Constelações urbanas: territorialidades, fluxos e manifestações estético-políticas
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Pré-visualização do livro
Constelações urbanas - EDUC – Editora da PUC-SP
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Reitora: Maria Amalia Pie Abib Andery
EDITORA DA PUC-SP
Direção: José Luiz Goldfarb
Conselho Editorial
Maria Amalia Pie Abib Andery (Presidente)
Ana Mercês Bahia Bock
Claudia Maria Costin
José Luiz Goldfarb
José Rodolpho Perazzolo
Marcelo Perine
Maria Carmelita Yazbek
Maria Lucia Santaella Braga
Matthias Grenzer
Oswaldo Henrique Duek Marques
Frontispício© Ana Claudia de Oliveira, Maria Aparecida Junqueira, Mariangela Belfiore Wanderley. Foi feito o depósito legal.
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP
Constelações urbanas: territorialidades, fluxos e manifestações estético-políticas / eds. Ana Claudia de Oliveira, Maria Aparecida Junqueira, Mariangela Belfiore Wanderley. - São Paulo, EDUC, 2019.
1. Recurso on-line: ePub
Disponível no formato impresso: Constelações urbanas: territorialidades, fluxos e manifestações estético-políticas / eds. Ana Claudia de Oliveira, Maria Aparecida Junqueira, Mariangela Belfiore Wanderley. - São Paulo, EDUC, 2018. ISBN 978-85-283-0623-1.
Disponível para ler em: todas as mídias eletrônicas.
Acesso restrito: http://pucsp.br/educ
ISBN 978-85-283-0645-3
1. Brasil - Política social. 2. Diferenciação (sociologia) - São Paulo (cidade). 3. Política urbana - São Paulo (cidade). 4. Planejamento urbano - São Paulo (cidade). 5. Desindustrialização. 6. Territorialidade humana. 7. Políticas públicas. 8. Imigração. 9. Mobilidade urbana. 10. Escrita-imagem. 11. Manifestações estético-políticas. I. Oliveira, Ana Claudia de. II. Junqueira, Maria Aparecida. III. Wanderley, Mariangela Belfiore.
CDD 361.610981
EDUC – Editora da PUC-SP
Direção
José Luiz Goldfarb
Produção Editorial
Sonia Montone
Revisão
Ana Claudia de Oliveira Maria Aparecida Junqueira
Editoração Eletrônica
Gabriel Moraes
Waldir Alves
Capa
Criação de Nilthon Fernandes, a partir de fotografia de Anne Landowski
Administração e Vendas
Ronaldo Decicino
Produção do ebook
Waldir Alves
Revisão técnica do ebook
Gabriel Moraes
Rua Monte Alegre, 984 – sala S16
CEP 05014-901 – São Paulo – SP
Tel./Fax: (11) 3670-8085 e 3670-8558
E-mail: educ@pucsp.br – Site: www.pucsp.br/educ
Prefácio
As cidades são talvez a maior das invenções
humanas. De início – e há mais de 20.000 anos –, as cidades foram simples aglomerados ou ajuntamentos de pessoas que se constituíram na esteira das possibilidades criadas pela invenção
da agricultura, que exigiu certa imobilidade
para trabalhar a terra e simultaneamente produziu excedentes que liberaram
pessoas e grupos para outros trabalhos especializados. Em 20.000 anos as cidades transformaram a face da terra, os modos de vida humanos, as formas de organização política, as subjetividades individuais, as possibilidades de criação e fruição de lazer e arte, a produção de conhecimento, a tecnologia e pensamento humanos, a geografia de suas localidades e seus entornos.
Nos últimos 200 anos, entretanto, constata-se uma explosão – que se irradia para o mundo todo a partir do século XX – de modos de vida que congregam mais e mais pessoas em cidades. As estatísticas são claras apontando que parcelas cada vez maiores de populações mundo afora passam a concentrar-se em cidades, criando-se metrópoles cada vez maiores e mais complexas. Todos sabemos que esses movimentos são determinados não só por mudanças nas bases tecnológicas que produzem a riqueza e a pobreza nas regiões e países em que cidades nascem e crescem continuamente (ou nas regiões e países de que esses aglomerados dependem), mas também por inflexões nas formas de organização econômica e política a que estão atreladas
as cidades.
Entretanto, o fenômeno das cidades cria outros fenômenos – humanos, sociais políticos, ambientais, geográficos, artísticos – que passam a fazer parte da vida humana, da organização social e política. Criam-se problemas, necessidades, possibilidades, limites, dificuldades, alternativas inexistentes até então.
As cidades são espaços de descoberta de liberdade, mas também de aprisionamento e de alienação. São localidades que facilitam e dificultam a organização social. Geram habilidades individuais (cognitivas e emocionais), modos de sociabilidade inovadores e, simultaneamente, devastadores. Se, por um lado, promovem a descoberta de novos padrões, de novos conhecimentos e de novas necessidades, por outro, impõem restrições severas e aparentemente intransponíveis à criatividade e à inovação. A complexa estrutura e infraestrutura exigidas para a vida urbana são fonte de inspiração a novas descobertas e desafios, mas estão também na origem de – até aqui – incomesuráveis problemas ambientais criados nas próprias cidades ou nas localidades e ecossistemas afetados pelas necessidades criadas pela vida urbana. As cidades e principalmente as metrópoles geram riqueza e acumulação assim como pobreza e miséria, geram infraestrutura e condições de subsistência paupérrimas, segurança e violência, capacidade de inovação e exploração do trabalho, moradia e abandono, educação e exclusão, mobilidade e aprisionamento. As metrópoles são sistemas complexos fortemente marcados por demandas tecnológicas crescentes que deveriam contribuir para resolver suas contradições. As necessárias tecnologias e o urgente conhecimento para tornar nossas cidades e metrópoles menos contraditórias e mais justas, contudo, não são apenas aqueles que se originam das ciências duras e das tecnologias que nelas se baseiam ou se inspiram. As metrópoles exigem conhecimentos do comportamento humano, dos indivíduos e dos grupos sociais, das formas de sociabilidade e das maneiras de conhecer, das possibilidades de aprender e de ensinar. As cidades e as metrópoles são também fenômenos que continuam a exigir o empreendimento humano maior que é a produção de conhecimento.
A cidade de São Paulo é certamente um caso exemplar de complexidade de uma metrópole: os problemas de infraestrutura, as questões habitacionais, as ameaças ambientais, os desafios da mobilidade, a prevalência da violência, a invisibilidade e, simulteamente, completo escancaramento da desigualdade social e econômica, a ausência de projeto e a falta de esperança que marcam inteiros grupos sociais são todos uma face da cidade: pujante, grande, rica e marcada pela desigualdade e por suas terríveis consequências. Mas outra face dessa mesma cidade se descobre na criatividade que ela permite e em certo sentido incentiva, nas possibilidades de fruição que são latentes e podem ser tornadas concretas, nas alternativas de trabalho e formação que nela ainda perduram.
As cidades de maneira geral e especialmente a nossa metrópole – que chamamos São Paulo – são, por razões históricas, assim como por demanda real, objeto de estudo privilegiado. Nossa metrópole deveria também necessariamente ser nosso objeto por razões pragmáticas: todos vivemos nela e todos somos sujeito e objeto de suas características. Os problemas que apresenta e as demandas que impõe para sua solução deveriam ser tomados como prioridade na Universidade.
Mas a cidade jamais poderá ser apreendida como fenômeno, ainda que parcialmente, se não a tomarmos como sistema complexo e que pode ser entrevisto apenas de múltiplos pontos de vista e sistemas de referência. A urgência das questões a serem compreendidas, a abrangência dos temas a serem abordados, a constante presença e a incidência das perspetivas e dos problemas a serem enfrentados tornam a cidade e a metrópole tema de investigação privilegiado na Universidade.
Essa foi a preocupação que dirigiu nossa decisão na PUC-SP de eleger a metrópole
como tema privilegiado de pesquisa. Por isso, criamos um edital de pesquisa que buscava incentivar a emergência de grupo de pesquisa e a sinergia entre grupos já existentes na Universidade, que assumissem como tema de trabalho nossa metrópole. Entendíamos que o sucesso do trabalho dependeria de que os pesquisadores e grupos que o abraçassem tivessem formação e interesses distintos e que estivessem dispostos a enfrentar as eventuais dificuldades que decorrem de formações, metodologias e interesses específicos. Dependeria, ainda, de que um grupo diversificado em suas especialidades e experiente em suas linhas de trabalho enfrentasse o desafio de encontrar, no universo de complexidade de uma metrópole como São Paulo, um fio condutor que desse consistência e produtividade a seus resultados.
É isso que encontramos aqui. Os resultados do trabalho do grupo, que se formou em resposta ao Edital Temático de nosso Programa de Incentivo à Pesquisa (PIPEq), falam por si. Os pesquisadores que compuseram o grupo aceitaram os desafios colocados pela Universidade e com empenho criaram produtos que agora devolvemos à cidade.
O projeto multidisciplinar de pesquisa Territorialidades traçadas pelos fluxos cotidianos populacionais da cidade de São Paulo, que respondeu ao Edital de Pesquisa Temática Metrópole: mobilidade, violência, desigualdade e vida urbana, foi conduzido por um grupo de pesquisadores formado por professores-pesquisadores, pós-doutorandos, doutorandos, mestrandos e estudantes de iniciação científica, representando os anseios da Universidade e demonstrando nossa capacidade de desenvolvimento de trabalho intelectual que contribui para o conhecimento de nossa realidade e para a reflexão crítica sobre essa mesma realidade.
Apresentam-se aqui os pimeiros resultados do trabalho que se debruça sobre várias linhas temáticas: o direito à cidade que oferece bem-estar e que se marca pela desigualdade que nega bem-estar; os deslocamentos e imigrações que são prevalentes na metrópole e criam territórios que muitas vezes operam como lócus e experiência de exclusão; as manifestações culturais que marcam a cidade e, ao mesmo tempo, criam estéticas, proposições sociais, fluxos de sociabilidade, e a invenção de espaços públicos; os jovens e a invenção de culturas, usos, novidades, que reinventam a si mesmos e a cidade, demandando direitos e oportunidades; as políticas de assistência social de habitação revistas à luz da mobilidade – pragmática e simbólica – que engendram.
Apresenta-se aqui também – como resultado – a demonstração de que o trabalho intelectual engajado tem muito a ganhar com a articulação de grupos, com a intersecção de saberes e com a experiência transversal e vertical de pesquisadores.
Finda essa etapa dos trabalhos, restam três esperanças
: que os leitores aproveitem o trabalho realizado e possam nele se inspirar; que novas etapas e novos horizontes possam ser alcançados pelos pesquisadores que construíram Territorialidades traçadas pelos fluxos cotidianos populacionais da cidade de São Paulo; e que a Universidade mantenha seu compromisso de incentivar e induzir – na medida exata de suas possibilidades – a continuidade de trabalhos como os que aqui se apresentam.
Maria Amalia Pie Abib Andery
Reitora da PUC-SP, Professora Titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo na Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento
Sumário
Prefácio
Maria Amalia Pie Abib Andery
Territorialidades nos fluxos cotidianos da população de São Paulo
Mariangela Belfiore Wanderley
Mônica de Carvalho
PARTE I - Territorialidades e alteridades na cidade de São Paulo
Desigualdade intraurbana, territórios e territorialidades = 3 lestes em 1
Dirce Koga
Rodrigo Diniz
Deslocamentos e acessos às políticas de assistência social e habitação na Zona Leste
Carola Carbajal Arregui
Gustavo de Oliveira Coelho de Souza
Rosangela Dias Oliveira da Paz
Desindustrialização: consequências para o mercado de trabalho da Zona Leste
Mônica de Carvalho
Lucia Maria Machado Bógus
Suzana Pasternak
Clarissa Gagliardi
A dialética da inclusão perversa: população em situação de rua e imigrantes
Marisa do Espírito Santo Borin
Dulce Maria Tourinho Baptista
Carolina Teixeira Nakagawa Lanfranchi
Luís Felipe Aires Magalhães
Bolivianos: inserção desigual, territórios e alteridade
Fabio Martinez Serrano Pucci
Maura Pardini Bicudo Véras
Histórias, tradições e associativismo português
Maria Izilda S. de Matos
Leandro R. Gonzalez Fernandez
Elis Regina Barbosa Angelo
Nelly de Freitas
PARTE II - Práticas de comunicação urbana em tempo real
Transpolítica do rush
Eugênio Trivinho
Angela Pintor dos Reis
Bárbara Barbosa
Cláudia Ribeiro Monteiro Lopes
Claudio Abraão Filho
Deusiney Robson de Araújo Farias
Heitor Pinheiro de Rezende
Heloisa Prattes Pereira
Janaína Quintas Antunes
Mario Finotti Silva
Marques Casara
PARTE III - Novos fluxos de manifestações estético-culturais
Na estética das manifestações parietais, uma política da vida
Ana Claudia de Oliveira
Micaela Altamirano
Mariana Braga Pedro Passin
Alexandre P. Sbabo
Alexandre Marcelo Bueno
Maria Aparecida Junqueira
O pixo do Terminal Bandeira: riscos, interações e sentidos
Ana Claudia de Oliveira
À margem: práticas poéticas em pensamento-paisagem
Maria Aparecida Junqueira
Coletivos de arte e a busca pelo comum na multiterritorialidade: um movimento de politização da paisagem cívica
Bader Burihan Sawaia
Roger Seiji Itokazi
Sobre os autores
Mariangela Belfiore Wanderley
Mônica de Carvalho
Territorialidades nos fluxos cotidianos da população de São Paulo
Qual São Paulo emerge da constelação?
Os estudos urbanos têm sido uma marca constante e significativa dos Programas de Estudos de Pós-Graduação da PUC-SP¹. Há muito consolidados em seus respectivos campos epistemológicos, produzindo conhecimento científico de relevância para a compreensão dos processos de transformação das metrópoles brasileiras, muitas vezes em estudos comparativos com metrópoles nacionais e mundiais, foi só a partir do ano de 2016 que se constituiu iniciativa de promover a articulação entre eles, por meio da realização de pesquisa conjunta numa perspectiva pluridisciplinar.
Configurando a cidade de São Paulo como seu objeto empírico de análise, a pesquisa Territorialidades traçadas pelos fluxos cotidianos populacionais da cidade de São Paulo² objetivou investigar as seguintes linhas temáticas:
O direito à cidade: bem-estar urbano e desigualdades;
Territórios, deslocamentos e imigrações na cidade de São Paulo:
b.1. Territórios e deslocamentos na cidade de São Paulo: história e memória de imigrantes portugueses;
b.2. Territórios, alteridade e acesso a políticas públicas de imigrantes bolivianos;
Manifestações culturais com novas estéticas, novas proposições sociais e reinvenção do espaço público:
c.1. Manifestações culturais e seus novos fluxos retraçados por processos comunicacionais de uma nova estética;
c.2. O movimento de ocupação artística
na cidade de São Paulo: uma potencialidade de recriação de espaços públicos?
c.3. Jovens, cultura e política: urbanidades, fluxos, apropriações, usos;
Fluxos populacionais relativos aos acessos às políticas de Assistência Social de Habitação;
Espaço urbano, comunicação em tempo real e crise de mobilidade: significação social-histórica do rush como sintoma metropolitano da condição transpolítica.
Embora o projeto já tenha sido resultado de uma composição concertada entre os grupos de pesquisa, a configuração das linhas temáticas deixou entrever as especificidades de cada campo disciplinar e a tradição epistemológica que lhes é própria, o que, a rigor, não poderia ser diferente, pois jamais se partiu da posição ingênua de que a compreensão pluridisciplinar resultaria do mero colocar junto
das disciplinas.
Em decorrência, o trabalho dos oito subgrupos de pesquisa, compostos de professores-pesquisadores, pós-doutorandos, doutorandos, mestrandos e estudantes de iniciação científica, não se restringiu à produção do conhecimento propriamente dito em relação à cidade de São Paulo, mas acabou por constituir mediação essencial ao diálogo profícuo entre os diferentes campos disciplinares, com vistas a aproximar formas de abordagem teórico-metodológicas, conceituais e bibliográficas, fazendo dele emergir, agora sim, a São Paulo na sua complexidade multifacetada. Caberia lembrar aqui a ideia de constelação sugerida por Adorno, segundo a qual o concreto não é dado
a ser reduzido a cada campo disciplinar, mas é antes resultante da própria constelação formada pelos diferentes campos de conhecimento no esforço de se aproximarem (ADORNO, [1968], 2008, p. 263).
Pretedendo produzir esse campo comum de referências, é que foram realizados dois seminários. O primeiro, em 30 de março de 2017, teve por objetivo circunscrever as noções de território e territorialidades, pontos de partida do projeto em questão. Com base na exposição do conhecimento acumulado pelos grupos de pesquisa, pode-se constatar que ambas tinham seu significado modificado de acordo com o campo epistemológico e a metodolologia adotada. Também se alteravam conforme a circunscrição do sujeito de pesquisa.
No que diz respeito à noção de território, três foram as formas diversas de compreensão apreendidas, uma vez explicitado o sujeito de sua enunciação e produção. A primeira delas, resultante da ação e enunciação do Estado, identificou o território definido pelas políticas públicas: de habitação, de assistência social, de planejamento urbano, de acolhimento (tanto de imigrantes como dos homens em situção de rua), de cultura, mas também pelo território demarcado pelo Estado nacional (a casa de Portugal, Açores e Moçambique). Metodologicamente, o território produzido pelo Estado se traduziu em dados estatísticos, gerando mapeamentos geoprocessados, responsáveis não só por presentificar a produção do espaço, mas também por fornecer uma visagem do alto e de longe
, numa escala distanciada.
Em contraposição, emergiram os territórios que se desenham menos pela imposição da ação e enunciação do Estado e mais pelos percursos e fluxos enunciados da e pela população: fluxos rizomáticos, fluxos da memória, fluxos descentrados (inversão na relação centro-periferia), fluxos deambulantes, apreendidos por meio do relato, seja da história de vida, da memória, seja de entrevistas e de depoimentos. Neste caso, a escala é reduzida e a temporalidade cotidiana se impõe.
Por fim, no confronto dos enunciados-ações anteriores, o território, entendido como fronteira, pois que produzido no contraponto entre o território hegemônico e o seu avesso, redefine centralidades e periferias. Territórios, atores, escalas e temporalidades, portanto, em disputa.
A partir daí, durante a elaboração das questões que articulavam as diferentes pesquisas em andamento nos referidos campos epistemológicos, alguns consensos teórico-metodológicos foram obtidos.
O primeiro deles, como já anunciado, compreendeu que a riqueza dos resultados da pesquisa adviria dos diferentes sujeitos de enunciação da cidade de São Paulo, incluindo a Universidade e seus respectivos campos epistemológicos. Neste âmbito, rejeitou-se a opção por uma forma preliminar e modelar de abordagem que articulasse todos os campos de conhecimento envolvidos. Ao contrário, entendeu-se a unidade metrópole de São Paulo como a que resulta de várias formas de enunciação, aqui entendida como pontos de vista de cada abordagem sobre a metrópole. A unidade não é premissa, ponto de partida, mas ponto de chegada. Unidade do diverso
(MARTINS, 1996, p. 17), ainda que, uma vez atingida, novas diversidades se produzam.
O segundo consenso foi considerar sujeitos de enunciação aqueles que se constituem em objetos dos respectivos campos epistemológicos. Neste caso, também se optou por não privilegiar um em detrimento de outro, obedecendo aos recortes específicos dos campos de conhecimento e concluindo que todos, em articulação, significam a metrópole de São Paulo. Cada um carrega uma voz ou perspectiva de abordagem, tanto os dados estatísticos produzidos pelo IBGE, como as manifestações estéticas dos coletivos culturais e/ou dos diversos grupos sociais que demarcam o espaço físico da cidade, enquanto espaço subjetivado. Ao colocar em relação cada uma das vozes, com as qualidades particulares de tom, timbre, andamento, ritmo, expôs-se a pluralidade de tratamentos da São Paulo configurada, com base no conjunto de perspectivas contidas nas pesquisas realizadas.
Nesses termos, a diversidade pode expressar o que nomeamos São Paulo metrópole. Apropriar-se da diversidade e complexidade da metrópole não requereu reduzi-la a uma unidade epistemológica ou a um único sujeito de enunciação, mas ressaltar o que emerge da metrópole ao enunciá-la. Há, no entanto, que se fazer duas importantes ressalvas. Assumir a diversidade não é reduzir-se a ela, pois que, em primeiro lugar, entre os enunciados produzidos, há diferença de escala. Os enunciados dos diferentes campos epistemológicos subordinam os enunciados dos sujeitos de conhecimento, pois cabe a cada campo analisá-los e lhes dar uma interpretação articulada, ainda que interpretação da interpretação. Essa mesma diferença de escala, todavia, está presente entre os sujeitos de conhecimento. Uma coisa é o enunciado produzido pelos órgãos do Estado, quando se trata da política cultural, outra é o enunciado produzido pelos coletivos culturais ou por artista ativista. A condição da escala é, portanto, uma dimensão que atravessa os múltiplos enunciados, afirmando no social as posições das diferentes vozes configuradas.³
Ao atentar à escala do enunciado, se pretende não apenas sugerir perspectivas em dimensões diversas, como também expressar a condição de poder subjacente aos diferentes enunciados da metrópole; assim como revelar o poder mediador entre eles, aclarando as contradições e conflitos que os atravessam, mostrando a disputa de sentidos que a configuram ou dela se apropriam.
Diversas também são as temporalidades a atravessar os diferentes enunciados. Há temporalidades próprias aos que enunciam, bem como às do lugar de onde enunciam. O tempo é tanto atributo da organização do relato, como data imposta aos espaços produzidos, físicos e estruturais, de onde se enuncia. Relato e espaço são marcados histórica e politicamente, além de cronologicamente; logo, demandam metodologias próprias para que a temporalidade neles contida seja explicitada. Por exemplo, identificar os usos sobrepostos dos espaços físicos apropriados da metrópole em seus diferentes momentos históricos. Ou o uso da história oral, também na sua modalidade de história de vida, de que a memória é componente essencial, captando-se o tempo da metrópole por meio da narrativa. Também o recorte geracional se revelou essencial para captar um outro tempo da periferia metropolitana. Mais uma vez, não se trata de anunciar a diferença per se, mas de entendê-la como expressão de múltiplas temporalidades, elas também em confronto, contradição e conflito. Não há um único tempo na metrópole, mas múltiplas temporalidades em consonância, contraposição, hierarquia ou simultaneidade.
No entanto, assim como é possível dizer que o poder atravessa as escalas nas quais são produzidos os sentidos da metrópole, é possível identificar a imposição de um tempo que se quer homogêneo, hegemônico, linear e progressivo a eliminar as diferentes temporalidades. Nessa perspectiva não bastaria simplesmente assumir os diferentes sujeitos que enunciam a metrópole, porque isso reduziria a noção de diferença à mera particularização dos sujeitos, uns em exclusão aos outros. Ao contrário, quando a questão do poder atravessa tempo e espaço, é preciso fazer com que a diferença deslize para a noção de diferenciação, pois antes se trata não de explodir a totalidade em nome da diferença de cada qual, mas compreender a totalidade como aquela que se revela por meio da diferença que se insurge contra o idêntico, apanágio dos enunciados de poder. Uma totalidade aberta e contraditória, portanto, não sistêmica.
Assim, os resultados da pesquisa, ao darem visibilidade aos sujeitos, quase sempre à margem das centralidades da metrópole, mostraram como esses confrontam cotidianamente os enunciados de poder e produzem espaço urbano sem serem notados. Foi nesta perspectiva, na qual os sentidos emergem das diferenças, que as pesquisas se realizaram.
A noção de territorialidade pretendeu, exatamente, dar conta deste ponto de vista consensualmente assumido, pois que, ao contrário da noção de espaço ou mesmo de território que pretendem sugerir limites bem demarcados, a noção de territorialidade pretendeu evidenciar as fronteiras fluidas e conflitivas produzidas no embate entre os diferentes sujeitos produtores do espaço urbano e em disputa pela sua apropriação real, simbólica, política ou meramente na esperança de reproduzir a vida.
Evidenciando a desigualdade social na apropriação do espaço urbano, confronta-se o tempo-espaço do poder negador do direito à cidade. Fluxos vários e diversos de inserção e resistência, rizomáticos, estratégicos, acidentais, contínuos e descontínuos, emergem em múltiplas territorialidades. A disputa pela cidade se dá pela brutalidade da disputa pela sobrevivência, manifestada tantas vezes pela transgressão, pela violência. Engendram-se estratégias de resistência na construção conflitiva da cidade, na direção do direito à cidade como bem comum. Nesse sentido, ao optar pela noção de territorialidade, estava-se, antes de tudo, fazendo a opção por aquela que carrega consigo o espaço diferencial, o que marca uma diferença em relação ao que se pretende hegemônico.
A partir dos problemas de pesquisa apresentados, configuraram-se, a princípio, três territórios: a região central da cidade de São Paulo em direção à Zona Leste (distritos de Brás e Pari), a Zona Leste da cidade de São Paulo (distrito de Itaquera, como centralidade) e a Zona Sul (sobretudo o distrito do Grajaú). Os distritos mais centrais se configuraram tendo por base a problemática dos imigrantes e da população em situação de rua; para a Zona Leste, confluíam os problemas relativos à reconversão econômica da cidade de São Paulo, os programas sociais de saúde e moradia e os coletivos culturais em seus percursos. Grajaú configurou-se de acordo com a trajetória dos diferentes grupos de cultura nas suas manifestações, mas num percurso que também se direcionava ao centro.
O segundo seminário, realizado nos dias 21 e 24 de outubro de 2017, teve por objetivo a apresentação dos resultados preliminares de cada grupo de pesquisa, reservando-se o segundo dia à discussão das aproximações teórico-metodológicas possíveis. Desse seminário, saíram os principais produtos deste projeto temático: um texto teórico metodológico, decorrente do esforço de aproximação dos diferentes campos epistemológicos, e os resultados de pesquisa de cada um dos subgrupos, materializados em artigo e material audiovisual postados na plataforma (www.fluxossp.br).
Plataforma digital: a publicização da pesquisa
A construção de uma plataforma digital, um dos principais produtos do projeto em questão, foi essencial como primeiro esforço na produção de conhecimento pluridisciplinar.
Desde quando foi proposta, pensou-se em constituí-la como ambiente comum para onde convergiriam todos os resultados das pesquisas realizadas, desempenhando uma dupla função: de um lado, permitindo que os grupos de pesquisa, antes dispersos no espaço físico da Universidade, pudessem compartilhar virtualmente aquilo que vêm realizando; de outro, agora da perspectiva de todo e qualquer pesquisador, permitindo que os estudos urbanos da PUC-SP pudessem se dar a conhecer por meio da sua articulação em um sistema de pesquisa cruzada, produzindo a metrópole de São Paulo em sua diversidade.
Pode-se dizer que esse primeiro objetivo foi alcançado: a plataforma, uma vez constituída, deu maior visibilidade e acesso aos estudos urbanos da PUC-SP, permitindo a uma comunidade mais ampla de pesquisadores a partilha dessa multiplicidade de visões articuladas sobre a metrópole de São Paulo, a partir de um mesmo ambiente.
Ao longo do processo, a plataforma revelou possuir maiores potencialidades do que aquelas aventadas inicialmente. Desde a sua concepção, já estavam previstos produtos compatíveis com a especificidade de uma plataforma digital. No entanto, alguns Grupos se sentiram mobilizados para pensar uma forma específica de linguagem garantida pela tecnologia, articulando vídeo, texto e mapas, de modo a concretizar a diversidade e a complexidade da metrópole no tempo e no espaço. Algumas tentativas-piloto foram realizadas nesse sentido e poderão ser, ainda, objeto de discussões futuras, de maneira que a tecnologia não seja somente meio de exposição, como também mediação no estímulo de produção de conteúdos com características próprias das linguagens de manifestação.
Esse duplo sentido da plataforma caminha em direção ao objetivo central deste projeto: quer seja produzir a constelação dos grupos de pesquisa por meio da qual o conceito da metrópole de São Paulo vai sendo configurado, quer seja dar a conhecer os vários meios pelos quais a metrópole de São Paulo é produzida, mediante exposição e articulação dos vários modos de manifestação da cidade. O esperado é que o pesquisador não se veja diante de uma unidade sistêmica, mas entenda que todas as formas dispostas na plataforma são aquelas pelas quais a metrópole é concebida, percebida e vivida (LEFEBVRE, [1974] 2000, p. 425).
* * *
Este livro está organizado em três partes.
A Parte I – Territorialidades e alteridades na cidade de São Paulo – compreende seis capitulos. Os três primeiros têm a Zona Leste da Cidade de São Paulo como campo empírico das investigações realizadas.
O capítulo Desigualdade intraurbana, territórios e territorialidades = 3 lestes em 1 tem como chave de análise a desigualdade intraurbana e toma a Zona Leste
como foco privilegiado. Partindo dos territórios que a compõem, foram traçadas aproximações sobre os sentidos produzidos e reproduzidos em torno das relações estabelecidades entre as medidas de desigualdades sociais e a configuração de territorialidades que impactam nas leituras e interpretações sobre a cidade de São Paulo, tão diversa, dinâmica e desigual.
Deslocamentos e acessos às politicas de assistência social e habitação na Zona Leste é o foco deste outro capítulo que analisa a mobilidade e acessibilidade às políticas públicas pelos grupos populacionais de menor renda, nessa região heterogênea, cujas discrepâncias representam barreiras objetivas ao acesso e negação do direito à cidade.
O terceiro capítulo trata da Desindustrialização: consequências para o mercado de trabalho da Zona Leste, tem como objetivo observar se é possivel se falar em desindustrialização nessa região da cidade, se tem havido substituição pela atividade de serviços e que consequências relativas ao emprego/desemprego há para os moradores, sobretudo para os mais vulneráveis. Ainda que haja necessidade de mais estudos longitudinais, a pesquisa apontou, preliminarmente, que mais do que a perda de empregos no setor industrial, é a atividade de serviços que não se tem traduzido em empregos de alta especialização. Como se observou, os dados sugerem diferenças entre as Lestes 1, 2 e 3, dando visibilidade às perdas para a população trabalhadora que vê suas oportunidades reduzidas a empregos de baixo rendimento, que exigem menor qualificação.
Outros três capítulos desta primeira parte tratam de temas relacionados às imigrações. A dialética da inclusão perversa: população em situação de rua e imigrantes desvela sujeitos que compõem os segmentos mais vulneráveis da estrutura social — imigrantes e moradores em situação de rua —, cuja inclusão precária se dá em termos de vida, moradia e trabalho. É visivel a tensão entre as condições materiais e objetivas para a sobrevivência e os elementos constituintes das centralidades urbanas. Violências físicas, de parte do poder público, violências simbólicas, de parte dos moradores resistentes a esses gupos populacionais e de parte dos próprios serviços de atendimento, são evidências em vidas marcadas pela exclusão/inclusão perversa.
Outro grupo de imigrantes são sujeitos do capítulo Bolivianos: inserção desigual, territórios e alteridade, em que é analisada a sua inserção no mercado de trabalho, as condições de moradia em configurações de territorialidade, as sociabilidades, a vulnerabilidade e as relações de alteridade. Sua maior concentração está na região central da cidade, em bairros como o Pari, Brás e Bom Retiro. A pesquisa realizada desvela questões de estigmas e etnicidade, as quais sintetizam a inserção subalterna dos bolivianos em São Paulo e sua controversa territorialidade.
Os portugueses são os sujeitos do capítulo Histórias, tradições e associativismo português, que apresenta um estudo sobre a presença destes na cidade de São Paulo, observando o processo de e/imigração luso e sua prática associativa, através das seguintes associações: Casa de Portugal, Casa dos Açores e Casa da Ilha da Madeira. Buscou-se dar visibilidade a esses grupos e recuperar o processo de constituição de territórios associativos. Esses territórios portugueses são lócus de sociabilidade, construção de experiências e trocas culturais. Neles se desenham vivências do presente e do passado, por meio de um conjunto de especificidades identitárias que estabelecem ligações simbólicas, emocionais e que expressam sentidos de pertencimento e de evocação da memória coletiva.
A Parte II – Práticas de comunicação urbana em tempo real – abrange o capítulo Transpolítica do rush que se dedica às relações entre o espaço urbano, práticas de comunicação em tempo real e dimensão transpolítica da vida social, nos períodos de rush nas cidades contemporâneas, neste caso, a cidade de São Paulo. A pesquisa coletiva realizada teve como objetivos principais refletir sobre a significação socio-histórica do rush de fluxos e de seu crash metropolitano, bem como dissecar o papel da comunicação em tempo real, com base no mapeamento de práticas glocais e recursos midiáticos desenvolvidos.
A Parte III – Novos fluxos de manifestações estético-culturais – engloba quatro capítulos.
Na estética das manifestações parietais, uma política da vida é um capítulo que gira em torno da experiência de pesquisadores da PUC-SP que, a partir do Bairro de Perdizes, sinalizam a trajetória da centralidade à periferia mais distante do marco zero de São Paulo, o Grajaú e a Ilha do Bororé. O objetivo é flagrar como essa cidade
da periferia se inscreve neste trajeto da cidade de São Paulo, por meio de manifestações estéticas que deixam as pegadas de seus deslocamentos. Artistas locais como Mauro Neri e seu irmão Wellington (Tim) atuam como agentes culturais, desenvolvendo os Projetos Cartograffiti e Imargem. A efervescência das manifestações estéticas explicita, na vasta quilometragem de mobilidade pelas localidades da megalópole, como a cultura de manifestações parietais, com a sua estética particular, atravessa São Paulo. Abordar esses atravessamentos é um modo de caracterizar as diferenças de acesso dessa população da margem ao bem comum. O rico semantismo de painéis a céu aberto de Enivo, de Alexandre Orion, entre outros, configuram as problemáticas enfrentadas pela gente dessa cidade na cidade.
O pixo do Terminal Bandeira: riscos, interações e sentidos analisa os sentidos contestatórios dos pixos que se inscrevem nas edificações arquitetônicas e do urbanismo da cidade de São Paulo. São manifestações que expõem pontos de vista sobre o contexto sócio-economico-cultural da metrópole. Neste capítulo, especificamente, é dado destaque ao pixo do Terminal Bandeira que passou a interagir com a população desde o natal de 2016.
Manifestações artísticas e literárias nos grandes centros urbanos são o tema do capítulo intitulado À margem: práticas poéticas em pensamento-paisagem
.Tal prática, chamada de arte marginal, de dimensão comunitária, constrói identidade artística e formal para seus produtores e envolve ações de intervenção que questionam a arte e a crítica ao dar novos sentidos a espaços urbanos. Interessa a este capítulo problematizar a configuração dessas manifestações em desdobramentos entre paisagem natural e vida sociocultural de autores periféricos no cenário urbano.
O capítulo que fecha este livro discute os Coletivos de arte e a busca pelo comum na multerritorialidade: um movimento de politização da paisagem cívica. Interroga sobre a potência de ação transformadora dos atuais movimentos de ocupação artística para criar fluxos de enfrentamento, em face do desmantelamento do espaço público e da efetivação da vida social, levando a arte à periferia da cidade de São Paulo. O sujeito narrativo é o Coletivo Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes que tem como objetivo a resistência ao individualismo, à divisão social dos espações da cidade e do trabalho e à mercantilização e afetivação