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Duda
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E-book102 páginas1 hora

Duda

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Sobre este e-book

Decidiram traçar o seu próprio destino e escolheram um amor sem inocência ou culpa.
Esta é a história de Duarte, que se apaixonou desde criança pelo seu irmão Francisco. Ao longo das suas vidas, eles desenvolvem um relacionamento incestuoso que os faz perder a razão e viver afastados da família. Mas este relacionamento irá conduzi-lo à loucura e o final esteve sempre lá. O que temiam aconteceu, e agora que o amor deles é real, nunca mais será o mesmo. 
Duda traz-nos, através da demência da idade, a reflexão que faz sobre as relações e convida-nos a acreditar no que, por vezes, não conseguimos ver.
 
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de dez. de 2021
ISBN9789899052420
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    Pré-visualização do livro

    Duda - Luis Rodrigues

    Usamos a vida dos outros como padrão. Nunca seguimos a vida das personagens de um livro.

    Porque temos medo de que sejam reais, e são.

    1

    O rosto de Duarte marca sofrimento. Uma expressão gasta e usada de quem se reduz. No corredor do hospício ouve-se o chiar das rodas. Insistente e ritmado. Rolam sobre um chão limpo e estéril, quase refletivo, transportando consigo alguém que outrora foi novo.

    Naquele espaço frio, naquela manhã, distante da cidade, acompanhamo-lo moldado aos limites da sua cadeira, empurrado por um enfermeiro com cerca de trinta e muitos anos. O tratador atravessa o corredor com o paciente. Em sentido contrário, cruza-se outro doente. Este caminha pelo seu próprio pé, com um ar mais perdido e menos consciente, dizendo ternuras para alguém que só ele vê. É só este momento que vivemos, num sítio onde as memórias não têm história e a indiferença veste um fato normal.

    As rodas mudam de direção e dirigimo-nos agora para outro corredor com acesso a uma sala de espera.

    – Aguarde aqui que o chamem – despreza o enfermeiro, estacionando a maquinaria.

    O velho observa-o sem responder, enquanto ele se senta removendo um jornal da mesa de apoio e folheia calmamente.

    Uma porta abre-se num só movimento, ecoando no silêncio que impera por todos os corredores daquela instituição. Aproxima-se, decidida, uma figura que avizinha acompanhar toda a nossa história. O doente sente a importância daquele aproximar, o enfermeiro não mostra mais respeito por isso. Quem nos surge é Leonor, a psicologia da instituição, com mais de quarenta anos de idade. É fácil entender que já testemunhou muitas histórias, dentro daquela estufa fria de homens. Não há possibilidade do seu ar ser convidativo e agradável, bem pelo contrário. Esta psicóloga é fria, reservada, veste um fato cinzento escuro pouco feminino e evita demorar nos seus assuntos. Duarte não consegue garantir que ela o olhou nos olhos naquele instante, o habitual gesto de abrir a porta e empurrar o doente é demasiado frequente naquelas instituições, o que torna as pessoas mais amargas, insensíveis e, na opinião de Duarte,… menos lúcidas.

    – Traga-o.

    É o nome próprio habitual. Sempre será. É um tratamento sem tratador. E assim, dentro do consultório, Leonor atravessa a sala sem dar qualquer importância ao paciente. O enfermeiro entra a assobiar e ajeita a cadeira de rodas diante de uma poltrona no centro da sala. Enquanto isso, ela pega desafogadamente numas pastas amontoadas na secretária. Duarte desliza o olhar sobre o consultório, amplo e soalheiro. O seu movimento é lento e atento. Leonor coloca-se sentada à frente do paciente e rabisca um novo relatório.

    – Chama-se Duarte, não é? Tem 80 anos. Qual é a sua data de nascimento, recorda-se?

    Silêncio entre os dois.

    – Duarte?

    Ela aguarda e ele nada responde.

    – Não diz nada? – pergunta impaciente. Ao fim de alguns anos, Leonor habituara-se aos prognósticos sem resposta. Era típica a inatividade de muitos pacientes que perderam a capacidade de diálogo. Competia-lhe, caso não existissem progressos, manter a mesma medicação, desautorizar as visitas e assinar os novos relatórios. Não fazia parte da sua personalidade aceitar de ânimo leve a falta de esforço dos seus pacientes. No início confessava ela alguma agressividade na introdução do tratamento. Com o passar do tempo e muito por culpa dos seus colegas de profissão, começou a consentir e a desligar-se daqueles que não queriam ser ajudados. Mas o que seria isto da ajuda? Quem habitava dentro daqueles corpos, provavelmente gritariam mais alto do que as palavras que se ouviam na realidade. Isso mantinha-a presente.

    Neste impasse e enquanto ela rabiscava alguns apontamentos, Duarte desvia o seu olhar morto, focando a sua atenção sobre algo nas costas da psicóloga.

    – Muito bem – Leonor levanta-se e caminha para trás da sua secretária, despachando novamente as pastas. – Não está a facilitar, Duarte, os tratamentos mantêm-se.

    Ele permanece com o olhar no mesmo ponto, na mesma moldura, posicionada sobre a secretária de Leonor. A moldura está ligeiramente apontada para a porta de saída, revelando uma fotografia de uma menina com cerca de cinco anos, bonita e sorridente.

    – É a sua filha? – pergunta Duarte, falando pela primeira vez.

    – Desculpe?

    – Aquela rapariga. É a sua filha?

    A psicóloga lança um sorriso seco e avança alguns metros.

    – Imaginemos que sim, porque é que ela lhe chama a atenção?

    Estão, agora, à medida que o tempo passa, os dois tornam-se mais próximos e a conversa evolui.

    – Curioso…– responde Duarte.

    – Em que aspeto?

    – Normalmente as fotografias de quem nos é querido estão viradas para nós. Neste caso, não. É como se não a quisesse ver. Porquê?

    Leonor volta a sorrir ironicamente. Aproxima-se ainda mais de Duarte e acrescenta – Eu acredito que o melhor tratamento é aquele em que não se conhece o tratador.

    Pairam alguns momentos de silêncio e o paciente mantém o olhar cerrado na psicóloga.

    – O que é que quer saber de mim? – pergunta-lhe por fim.

    Ela senta-se na poltrona diante dele, cruza a perna e revela um gravador de voz até então discreto. Pousa-o sobre a mesa que os separa.

    – Neste momento, sabe onde está? – começa.

    – Num hospício – responde.

    – E sabe porquê?

    – Dizem que sou louco.

    – E acha-se louco?

    – Se calhar…só um louco se deita e acorda com a mesma vontade de amar quem não pode.

    Há um primeiro sorriso genuíno da parte dela.

    – Portanto acha que está aqui porque amou demais alguém, é isso?

    – Existe razão mais forte para a loucura do que o próprio coração?

    – Sinto que tem uma história. Quer partilhar comigo?

    – Uma história de amor.

    Até para Leonor seria impossível manter a mesma expressão com esta revelação.

    – A melhor de sempre – acrescenta Duarte.

    – Pessoalmente, não costumo ficar curiosa com histórias de amor, mas gostava muito de ouvir a sua – ela consulta o relógio. – Consegue contá-la em cinquenta minutos?

    – …Na minha idade, cinquenta minutos é muito tempo – acrescenta tranquilamente e também ele, por momentos, esboça um pequeno sorriso.

    – O protocolo obriga-me a gravar esta conversa, mas posso abrir uma exceção se o incomodar.

    – Todos os velhos querem deixar marcas neste mundo antes de partir. Está à vontade, doutora, o mundo precisa de saber quem fomos nós. 

    Leonor debruça-se sobre o gravador e prime rec. Duarte segue-a no seu movimento. Depois, levanta o olhar e lança-se no seu passado.

    – Todas as histórias foram criadas para serem recordadas…

    2

    A confusão não está relacionada com a palavra amor, mas sim com a dificuldade em acreditarmos na invisibilidade. Tendemos a criar o que queremos, num fenómeno duvidoso da nossa mente e damos por nós a testemunhar algo que não sabemos sequer se existe…

    O céu azul cintila mesmo à nossa frente, repleto de farrapos brancos que sustentam a curiosidade

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