu corpo, ainda menina em proximidade de seus vinte anos. Era consolo que achava na distância selênica que havia entre a sua chegada em casa e a sonolência que dela emergia. Em novembro a pequena fez seu primeiro aniversário e houve uma festa de alegria entre a mãe e o seu sorriso de lua cheia. Era o máximo de felicidade que se podia desejar. Seu comportamento era afável, alegre. Era menina risonha. Devagar a chorona ia dando lugar a uma criança plena de alegrias. Transformava-se. A boca arqueava-se, dando ao ornado a forma que caracteriza as criaturas com soalhos otimistas e vida igual.

    Piselli sabia que esta seria a única filha eu geraria. Apegava-se a ela num ritmo quase que histérico. Preocupações sem fim, desde as janelas do prédio até as brincadeiras na área de condomínio. Buggiarda já ia crescida, com mais três aniversários às costas. Era a mesma menina de tez clara e cabelos escuros, levemente puxados para a ondulação. Potencialmente forte de modos, mostrava-se geniosa e desafiadora. Enfrentava a mãe sob qualquer circunstância, mesmo sob ameaça de tapas na bunda. Proibido o que era, somente a situação das saídas rua a fora, o que muitas vezes a menina cumpria, bastando para isso que encontrasse o portão aberto. Com quatro anos de idade foi que sucedeu o seu primeiro susto real. Arranjando sabe-se lá em qual canto umas moedas, a pequena saiu pela rua defronte – achara aberto o portão – e dirigira-se à mercearia adiante para comprar guloseimas. Tudo sem a aquiescência ou conhecimento da mãe. Piselli imaginava-a a brincar com outras crianças dentro dos domínios do edifício. Automóvel em certa velocidade apanha-a quase que no contato direto. A grande brecada e o porteiro acudindo, nem ele mesmo crendo que daria tempo de se evitar a tragédia. A facezinha inocente, o desconhecimento de que todo perigo em urbanidade quase sempre advém da rotação de um motor. Em modos de criança: as moedas apertadas dentro da concha da mão. Segurando com afinco aquilo que seria o doce antecipado, a geleia colorida, daquelas que nem existem mais em vitrines de mercearias, as cores duplas.

    Avisada, a mãe esperava-a com o torniquete. Os grandes e inesquecíveis beliscões. Pequenos tapas que não serviam a nada. A não ser para a formação do bico de menina emburrada, coisa que durava o espaço de quase uma hora. A menina entrava em seu quarto repleto de bonecas, sempre fora convencionada com grande número de bonecas, e brincava sozinha o resto da tarde, fantasiando entre ser mãe – um sonho quase cavalar -, deixando claro que para si a solidão era um componente capital e inadiável. Teria sido uma infância enfadonha se acaso Belém não fosse a grandeza assumida, essencial e com ângulos soberbos para todos os lados. Não obstante a intolerância entre pai e mãe, a situação que se tornava a cada dia mais periclitante, eventualmente havia os passeios que somavam ao seu estado lúdico uma especialidade sem igual. Belém era-lhe apaixonante. Desde a mais tenra idade, desde muito cedo em sua vida a menina aprendia a cultivar o otimismo como um raio de enorme sedução. A força excepcional da natureza em torno admitia o peso, sem que dele diretamente se apercebesse. Tão excepcional era a força da cidade, que nele os genes reviravam-se para a banda de um estado sempre renovado, porém, atávico. A floresta respirando em seus olhos.

    A prisão era-lhe necessária diante das circunstâncias - os zelos de mãe. Acudida diante das suas amiguinhas – somente duas, exíguas e participantes do mesmo edifício, a menina arrogava-se em dizer que sua casa era especial. Que seu pai era especial, sua mãe igualdades de formas e também. Dizia com seu jeito arrogante, o cortejo ainda todo inocente e sem pecados. A boca com a vírgula serena, revirada para baixo em suas rimas e predicados. Ouvia a conversa das outras e respondia.

    - Temos bois e vacas e outras coisas. Tudo temos em casa. Tudo o que pode interessar a quem possa querer ver!

    - Temos um peixe-boi em casa!

    - Peixe-boi? E criado onde?

    - Na banheira!

    Era o que Buggiarda dizia quando falava de suas coisas com Civetta e Cagnolina, ambas com seus nomes afrancesados. Civetta era nissei, a face bonita combinando com a delicadeza de seus olhos de pequena gueixa. Temos um peixe-boi em casa! Era a única forma de vencer uma batalha que estava começada. E, que, evidentemente estaria vencida se acaso não fosse a solução do mito. Quem é que podia haver uma casa igual, com peixe-boi e tudo o mais? Buggiarda achara a solução para os impasses de seus menosprezos. Tinha uma raridade, um peixe-boi. Matava de inveja a ambas. A face miúda de Civetta se repuxava e seus olhos acreditavam que estava diante de uma fala com tesouro. A amiga tinha um peixe-boi dentro da banheira de casa. Aquilo era ápice, a não ser em parques, ou em fundos de igarapés e corixos, não era possível ver-se e criar-se um monstro assim, belo até no nome que traduz. Se Belém era sufixo, todos os fundamentos de prefixos começavam com o sonho, o símbolo máximo criado pelo corpo de um animal como o peixe-boi.

    - E teu pai não se importa? E tua mãe?

    - Não, claro que há inconvenientes. Um peixe-boi é um peixe-boi. Amamento com mamadeira de tratar de cordeiro, bezerro!

    A expressão dos modos, a vida a encenar, começava na menina a apreciação de enredos. Não devia, jamais, em seu folguedo infantil, deixar que as outras se lhe sobrepujassem. Civetta e Cagnolina tinham outras coisas que fundamentavam a colisão com a pequena fantasia inventada. A pequena farsa durou alguns meses. Viam-se as meninas, trocavam suas palavras de brincadeiras, os jogos com bonecas e amarelinha. As danças que aprendiam nas telas de televisão – porque era fato e sempre verídico, jamais houve uma dançarina como Buggiarda. Todavia, quando se falava no peixe-boi que era criado dentro da banheira de apartamento, aí a escolta dos dias tornava-se irregular e piorada. A menina irritava-se quando duvidavam dela. Por certo haviam dito aos seus pais como era a casa da amiga. A sua casa. Por certo também queriam um peixe-boi dentro de suas banheiras. Notório e exequível que houvesse o não como resposta. Que escolhessem uma mascote menos complicada, como qualquer criança que quer ser normal. Não um leão-marinho, uma anta, uma sucuri, um peixe-boi. E, zelosos pela manutenção da paz entre as crianças, os pais diziam que se criar um peixe-boi em apartamento era somente uma solidão magnífica que começava a utilizar o situado das palavras. Tão somente. Que um peixe-boi é a falta de razão, a se começar por ser o espectro de uma coisa futurista e que jamais deixava de ser ancestral. Um bicho que eclode dentro da memória, entre o índio e a extinção. Um peixe-boi não é uma flor sumária.

    Ocorre que Civetta não se conformava jamais com não haver um bicho daqueles em casa. Era extravagante demais. Coisa magnífica e que estando em posse de outra, para ela seria o estado arrasador do mundo. Queria um também, se os pais criam que a informação não era verdadeira, ela mesma, si e própria, iria requerer a apreciação do mundo como ele realmente era. Subiu ao apartamento da outra, soou a campainha e encontrou a face simpática e morena de Piselli diante de sua investigação. Com os olhos de curiosidade, deixou no ar a questão.

    - Buggiarda falou-nos sobre o peixe-boi. Eu queria acariciar o seu focinho real!

    - Focinho de quem?

    - Do peixe-boi, ora!

    Para Piselli tratava-se somente de uma brincadeira entre crianças pequenas. Ria-se do número e do tamanho do problema que tinha dentro do ouvido. Se não dissesse a verdade, por certo que haveria um problema posterior para resolver. Se dissesse o que era real, estaria metendo a filha ao descrédito das outras. Optou com riso dentro dos olhos e da boca por dizer o resultado que aprendera sempre em casos assim. A verdade tem as pernas muito curtas. E não dói. Isso carregava consigo desde os tempos em que dormia entre os muros do convento, em Bonfim.

    A mãe achava um julgamento de arestas em o ser da filha. Respeitava. As coisas de criança. Para ela o peixe-boi também se julgava em grandeza, em solidez de aprendizado. Todavia, um peixe-boi não é tão somente ou apenas a flor que desabrocha, é o alagado inteiro que desponta.

    CAPÍTULO 2

    -V im ver o peixe-boi!

    - Que peixe-boi?

    - O animal que é mascote de Buggiarda. Aquele que ela cria na banheira de sua casa!

    - Meu bem... Quem foi que te falou isso? Não temos nenhum peixe-boi, nunca tivemos. Mas, podes entrar e falar com ela. Podem brincar com as bonecas. Lanchar juntas!

    - O focinho dele que mama em mamadeira de cordeiro!

    - Meu anjo, entra e vai brincar com ela!

    Civetta recuou. Havia alcançado uma vitória inconcebível. O mundo tinha razão. Era mentira. Um mito pequeno, porém que surtiu efeito de dano em vida de todas elas, mormente em Buggiarda que encontrava pela primeira vez em sua vida a derrota estampada em cores da boca da mãe. Aprendia, sem amargura maior, mas aprendia, que as mentiras assumem a textura diáfana da sofreguidão. Capazes de impor a ânsia de que a verdade jamais seja revelada; ou que seja revelada depressa para determinar o fim da agonia criada por uma situação de embaraço. Para ela, nunca houve a dúvida da inocência da situação, mas o processo de absorção e transformação imposto pela memória, em seu mundo foi um passo ribombado pelo resto da vida. Atinha-se a contar tais coisas sempre com sorrisos nos lábios, entretanto.

    Vinha à tona a verdade imposta pelos elementos de sensatez. Tão logo soube que as amigas conheciam a verdade, Buggiarda enveredou-se pelo choro mais imenso que jamais se poderia esperar. Toda a grandeza de sua imposição diluía-se em nada. Tornava-se outra vez nem igual a elas – cada uma com uma mascote, com uma vida mais colorida -, mas com a sensação de que se debandava o seu sonho de haver criado um peixe-boi dentro da banheira do apartamento e durante tanto tempo. Piselli observava a menina lavada em lágrimas. Ora, em momento nem soubesse como agir diante de uma catástrofe enorme. Sabia que a dimensão das coisas para a menina não era a mesma que aluía o mundo dos adultos. Foi uma espécie de golpe, pois que nunca mais houve tal assunto em boca da filha, pelo menos durante um espaço prolongado de vida. Somente voltou a falar do episódio muito tempo depois, quando já adulta e consagrada de amores. Não tinha mais nenhum ranço nela que impusesse silêncio. Falava disso com risos e creditava que sentia saudades imensas daquele tempo de sonhos e peixe-boi. Imaginava-se, a fertilidade da cabeça quando a individualidade quer se impor.

    Para ela, o peixe-boi, assim imitado de sortilégios, era a flor.

    - A flor, sim senhor!

    Dizia. A plenitude de um carinho colossal fazendo nela as bordas das cores. O amor intenso pelo Pará.

    - O retrato magnífico que anda nas algibeiras de vento de todo o meu mais lindo estado do mundo, o Pará de todos os meus sonhos!

    Nas brincadeiras entre as três meninas havia uma rivalidade sinuosa. Uma disputa permanente. Coisas da infância, fáceis de serem vistas, difíceis de serem explicadas. Civetta e Cagnolina eram um conluio permanente. Viam em Buggiarda a ameaça permanente de uma coisa que elas não sabiam o que era – mas que com certeza havia que ser banida e derrotada. Era comum que fizessem os desfiles improvisados em passarela. Convidavam mais duas ou três amigas que deveriam compor o júri. Sentadas no chão, assistiam àquilo que simulava os desfiles de moda, os desfiles de beleza e outras coisas de inutilidade substancial. As imagens de televisão eram o referencial em vida de cada uma. Buggiarda atacava o guarda-roupa da mãe, apanhava o vestido mais bonito, o mais colorido, os sapatos destoantes, sobrando no bico e nos calcanhares. Vestia-se com as peças. Igual forma as outras. As sobras de mangas eram corrigidas com dobras. O que se podia fazer. Assim paramentadas exibiam-se diante do seu corpo de jurados, felizes. À menina Buggiarda, porém, havia um desconforto permanente. Sabia que em qualquer opção que houvesse em sua vida, já estaria perdendo. Perdia todas as vezes. Não houve uma única vez que não perdesse. Até então. A vaidade era substância palpável em vida delas. O querer saber a qual pertencia o adjetivo: ser estonteante. Entre uma e outra, o orgulho dentro dos pequenos olhos. Caso de dignidade, não perder jamais. Mostrar que a beleza que rumina dentro dos perfis femininos é o aposto que conjumina a palavra graça; toda a especialidade de crescer em ornamentos.

    Ocorre que todas haviam que votar em Civetta. Era ela a mais poderosa, a mais rica entre elas. Civetta vencia todas as refregas, os jogos lúdicos tornavam-se enfadonhos, menos para a vencedora de sempre. Houve um dia, porém, que o corpo de jurados sofreu de mesmice. O porém determinava-se por outra questão. Havendo desfilado magnificamente com um vestido que a mãe sequer havia usado, os sapatos pretos de belo verniz resplandecendo nos pés, Buggiarda recebeu notas de quase empate, porém, perdeu outra vez. Derrotada e com a maquiagem a escorrer-lhe junto com as lágrimas, dona de um desespero inimaginável, saiu corredor a fora a exasperar-se. Honesta com as coisas que sentia, a menina vencedora aproximou-se dela, cheia de olhares sinceros e confessou com ares de ser adulta. Começava entre elas os anseios devolutos, a dignidade que se mantinha em pé de justiça. Embora muito ainda despencando dos dentes de leite, havia honras entre elas que precisavam ser resgatadas.

    - Tu achas que venceste?

    - Acho. Estou plena em dia de hoje!

    - Também acho. Devo te dizer, e longe delas, que hoje tu és a mais bela, a mais elegante e a mais alvissareira. Estás imbatível. Gloriosa é que estás. Confesso-te que eu também voto em ti, mesmo sendo a adversária. É hora, que saibas o quanto és bela e sempre bela!

    - Obrigada!

    Todavia, Buggiarda sabia que em toda vitória que começa com o amargo da derrota, a evidência da experiência antecipa o conhecimento em muitas e muitas luas. Se vencera, não foi, porém, com o gosto sincero das doçuras. Havia algo mais no ar com o que ela não poderia se bater. A navegação dos orgulhos e das divindades humanas muitas vezes – maioria delas - baseavam-se mais em estribos de sentimentos superficiais do que em sentimentos de cerne. Mesmo Civetta ainda vicejava com ares de vitória quando anunciou que abria mão naquele dia de seu prêmio vitorioso. Entre elas, salvas em forma de cada uma ser, abriu-se um novo leque de entendimento. A cada uma resplandecia o que fosse justo, crianças com sentimento de mundo aberto. Melhor um jeito de se comemorar do que simplesmente arrogar-se em vitória ou derrota. Como dissera em frase lapidar a voz de Civetta, prudente

    - Desde que ninguém fique sabendo – segredo somente entre nós, tu és a vencedora!

    Era com as bonecas que a menina Buggiarda mais brincava. Passava horas e horas trancada em seu quarto a fazer das ilusões um grande entretido para futuro. Falava com elas. Dançava e organizava o nome de cada uma, cada figura tinha um seu caráter especial. Piselli via a menina naqueles experimentos de solidão. Pensava em passear com elas, achar os ares. A face da filha se definia devagar. As gengivas de bugra permaneciam, mas abriam-se agora para a divindade do sempre, do eterno enquanto ela fosse a predileta de muitos homens. O rosto redondo e com a lua cheia a tiracolo também ia assumindo o seu todo. Menina de olhos espertos, nada nela denunciava o que pudesse ser chamado de pessimismo, a não ser em alguns momentos em que se via diante de certos enredos estrambóticos que a vida acabava por oferecer. Se estava metida com suas histórias e bonecas, em nenhum momento tinha na solidão um estado de tristeza. Aproveitava tudo que podia ser bom e transformava, a seu modo e bel prazer, em deidades que somente faziam um sossego à estampa da mãe. Piselli observava a pequena Lua Cheia a orientar os braços e pescoços de suas filhas inanimadas. Punha-se a considerar com grande pena a sua face de inocência, a menina sem as possibilidades de uma viagem fenomenal. Tinha dó da filha e não sabia o porquê. Oxalá aquilo fosse uma fraqueza de momento. Mas era verídico: tinha uma pena estranha de ver a menina absorta com suas bonecas mais estimadas, os olhos das massas inermes, sem vida, olhos que brilham e condenam, como se observassem além de toda e qualquer imaginação. Num momento, a menina se erguia, cantarolava uma canção e dançava diante de uma das bonecas, como se quisesse reverter para maior justiça o haver perdido a votação em dia de desfile. Pusesse ordem ao caos, buscasse mais independência em seres mais animados do que um júri corrupto. Diante das peripécias e da face de lua cheia, Piselli tinha desejo grande de se recorrer, afagar e beijar a face da menina. Entretanto, não o fazia. Perdia um tempo precioso diante da vida. Era incapaz daquilo, porque aprendera com os seus, os antigos, que toda situação requer mais sobriedade do que somente um estado besta de manteiga que se derrete. Quanto mais sóbria, menor sofreria as consequências das fragilidades. Assim cria.

    Em ocasião de folgas boas, entraram em um barco e fizeram a travessia das águas. Buggiarda foi feita de flora e fauna. Tinha o grande apego e o manteve durante toda a sua vida por bichos e coisas de cor vibrátil, tropical. Aprendeu a cuidar-se em circuitos de águas. O peixe-boi era-lhe uma lembrança engraçada. O barco e a ilha grande do outro lado, ia a família inteira. Piselli era urbana, apesar das raízes afeitas ao povo de terra, as descidas que poderiam haver o elo com Minas Gerais, já que tudo que é lusitano pode emergir de lá. Não apreciava as travessias. Belém tinha nome de água. Não obstante, a menina enlouquecia quando se tratava de buscar areias, decidir ondas de mar e catar as conchas que fazem a delícia das mãos e dos olhos. Em manhã radiosa, as espessuras de muitos sóis a dar balanço nas grandes mangueiras das ruas, saíram com riso em rosto, emancipados e condizentes com toda bonomia que o dia abria em leque. Águas calmas, pureza de identidades. Bela como Belém nem outra deve haver. Assim ela pensava, a menina com os dentes incisivos na troca, a queda dos que são de leite por aqueles que um dia vão ser definitivos. Com esmero haviam preparado o lanche, cuidados que antecipavam as alegrias da pequena viagem. Buggiarda ajudava, sorria sempre, embrulhava o presunto e o queixo, os pães eternos e concebidos. A falha nos dentes dispunha a mãe aos afagos em sua face.

    A menina aprendia a identidade das coisas elementares. A beleza em redemoinho que crassa em destroços aparentemente inaproveitáveis da natureza. As areias com textura de sempre e as conchas, desenhos de antiguidades e safras jônicas nelas, as cores entre o roxo e o rubro, alianças perfeitas entre o belo e um ruído de futuro. Aprendia a remar dentro do que mais pequeno fosse. As cargas inenarráveis que mundos amazônicos disseminam e determinam ao espírito de quem nele veleja. Enquanto a mãe conferia os passos da menina, ela toda somada de alegrias, o pai se embriagava à sombra de galhos das margens. Incontenção, a ingestão continuada de doses megatéricas de destilados e fermentados. Porém, já habituadas ao trivial, as mulheres cuidavam do que havia de qualquer proveito em sua ventura de águas e sóis. A garota sorria com suas gengivas de bugra, composta, paralelo do delicado e do altamente profano. Tudo estava dentro das normalidades de um dia que ia avante, quase que em momento de retorno. Fizeram as trouxas. Hora de andar de volta ao centro das urbanidades. O que era um sonho, encontrar frente a frente um enorme e delicado peixe-boi, ela ainda sonhava com o fato, não passou de ser somente ilusão. Mas andara em torno dos elementos em busca da visão. Havia um pequeno corixo que desaguava em águas maiores. Ali, com os pés admitidos ao rés da terra-mãe, a menina procurava o seu entretido maior. Descobria a raridade desses peixes que mamam em teta sobeja. Acariciar o focinho de um deles, como fazia às suas bonecas mais estimadas.

    Porém, nem sempre a natureza resplandece dentro das cores inermes de uma concha. O rubro e o roxo transformam-se em tufão. Dentro da barca que fazia a travessia de volta para casa, a menina via os vagalhões crescerem sobre os seus olhos. Fúria das águas. Se o dia fora fomentado por brisas de calmaria e exuberância, naquele instante o inferno revirava-se em trambolhões escuros. Rios e mares numa confluência desatinada que não parava de crescer. Era a tormenta pior que podia ser vista e enfrentada. Piselli desesperava-se, sozinha dentro de um mundo de solidão. Agravava-se a situação delas, sozinhas e sem apoio que fosse de qualquer estrutura básica. O pai, enfurnado na embriaguez, sentava-se à proa, todo relíquia de um tempo que não existe mais. Não via o que era tempestade, não se dava ao estame do que fosse a bonança. Para uma menina das idades menores, o que fosse tudo era somente o grande pavor. A embarcação havia que tombar a qualquer momento, ir a pique. As ondas eram maiores do que o prédio onde moravam – impressão pavorosa que lhes ficava. Jogava o barco, jogava-se, uma besteira de peso qualquer contra a grandeza dos elementos. Carota, sentado a uma cadeira que deslizava, olhava o mundo em torno e erguia o copo. Brindava. Netuno diante da tormenta. Ignorava o tremor da filha abraçada ao abdome da mãe, seus tremores quando a água fria fazia-se ao hissope da dispersão. Num instante de maior onipotência, ele erguia os braços, deixava nos ares um sorriso bonachão, gargalhado e infecto pelo pigarro. Acendia um cigarro com grande dificuldade, pois que as águas haviam se encarregado de encharcar o que houvesse diante delas. Uma coisa, porém, ficava patente, não se quebrava a garrafa, não pendia e despejava o copo, não se perdiam todos os cigarros. Evidência da fortuna que rege o parque dos bêbados. Num instante de fenômeno, sem ninguém explicar como, de repente brilhava a chama de um isqueiro no centro da borrasca. Com cuidado punha fogo ao tabaco.

    Apavorada a menina Buggiarda agarrava-se aos ensaios da mãe, as vestes com contato molhado. Havia frio e havia um terror que se engrandecia à medida que os madeiros eram lavados pela tempestade. A chuva desprendida de súbito e a ventania de surdez completa. Carota agia com cetros, havia nele a parcimônia de um marechal que dirigia grandes batalhas. Sentado à proa, dirigia o lance de instrumentos virtuais. De vez em quando bebericava uma

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