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A Confissão de um Filho do Século - Alfred de Musset
A Confissão de um Filho do Século - Alfred de Musset
A Confissão de um Filho do Século - Alfred de Musset
E-book313 páginas4 horas

A Confissão de um Filho do Século - Alfred de Musset

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Sobre este e-book

Alfred de Musset nasceu em Paris, no ano de 1810 e faleceu na mesma cidade em 1857. Musset é considerado um dos grandes escritores franceses e reputado por muitos o "menino prodígio do Romantismo" francês. Sua obra-prima "A Confissão de Um Filho do Século", publicada em 1836, é uma obra atemporal sendo considerada uma leitura indispensável, que auxilia o leitor no eterno processo de autodescoberta.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de abr. de 2022
ISBN9786558940333
A Confissão de um Filho do Século - Alfred de Musset
Autor

Alfred de Musset

Alfred de Musset (1810-1857) was a French poet, novelist, and dramatist. Born in Paris, he was raised in an upper-class family. Gifted from a young age, he showed an early interest in acting and storytelling and excelled as a student at the Lycée Henri-IV. After trying his hand at careers in law, art, and medicine, de Musset published his debut collection of poems to widespread acclaim. Recognized as a pioneering Romanticist, de Musset would base his most famous work, The Confession of a Child of the Century (1836), on his two-year love affair with French novelist George Sand. Although published anonymously, de Musset has also been identified as the author of Gamiani, or Two Nights of Excess (1833), a lesbian erotic novel. Believed to have been inspired by Sand, who dressed in men’s attire and pursued relationships with men and women throughout her life, Gamiani, or Two Passionate Nights was an immediate bestseller in France.

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    A Confissão de um Filho do Século - Alfred de Musset - Alfred de Musset

    PARTE I

    Introdução

    Para escrever-se a história da própria vida, é preciso que se tenha vivido. Não é, pois, a minha a que escrevo.

    Atingido, em minha mocidade, por uma abominável enfermidade moral, narro o que me aconteceu durante três anos. Se eu fosse o único doente, nada diria. Há, porém, muitos outros que sofrem do mesmo mal, e é para eles que escrevo, sem estar bem certo de que prestarão atenção. Mas, caso ninguém se acautele, servirão minhas palavras, ao menos, como constatação de que eu próprio me curei e, como a raposa apanha no laço, roí meu pé prisioneiro.

    Alfred de Musset

    Capítulo 1

    Durante as guerras do Império, quando maridos e irmãos se achavam na Alemanha, as mães inquietas puseram no mundo uma geração ardente, pálida, nervosa. Concebidos entre duas batalhas, educados nos colégios ao rufar dos tambores, milhares de meninos se entreolhavam, sombrios, distendendo os músculos entorpecidos. De vez em quando, manchados de sangue, os pais apareciam, levantavam-nos até o peito engalanado de ouro e, depois, pondo-os de novo no chão, tomavam a montar a cavalo.

    Só um homem vivia, então, na Europa; os seres restantes tratavam de encher os pulmões com o ar por ele respirado. Todos os anos, a França dava a esse homem trezentos mil jovens: era o imposto pago a César. Sem esse rebanho atrás de si, não podia seguir seu destino. Precisava dessa escolta para atravessar o mundo, até tombar no pequeno vale de uma ilha deserta, debaixo de um chorão.

    Nunca houve tantas noites sem sono como no tempo desse homem. Nunca se viu, inclinada sobre os muros das cidades, semelhante multidão de mães desoladas. Nunca se fez maior silêncio em torno dos que falavam de morte. No entanto, nunca houve tanta alegria, tanta vida, tantas fanfarras guerreiras em todos os corações. Nunca houve sóis tão puros como os que secaram todo esse sangue. Dizia-se que Deus os fizera para aquele homem, e por isso eram eles chamados os sóis de Austerlitz. Mas, ele próprio os fazia com seus canhões sempre tonitroantes, que só deixavam nuvens nos dias seguintes às batalhas.

    Era o ar desse céu sem mancha, onde brilhava tanta glória e onde resplendia tanto aço, que a juventude da época respirava. Os jovens sabiam que tinham nascido para hecatombes, mas julgavam Murat invulnerável: o imperador fora visto passar numa ponte onde sibilavam tantas balas que não se sabia se iria morrer. Mas, se devesse morrer, que importava? A própria morte era, então, tão bela e tão grandiosa, tão magnífica com sua púrpura fumegante! Parecia-se tanto com a esperança, ceifava espigas tão verdes que parecia tornar-se mais moça, e não se acreditava mais na velhice. Todos os berços de França eram escudos, e todos os túmulos também. Não havia velhos. Só havia cadáveres ou semideuses.

    Um dia, no alto de uma colina, estava o imortal imperador, observando sete povos que se entredevoravam, quando Azrael passou pela estrada e, ignorando se se tratava do senhor do mundo inteiro ou apenas da metade, roçou a extremidade da asa e lançou-o no Oceano. Ao ruído da queda, as potências moribundas ergueram-se em seus leitos de dor, e todas as aranhas reais, estirando as patas aduncas, retalharam a Europa e da púrpura de César fizeram para si um hábito de Arlequim.

    Dia e noite, percorre o viajante o seu caminho, debaixo de sol e de chuva, sem aperceber-se das vigílias e dos perigos; mas, ao tornar à casa, sentando-se diante do fogo, experimenta uma lassidão sem limites e mal pode arrastar-se até ao leito. Assim foi que a França, viúva, de César, sentiu de repente sua ferida. Teve um desfalecimento e dormiu um sono tão profundo que os seus velhos reis, julgando-a morta, a envolveram com uma mortalha branca. O velho exército de cabelos grisalhos regressou esgotado de fadiga e os fogões dos castelos desertos tornaram a acender-se tristemente.

    Então, os homens do império, que tanto tinham corrido e matado, abraçaram as esposas emagrecidas e falaram dos primeiros amores; miraram-se nas fontes dos prados natais e se acharam tão velhos, tão mutilados, que se lembraram dos filhos, para então fecharem os olhos. Perguntaram onde estavam; os filhos, ao saírem dos colégios, não vendo mais sabres, nem couraças, nem infantes, nem cavaleiros, nem perguntaram, por seu turno, onde estavam os pais. Responderam que a guerra estava terminada, César morto, e os retratos de Wellington e de Blucher suspensos nas antecâmaras dos consulados e das embaixadas, com essas duas palavras embaixo: Salvatoribus mundi.

    Instalou-se, então, em um mundo de ruínas, uma juventude inquieta. Todos os jovens eram gotas daquele sangue ardente que inundara a terra. Tinham nascido no seio da guerra, para a guerra. Durante quinze anos, haviam sonhado com as neves de Moscou e o sol das pirâmides. Nunca tinham saído de suas cidades, mas todos eles diziam que, de cada porta dessas cidades, se ia a uma capital da Europa. Tinham na cabeça um mundo. Olhavam a terra, o céu, as ruas e as estradas e viam tudo vazio. Apenas os sinos das paróquias ressoavam ao longe.

    Pálidos fantasmas, vestidos de negro, atravessavam lentamente os campos. Outros batiam às portas das casas e, quando estas abriam, tiravam dos bolsos grandes pergaminhos amarrotados e com eles expulsavam os moradores. De todos os lados chegavam homens muito trêmulos, ainda com o medo que os dominara vinte anos antes, por ocasião da partida. Todos reclamavam, discutiam, gritavam, estranhava-se que a morte de um homem pudesse atrair tantos corvos.

    O rei da França estava no trono, olhando de um lado para outro, a ver se descobria alguma abelha em suas tapeçarias. Uns tiravam o chapéu, e ele lhes dava dinheiro; outros mostravam um crucifixo, e ele o beijava; outros limitavam-se a gritar aos ouvidos grandes nomes retumbantes, e ele pedia que se dirigissem ao salão, onde os ecos eram sonoros; outros ainda, mostravam como tinham apagado bem as abelhas dos seus velhos capotes, e ele lhes dava um hábito novo.

    Os jovens observam tudo isso, pensando sempre que a sombra de César fosse desembaraçar em Cannes e soprar sobre essas larvas; o silêncio continuava sempre, e, no céu, só se via flutuar a palidez dos lírios. Quando os jovens falavam de glória, diziam-lhes: Façam-se padres. Quando falavam de ambição: Façam-se padres. De esperança, de amor, de força, de vida: Façam-se padres!

    Para arengar, subiu à tribuna um homem que segurava um contrato entre o rei e o povo. Começou dizendo que a glória era uma bela coisa e a ambição guerreira também; mas, havia, outra mais bela, que era a liberdade.

    Os jovens levantaram a cabeça e se lembraram dos avós, que assim também tinham falado. Lembrando-se de ter encontrado, nos cantos obscuros da casa paterna bustos misteriosos com longos cabelos de mármore e uma inscrição romana. Lembraram-se de ter visto os avós, na noite anterior, sacudirem a cabeça e falarem de um rio de sangue muito mais terrível ainda que o do imperador. Havia para eles, nessa palavra liberdade, alguma coisa que lhes fazia bater o coração, como uma recordação longínqua e terrível e, ao mesmo tempo, uma grata esperança, mais longínqua ainda.

    Estremeceram ao ouvi-lo; mas ao chegarem, à casa, viram três caixões sendo conduzidos a Clamart: eram três jovens que haviam pronunciado muito alto a palavra liberdade.

    Um estranho sorriso passou pelos lábios ante a triste visão; mas outros arengadores, subindo à tribuna, começaram a calcular, publicamente,

    quanto custava a ambição e quanto a glória era cara. Fizeram ver o horror da guerra e qualificaram de carnificinas as hecatombes. Falaram tanto e durante tanto tampo, que todas as ilusões humanas, como árvores outonais, caíam, folha por folha, ao redor, e os escutavam passavam a mão pela fronte, como febris que despertam.

    Uns diziam:

    ― A causa da queda do imperador é que o povo não queria mais.

    Outros:

    ― O povo queria o rei, e não a liberdade, não a razão, não a religião, não a constituição inglesa, não o absolutismo.

    Um último acrescentou:

    ―Não, nada de tudo isso, mas o sossego.

    Três elementos contribuíam para a vida que então se oferecia aos moços; atrás deles, um passado jamais destruído, agitando-se ainda sobre as próprias ruínas com todos os fósseis dos séculos do absolutismo; diante deles, a aurora de um imenso horizonte, os primeiros clarões do futuro; e, entre esses dois mundos... algo de semelhante ao oceano que separa o velho continente da jovem América, um não sei quê de vago e indeciso, um mar agitado e cheio de naufrágios atravessado de raro em raro por um longínqua vela branca ― ou por um navio soltando uma densa fumaça ― numa palavra, o século presente, que separa o passado do futuro, sem ser nem um nem o outro e se parecendo com ambos ao mesmo tempo, e no qual, a cada passo dado, não se sabe se se marcha sobre uma semente ou sobre uma ruína.

    Era nesse caos que se precisava escolher; era o que se apresentava a moços cheios de força e audácia, filhos do Império e netos da revolução.

    Ora, do passado não queriam nada, que a fé em nada não existe. Quanto ao futuro, amavam-no, mas como! Como Pigmaleão a Galantéia: era para eles como uma amante de mármore, que esperavam se reanimasse e o sangue lhe colorisse as veias.

    Restava-lhes, pois, o presente, o espírito do século, anjo do crepúsculo que não era nem a noite nem o dia; encontraram-no sentado em um saco de cal cheio de ossos, envolvido no manto dos egoístas e tiritando terrivelmente o frio. A angústia da morte penetrou na alma quando viram esse espectro meio múmia e meio feto. Aproximaram-se, como o viajante a quem se mostrasse, em Estrasburgo, a filha de um velho conde de Sarvenden, embalsamada em seu adereço de noiva: o jovem esqueleto faz estremecer, pois as mãos delicadas e lívidas como trazem o anel das noivas e a cabeça tomba, em pó, no meio das flores de laranjeira.

    Quando uma tempestade se aproxima, um vento terrível passa pela floresta e faz estremecer todas as árvores, sucedendo-o então um profundo silêncio. Assim foi com Napoleão, que tudo abalara em sua passagem pelo mundo; os reis sentiram vacilar a coroa e, ao levarem a mão à cabeça, só encontraram os cabelos eriçados de terror. O papa fez trezentas léguas para abençoá-lo em nome de Deus e colocar o diadema, mas Napoleão tomou-o das mãos. Tudo tremeu na lúgubre floresta da velha Europa. Depois, veio o silêncio.

    Costuma-se dizer que, ao encontrarmos um cão furioso, se temos coragem de marchar gravemente, sem nos desviarmos e de maneira regular, o cão se limita a nos seguir durante um certo tempo, rosnando entre os dentes; se. porém, deixarmos escapar um gesto de terror, ou dermos um passo muito apertado, ele investe contra nós e nos devora. Dada a primeira dentada, não há mais nenhum meio de lhe escaparmos.

    Ora, na história europeia, sucedeu, muitas vezes, que, ao fazer um soberano esse gesto de terror, o povo o devorava; mas, quando um fazia, não faziam todos ao mesmo tempo, pois desaparecia o rei, mas não a majestade real. Diante de Napoleão, a majestade real fizera esse gesto que tudo perde, e não somente a majestade, mas também a religião, a nobreza, a onipotência divina e humana.

    Morto, Napoleão, as potências divinas e humanas estavam de fato bem estabelecidas, mas as crenças nas mesmas deixaram de existir. Há um perigo terrível em saber o que é possível, porque o espírito vai sempre mais longe. Uma coisa é dizer-se: Isso poderia ser. Outra: Isso foi. É a primeira dentada do cão.

    Napoleão déspota foi o último clarão da lâmpada do despotismo. Destruiu e parodiou os reis, como Voltaire os livros sagrados. Depois dele, ouviu-se um grande barulho: era a pedra de Santa Helena que acabava de cair sobre o mundo. Logo apareceu no céu o astro glacial da razão, e seus raios, semelhantes, aos da fria deusa das noites, lançando luz sem calor, envolveram o mundo em um lívido sudário.

    Logo surgiram pessoas que odiavam os nobres, que declamavam contra os padres, que conspiravam contra os reis. Gritou-se contra os abusos e os preconceitos. Era uma grande novidade ver o povo sorrir. Quando passava um nobre, ou um padre, ou um soberano, os camponeses que participaram da guerra sacudiam a cabeça e diziam: Ah! aquele, nós o vimos em seu tempo e lugar: tinha outra aparência. Quando alguém falava do trono e do altar, respondiam: São quatro tábuas de madeira: pregamo-las e despregamo-las. Quando alguém dizia: Povo, estás reabilitado dos erros que te haviam desviado, respondiam: Não fomos nós, foram aqueles tagarelas. Quando alguém lhes dizia: Povo, esquece o passado, trabalha e obedece, levantavam-se em suas moradas, e ouvia-se um surdo ruído. Era um sabre enferrujado e amassado, movendo-se a um canto da choupana. Então, acrescentava-se: "Sossega; se não te prejudicam, procura não prejudicar’. Ai de mim! Contentavam-se com isso.

    Mas, a juventude é que não se contentava. Há, no homem, dois poderes ocultos que combatem até à morte: um clarividente e frio, prende-se realidade, calcula-a, pesa-a e julga o passado; o outro tem sede de futuro e se atira para o desconhecido, quando a paixão empolga o homem, a razão o segue chorando e advertindo-o do perigo; mas, logo que o homem atende à voz da razão, logo que reconhece: É verdade, sou um louco; aonde ia eu?, a paixão lhe grita: E eu, vou então morrer?"

    Um sentimento de inexprimível mal-estar começou a fermentar em todos os corações jovens. Condenados ao repouso pelos soberanos do mundo, entregues a bedéis de toda espécie, à ociosidade e ao enfado, os jovens viam distanciar-se as vagas escumantes contra as quais haviam preparado seus braços. Todos esses gladiadores untados de azeite sentiam no fundo da alma uma miséria insuportável. Os mais ricos tornaram-se libertinos; os de fortuna medíocre arranjaram um emprego e se resignaram à beca ou à farda; os mais pobres lançaram-se friamente no entusiasmo, nas grandes palavras, no medonho mar de ação sem fim. Como a fraqueza humana procura a associação e os homens são rebanhos por natureza, a política interveio. Ia-se combater com os guardas do rei nos degraus da Câmara legislativa, corria-se a uma peça de teatro em que Talma trazia uma peruca que o fazia parecer-se com César, acompanhava-se o enterro de um deputado liberal. Mas, dos membros dos dois partidos opostos, não havia um que, ao chegar em casa, não sentisse amargamente o vazio de sua existência e a pobreza de suas mãos.

    Ao mesmo tempo que a vida ambiente era tão pálida e mesquinha, a vida interior da sociedade tomava um aspecto sombrio e silencioso. A hipocrisia mais severa reinava nos costumes. As ideias inglesas juntaram-se à devoção e a alegria desapareceu. Talvez a providência estivesse preparando novos rumos e o anjo anunciador das sociedades futuras semeando no coração das mulheres os germes da independência humana que um dia hão de reclamar. Mas, inesperadamente ― coisa inaudita ― em todos os salões de Paris, os homens ficaram de um lado e as mulheres de outro; e assim, elas vestidas de branco, como noivas, e eles vestidos de negro, como órfãos, começaram a medir-se com os olhos.

    Que ninguém se iluda: a roupa preta que trazem os homens do nosso tempo é um símbolo terrível; para chegar a isso, foi preciso que as armaduras caíssem aos pedaços e os bordados de flor em flor. Foi a razão humana que destruiu todas as ilusões: cobre-se de luto, para se consolar.

    Os costumes dos estudantes e dos artistas, costumes tão livres, tão belos, tão cheios de juventude, ressentiram-se da mudança universal. Os homens, ao separar-se das mulheres, murmuraram uma palavra que fere de morte: o desprezo. E se entregaram ao vinho e às cortesãs. Os estudantes e os artistas fizeram o mesmo. O amor era tratado como a glória e a religião: era uma velha ilusão. Frequentavam-se, então, os maus lugares; e a costureira, essa moça tão sonhadora e tão romântica, cujo amor é tão terno e tão doce, viu-se abandonada nos balcões das lojas. Era pobre, não a amavam mais. Mas, queria ter vestidos e chapéus. Vendeu-se. Que miséria! O rapaz que deveria amá-la, que ela teria amado, aquele que a levava outrora aos bosques de Verrieres e de Romainville, aos bailes campestres, às ceias à sombra das árvores; aquele que ia conversar, à noite, debaixo da lâmpada, no fundo da loja, durante os longos serões do inverno; aquele que repartia com ela o pedaço de pão temperado com o suor do seu rosto, e o seu amor sublime e pobre; aquele mesmo homem, depois de a ter abandonado, tornava a encontrá-la, numa noite de orgia, no fundo do lupanar, pálida e macilenta, perdida para sempre, com a fome nos lábios e a prostituição no coração!

    Ora, nesse tempo, dois poetas, os dois mais belos gênios do século depois de Napoleão, acabavam de consagrar sua vida à reunião de todos os elementos de angústia e de dor esparsos, no universo. Goethe, o patriarca de uma literatura nova, depois de ter pintado no Werther a paixão que conduz ao suicídio, traçou no Fausto a mais sombria figura humana que já representou o mal e a desgraça. Seus escritos começaram a passar da Alemanha para França. Do fundo do seu gabinete de estudo, cercado e quadros e de estátuas, rico, feliz e tranquilo, via chegar a nós sua obra de trevas, com um sorriso paternal. Byron respondeu com um grito de dor que fez estremecer a Grécia, e suspendeu Manfredo sobre os abismos, como se o nada fosse a palavra do enigma hediondo que o envolvia.

    Perdoai-me, grandes poetas, que não passais, agora, de um pouco de cinza e descansais debaixo da terra! Perdoai-me! Sois semideuses e eu apenas um jovem que sofre. Mas, escrevendo tudo isso, não posso deixar de vos amaldiçoar. Por que não cantastes o perfume das flores, as vozes da natureza, a esperança e o amor, a vinha e o sol, o azul e a beleza? Conheceis decerto a vida, decerto sofrestes, e o mundo se desmoronava em torno de vós, e chorastes sobre suas ruínas, e desesperastes; e vossas mulheres vos traíram, e vossos amigos vos caluniaram, e vossos compatriotas não vos reconheceram; e tínheis o coração vazio, a morte diante dos olhos, e fostes colossos de dor. Mas, dize-me, tu, nobre Goethe, não havia nenhuma voz consoladora no murmúrio religioso de tuas velhas florestas da Alemanha? Tu, para que a bela poesia era irmã da ciência: não poderiam ambas encontrar na imortal natureza uma planta salutar para o coração do seu favorito? Tu, que és panteísta, antigo poeta da Grécia, amante das formas sagradas, não podias pôr um pouco de mel nos belos vasos que sabias fazer, tu, a quem bastaria sorrir e deixar as abelhas chegar aos lábios? E tu Byron, não tinhas, perto de Ravena, debaixo de tuas laranjeiras da Itália, debaixo do seu belo céu veneziano, perto do teu querido Adriático, não tinhas tua bem-amada? Mas Deus! Eu, que te falo, que sou apenas um jovem fraco, talvez tenha conhecido males que tu não sofreste, e, no entanto, creio na esperança e dou graças a Deus.

    Quando as ideias inglesas e alemãs passaram assim sobre as nossas cabeças, foi como um desgosto momo e silencioso, seguido de uma convulsão terrível. Porque formular ideias gerais é mudar o salitre em pó, e o cérebro homérico do grande Goethe sugara, como um alambique, todo o licor do fruto proibido. Os que não o leram julgaram ignorar tudo isso. Pobres criaturas! A explosão lançou-as, como grãos de areia, no abismo da dúvida universal.

    Foi como uma negação de todas as coisas do céu e da terra, que se pode chamar desencanto ou, se quiser, desesperança; como se a humanidade em letargia fosse julgada morta pelos que lhe tomavam o pulso. Do mesmo modo que o soldado a quem outrora se perguntara: Em que acreditas?, e que foi o primeiro a responder. Em mim ― assim também a juventude da França, ouvindo a pergunta, respondeu logo: Em nada.

    Formaram-se, então, como que dois grupos. De um lado, os espíritos exaltados, sofredores, todas as almas expansivas que têm necessidade do infinito, curvaram a cabeça, choraram, envolveram-se de sonhos doentios, e só se viram frágeis caniços, em um oceano de amargura. De outro lado, os homens de carne ficaram de pé, inflexíveis, no meio dos prazeres positivos, e só tiveram o cuidado de contar o dinheiro que possuíam. Soluços e gargalhadas, um vindo da alma, outra vinda do corpo.

    Eis o que dizia a alma:

    Ai de mim! A religião se foi. As nuvens do céu se transformam em chuva. Não temos mais esperança, nem espera, nem dois pequenos pedaços de madeira negra, em cruz, diante dos quais estender as mãos. O astro do futuro mal se levanta. Não pode sair do horizonte. O resto, envolvido de nuvens. Com o sol no inverno, seu disco aparece de um vermelho de sangue, que conservou de 93. Não há mais amor, não há mais glória. Que espessa noite sobre a terra! E estaremos mortos quando amanhecer.

    Eis o que dizia o corpo:

    O homem existe para servir-se dos sentidos, e, com mais ou menos pedaços de metal amarelo ou branco, adquire o direito a mais ou menos estima. Comer, beber e dormir ― eis a vida. ― Quando aos laços que existem entre os homens, consiste a amizade em emprestar dinheiro, embora raramente se encontre um amigo que se estime bastante para esse fim; serve o parentesco para as heranças; e o amor é um exercício do corpo. O único prazer intelectual é a vaidade.

    Semelhante a peste asiática exalada dos vapores do Ganges, a medonha desesperança marchava a grandes passos sobre a terra. Chateaubriand, príncipe da poesia, envolvendo o ídolo terrível com sua capa de peregrino, colocara-o em um altar de mármore, no meio dos perfumes dos turíbulos sagrados. Cheios de uma força doravante inútil, os filhos do século retesavam em concha suas mãos ociosas e tragavam a bebida envenenada. Tudo se abismava e os chacais saíram da terra. Uma literatura cadavérica e infecta, que de literatura tinha apenas a forma, mas uma forma hedionda, começou a regar com sangue fétido todos os monstros da natureza.

    Quem ousará contar o que se passava nos colégios? Os homens duvidavam de tudo: os jovens tudo negavam. Os poetas cantavam o desespero: os jovens saíam da escola com a fronte serena, o rosto fresco e vermelho, e a blasfêmia na boca. Predominando o caráter francês, por natureza franco e alegre, os cérebros encheram-se facilmente das ideias inglesas e alemãs; mas, os corações, muito frívolos para lutar e sofrer, feneceram como flores partidas. A ideia da morte friamente e sem abalo, passou da cabeça para as entranhas. Em lugar do entusiasmo do mal, tivemos somente a abnegação do bem. em lugar do desespero, a sensibilidade. Jovens de quinze anos, sentados indolentemente debaixo dos arbustos em flor, sustentavam, por passatempo, palestras que teriam feito estremecer de horror os arvoredos de Versalhes. Com a comunhão do Cristo, a hóstia, símbolo eterno do amor celeste, carimbavam-se as cartas. A juventude cuspia o pão de Deus.

    Felizes os que escaparam a esses tempos! Felizes os que passaram sobre os abismos olhando para o céu. Decerto que os houve, e esses nos lastimarão.

    É infelizmente, verdade que há na blasfêmia um grande desperdício da força que alivia o coração cheio demais. Quando um ateu, tirando o relógio, dava a Deus quinze minutos para fulminá-lo, eram quinze minutos de cólera e satisfação atroz que experimentava. Paroxismo do desespero. Apelo sem nome a todas as potências celestes. Pobre e miserável criatura que se contorce debaixo do pé que a esmaga. Grande grito de dor, e ― quem sabe? ― aos olhos daquele que tudo vê, talvez uma prece.

    Os

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