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Cidade, entre mediações e interações
Cidade, entre mediações e interações
Cidade, entre mediações e interações
E-book518 páginas6 horas

Cidade, entre mediações e interações

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Sobre este e-book

Esse livro decorre de pesquisa coletiva desenvolvida pelo grupo ESPACC (Espaço-Visualidade/Comunicação-Cultura) e tem como meta o desenvolvimento de uma política acadêmica que, partindo de grupos de pesquisa sedimentados, possa permitir pensar a real convergência entre investigações que superam o limitado horizonte dividido entre ensino e pesquisa como metas excludentes. Como decorrência de atividade empírica, não se estuda o espaço urbano, mas a cidade, entendidos como realidades distintas: se o espaço urbano está concentrado na sua natureza física, até sua construção e planejamento, a cidade supõe a densidade vivida naquele espaço, entendido nos seus desdobramentos sociais, culturais e comunicativos.  Nessa polimorfa ressonância, encontram-se dez ensaios que, embora privilegiando a cidade de São Paulo, procuram entender a dinâmica da cidade entre cidades.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de abr. de 2016
ISBN9788534943536
Cidade, entre mediações e interações

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    Cidade, entre mediações e interações - Lucrécia D'Alessio Ferrara

    Rosto

    Índice

    Capa

    Rosto

    Cidade, cidades

    Morar/habitar: cidades inventadas

    As políticas do subterrâneo

    Incêndio na favela: deslocamento do medo e resistência midiática

    A cidade e o carnaval: os processos mediativos e interativos nos circuitos Dodô e Batatinha

    Possíveis Avenidas Paulistas: o olhar e a epistemologia da comunicação

    A imagem dos bairros multiétnicos

    Minhocão: entre o urbano e a cidade

    Mostrar e esconder: os tapumes das construções e a fotografia

    Vila Leopoldina: a vida comum de um bairro degenerado

    Glossário

    Referências

    Sobre os autores

    Ficha Catalográfica

    Notas

    Cidade, cidades

    Lucrécia D’Aléssio Ferrara

    Apresentação

    Esse livro decorre de pesquisa coletiva desenvolvida pelo grupo ESPACC (Espaço-Visualidade/Comunicação-Cultura) e tem como meta o desenvolvimento de uma política que, partindo de grupos de pesquisa sedimentados, possa permitir pensar a real convergência entre pesquisas individuais e uma dinâmica coletiva de produção científica que supere o limitado horizonte do ensino universitário, dividido entre alternativas de ensino e pesquisa como metas excludentes.

    O grupo de pesquisa ESPACC apresenta como uma das suas linhas de indagação a análise de manifestações empíricas da cidade como espaço social e ambiental nas suas manifestações como suporte, mídia e mediação. Como suporte, opera com veículos gráficos ou projetivos, audiovisuais ou digitais. Como mídia, funciona em interface com os signos visual e/ou cinético, que caracterizam todas as manifestações de comunicação, sobretudo aquelas de massa. Como mediação, dá lugar a fluxos sociais e culturais, usos, crenças, valores, imagens e imaginários responsáveis pela mundialização da cultura e dinâmica das metrópoles e lugares da cidade nas duas últimas décadas do século XX e nos dias atuais. Parte-se da hipótese de que esse panorama inventa distintas dinâmicas espaciais, ao mesmo tempo em que celebra outra comunicação de ampla interface com complexos processos interativos.

    A pesquisa intitulada Mediação e interação: por uma arqueologia dos processos comunicativos, apoiada pelo CNPq, desenvolveu o levantamento empírico de processos mediativos e interativos que se apresentam na cidade, entendida como laboratório comunicativo original, onde podem ser encontradas manifestações inusitadas daqueles dois processos. Dessa maneira, procedeu-se ao levantamento e análise de manifestações mediativas e interativas que têm a cidade como cenário ou como ator. Considerando a cidade como território empírico adequado para teste de hipóteses, estuda-se a natureza das mediações e das interações, que levam a identificar o modo como se delineiam e escrevem distintas epistemologias da comunicação. Tais epistemologias manifestam-se, por exemplo, em interações face a face, ou aquelas mediadas por dispositivos eletrônicos, além de algumas essenciais características desenvolvidas pelas novas tecnologias e pela mundialização da cultura em escala global.

    A proposta de pesquisa procura contribuir para a construção de uma epistemologia política da comunicação desenhada pelas configurações semióticas que sustentam os processos mediativos e interativos, compreendidos enquanto matrizes de análise que se detectam em distintas manifestações urbanas. A fim de superar o caráter marcadamente funcional de práticas usuais e rotineiras, a partir das quais a cidade é entendida como instância a ser planejada, coordenada e dirigida por diversos recursos técnicos e públicos, procura-se apreender os vínculos comunicativos que permitem distinguir esferas que, frequentemente polarizadas, se apóiam, de um lado, na característica funcional imaginada pelos planos técnicos e, de outro lado, em dinâmicas cotidianas que transformam a cidade em meio de vida para o qual convergem subjetividades, socialidades, sensibilidades associadas pelo imaginário.

    Como decorrência dessa atividade empírica, o debate não está voltado para o espaço urbano, mas para a cidade, entendidos como realidades distintas: se o espaço urbano está concentrado na sua natureza física, até sua construção e planejamento, a cidade, ao contrário, supõe a densidade vivida naquele espaço, entendido nos seus desdobramentos sociais e culturais que só se tornam incisivos quando comunicados.

    A distinção entre espaço urbano e cidade exigiu um instigante exercício metodológico que, se libertando da simples descrição ou descriminação fenomenológicas das realidades observadas, se debruçou sobre elas a fim de ir além e encontrar as bases que a assinalam configurando, em cada caso, rastros de um modo de ser cidade, entre as cidades do mundo.

    Nesse percurso fertilizaram-se reciprocamente a teoria e a prática, os conceitos e o método, o registro e o ver, sempre à procura de flagrar a cidade nos seus ajustes interativos e descompassos vividos, porém, nos dois casos, refratários à observação, pois não se deixam surpreender de modo espontâneo.

    Naquele rigor metodológico, colidem a fenomenologia e a filosofia arqueológica nas suas simultâneas e características dimensões de discriminação fenomenológica e procura de rastros arqueológicos. Entre os conceitos, atritam-se tecnosferas e psicosferas, o liso e o estriado, mediações e interações, a visualidade e a visibilidade, os espaços e as espacialidades, o tempo e o espaço, os territórios e as territorialidades. Nas frestas entre conceitos e método, esgueira-se a deriva como método sem metodologia estabelecida, a fim de desenvolver a atenção capaz de surpreender o objeto de estudo em um percurso emocional e sensível que constitui o melhor exercício para a apreensão de uma cidade que não se deixa concluir, porque está sempre recomeçando.

    Nesse constante reinício, a cidade apresenta densa complexidade que exige dos pesquisadores atenta atividade a operar sobre conceitos estabelecidos. A relação entre eles conduz à produção de híbridas densidades cognitivas que superam aplicações conceituais, para produzir inferências que nos ensinam a ver através dos conceitos e, sobretudo, além deles. Forma-se uma rede conceitual que, informando a pesquisa através de um glossário, também ensina a produzir conhecimento pelo deslocamento ou expansão que nos possibilita a rever aquilo que a simples aplicação conceitual afirma.

    Através da deriva atenta, surpreendem-se tempos e temporalidades, materialidades e objetos, sociedade e socialidades, o consumo e o consumismo, o medo e a coragem, os meios e as mediações mas, em todas as manifestações, irrompe a cidade sobre o urbano e sobre o poder que a planifica porque, dentro de uma ótica funcional, considera que a cidade é inerte, estanque e submissa a planos, organizações, deliberações e interesses.

    Entre a deriva e os conceitos que podem operacionalizá-la, forma-se um todo coerente feito de inter-relações entre a cidade vivida e o modo como se deixa surpreender, mas longe de uma suposta coerência entre vida, formas e manifestações, não se relativiza a heterogeneidade que faz da cidade um misto, um híbrido, uma complexa forma de conteúdos que se emaranham, embora dialoguem. Nessa polimorfa ressonância, encontram-se nove ensaios que, embora privilegiando a cidade de São Paulo, mas não só, deslocam-se para comparar e entender a dinâmica da cidade entre cidades.

    Morar/habitar: cidades inventadas

    Adriana Gurgel

    Aproximação

    A questão deste trabalho consiste em investigar o habitar que, como ato cultural, produz novos modos de vida ao se relacionar com o morar, ou seja, com o programa que busca direcionar as ações cotidianas de seus usuários. Entendida como meio comunicativo, a cidade é abordada a partir de duas instâncias de análise: o morar programado (q.v. [30]) e o habitar vivido (q.v. [19]), em suas manifestações de visualidade e visibilidade (q.v. [38]) flagradas entre espaços e espacialidades (q.v. [15]) mínimos, como as quitinetes do edifício Copan, em São Paulo. Tendo como horizonte teórico conceitos trabalhados no grupo de pesquisa ESPACC, busca-se surpreender apropriações imprevistas nos índices do habitar e, assim, (re)conhecer cidades cotidianamente inventadas.

    O edifício Copan, marcado pela multiplicidade de programas do morar (e portanto de modos planejados de viver) encontrada no projeto (em suas versões iniciais e final[1]) e na edificação situada no centro de São Paulo, consiste no objeto empírico deste trabalho. A ênfase se encontra nas unidades mínimas ou quitinetes, por sua área reduzida e necessária sobreposição de funções, além da relevância de seus prolongamentos (extensões do morar em espaços externos). O programa mínimo, ao mesmo tempo que limita o espaço privado, expande suas possibilidades de apropriação ao não compartimentar fisicamente funções domésticas como o repouso e o estar, e ao empurrar para fora (ao espaço semi público ou público) ações que, em outros programas do morar, são comumente realizadas no âmbito privado (como a alimentação, lavagem de roupas etc.). Os modos de uso destes espaços mínimos produzem lugares que comunicam interpretações do programa proposto pelo arquiteto e, deste modo, atualizam suas premissas, desconformando-as contingente e transitoriamente.

    Interseção comunicativa: a cidade entre visualidades programadas do morar e visibilidades vividas do habitar

    A cidade, entendida como um laboratório comunicativo onde se podem flagrar manifestações de processos mediativos e/ou interativos, é produzida por lugares que emergem a partir de usos cotidianos mais ou menos fragmentados, imprevistos em maior ou menor grau. Esta produção de espacialidades se dá pelos usuários que, dentre outras ações, habitam – ou seja, apropriam-se de espaços do morar e transformam/transtornam seus programas de acordo com suas necessidades, possibilidades, vontades. O uso proposto pelo programa, estruturado e definido hierárquica e burocraticamente, articula-se, assim, com o uso vivenciado pelo usuário. Neste processo, novas significações são continuamente produzidas e comunicadas de distintos modos, em diferentes meios; neste conjunto de ações, diferenças são (des)veladas e valores são (re)construídos, ou seja, cidades são (re)inventadas. O uso vivido transforma a cidade a partir de ininterruptos processos de mão dupla, e o usuário, aquele que habita, transforma-se em feitor de lugares, o inventor de cidades.

    Uso programado e uso vivido (q.v. [18]), morar e habitar são assim elementos presentes na cidade de modo interdependente e intercambiável que, deste modo, não poderiam ser definidos como polaridades. A distinção aqui efetivada entre estas instâncias inseparáveis decorre da necessidade moderna de organizar e classificar para adequadamente planejar e atingir objetivos estabelecidos a priori; a explicitação de cada um dos conceitos pretende, portanto, facilitar a aproximação aos processos fluidos e imprevistos, muitas vezes dificilmente verificáveis por serem ordinários. Separa-se para, distanciando-se dos ordenadores modernos, pretender, com a temporária fragmentação, construir distinções porosas, membranas permeáveis que possibilitem travessias mais ou menos sobressaltadas e provavelmente surpreendentes.

    O caminho tem como ponto de partida o espaço do morar programado, relacionado às premissas modernas e suas tentativas de direcionar e disciplinar modos de uso deste espaço, e a espacialidade vivida, entendida como o espaço do morar em sua dimensão comunicativa, ou seja, apropriado pelo uso cotidiano - que se aproxima ou se distancia do uso programado de distintos modos. O programa da casa é espacializado e, neste processo, comunica modos de vida que produzem a cidade.

    O morar programado articula-se, aqui, com experimentações modernas efetivadas em conjuntos de moradia emblemáticos, cujo plano pretendia gerar novos hábitos e novas significações sobre o morar. Neste contexto, verifica-se uma tendência universalizante na arquitetura moderna, marcada pela necessidade de racionalizar não apenas os processos construtivos, mas as relações efetivadas na casa. Configurava-se assim um caráter disciplinador que exigia do usuário o aprendizado dos novos modos de utilizar o espaço do morar, e um dos instrumentos de ensino era o programa.

    O programa pode ser apreendido a partir de projetos arquitetônicos em suas diferentes versões (croquis, desenhos, maquetes, memoriais descritivos, anotações etc.) e na própria materialidade da arquitetura enquanto construção física (suporte). As características arquitetônicas dos edifícios (dos elementos de fachadas ao dimensionamento de ambientes, da localização de determinados cômodos à especificação de materiais e tipos de esquadrias etc.) são, portanto, entendidas como elementos de visualidade que possibilitam a leitura dos usos pretendidos, planejados, previstos pelo programa. A visualidade deixa marcas no espaço que, em sua comunicabilidade, configuram-se como ícones que possibilitam a apreensão de hábitos e valores atrelados às características programáticas do morar.

    O programa, no entanto, articula-se inevitavelmente com a instância diária e ordinária de utilização dos espaços. Apropriada pelo uso vivido, a definição a priori dos modos de morar é assim confrontada com os modos de habitar que emergem do cotidiano. O espaço do morar moderno, programado e marcado pela necessidade de ordenamento e disciplina, converte-se em espacialidade do habitar imprevista, singular e apreensível a partir de suas representações. A manifestação comunicativa do habitar consiste em sua visibilidade, ou seja, em índices ininterruptamente produzidos entre o programado e o vivido. Deste modo,

    (...) se a visualidade da cidade está nas formas que a constroem, a visibilidade está na possibilidade do sujeito debruçar-se sobre a cidade, seu objeto de conhecimento para, ao produzi-la cogntivamente, produzir-se e perceber-se como leitor e cidadão. Um cruzamento entre conhecimentos: enxergar para ver/ver-se: viver (FERRARA: 2002, p. 129).

    As características de visualidade e visibilidade de espaços e espacialidades podem ser metodologicamente flagradas a partir da análise de distintos signos - como o próprio projeto arquitetônico, sua materialização construtiva e sua comunicabilidade, bem como em deslocamentos feitos à deriva (q.v. [10]). Em relação à visualidade, portanto, interessa observar modos de morar sugeridos pelo programa e explicitados no projeto, na obra executada e nas imagens produzidas nestes meios comunicativos; a visibilidade, por sua vez, exige a inserção do pesquisador nos espaços do morar e a atenção à produção de espacialidades. Investiga-se assim, entre visualidades e visibilidades, em que medida programado e vivido se relacionam, questionando se (e como) o plano é atualizado pelo uso (ou se há criação de novos programas), e quais modos de viver (com seus valores, hábitos e comportamentos) são explicitados pelas articulações cotidianas entre os modos do morar sugeridos pelo programa e os modos de habitar efetivados pelo uso.

    Visualidade e visibilidade constituem-se, assim, como categorias de análise que se relacionam ao morar programado e ao habitar vivido. Dos ícones atenta-se aos índices e, da estabilidade dos fixos à dinâmica dos fluxos, faz-se a cidade como comunicação:

    (...) a tensão comunicativa entre visualidade e visibilidade (...) deve ser vista como um confronto entre elementos que permitem a inteligibilidade da cidade como complexa realidade cultural (FERRARA: 2002, p. 144).

    É a partir das relações produzidas entre visualidades icônicas do morar e visibilidades indiciais do habitar, ou seja, no diálogo entre os diferentes modos de apropriação do espaço de casa, que se pretende, aqui, apreender a cidade como realidade cultural em constante movimento.

    Ícones mínimos: a quitinete como programa

    O programa é como um mapa: explicita uma situação contingente que se pretende universalizante e manifesta, de modo mais ou menos explícito, ideologias, posições políticas, hierarquias de valores. O programa não existe de modo independente ao uso (sugerido e/ou vivenciado), e a arquitetura não se faz de modo dissociado do usuário, ou seja, não encontra seu significado, se for abordada apenas como materialidade física (como simples suporte). Neste contexto, as unidades de moradia mínimas configuram-se como valiosos espaços de investigação de modos de vida e invenção de cidades: que significações o morar limitado pode produzir? Quais são os índices de permanência (aderências em relação ao programa) e contingência (atualização ou criação de novos programas) passíveis de leitura a partir das apropriações dos moradores?

    Para realizar esta travessia apresenta-se inicialmente o programa mínimo de moradia que se relaciona, por exemplo, com as discussões sobre o Existenzminimum (a célula básica de moradia pesquisada no CIAM II) e experimentações realizadas em conjuntos residenciais na Alemanha. A comparação entre as características programáticas do Existenzminimum e da quitinete brasileira, explicitada a seguir em uma breve arqueologia comunicativa do programa mínimo, não desconsidera a diferença dos contextos de desenvolvimento das duas tipologias, mas manifesta suas aproximações e dessemelhanças a fim de contribuir para a apreensão de suas significações.

    Relações entre mínimos alemães e brasileiros

    De acordo com o dicionário Houaiss, uma quitinete consiste em cozinha muito reduzida ou adaptação de móvel ou parte dele como cozinha, muito usada em apartamentos conjugados, cuja etimologia vem do inglês kitchenet ou kitchenette (1903), identificando uma pequena cozinha ou alcova com instalações de cozinha, derivada de kitchen (cozinha) + sufixo -et ou –ette (HOUAISS: 2009). A palavra quitinete relaciona-se assim diretamente ao espaço da casa que, com os modernos, passou por grande reformulação a fim de adequar-se aos novos modos de vida decorrentes da industrialização.

    O surgimento da quitinete como programa mínimo do morar relaciona-se à grande demanda por habitação decorrente do acelerado e desordenado crescimento das cidades e às características do mercado imobiliário nas primeiras décadas do século XX. Buscava-se, com a unidade mínima, equacionar de modo econômico e rentável a necessidade de espaços de moradia, o custo dos terrenos e o aproveitamento do solo, bem como as tecnologias, técnicas e materiais construtivos disponíveis. Nos Estados Unidos, proprietários passaram a subdividir habitações unifamiliares em unidades menores, capazes de abrigar maior quantidade de moradores e consequentemente elevar o lucro proveniente dos alugueis. Espaços com uso determinado para a atividade hoteleira também foram transformados em moradias mínimas.

    A principal característica da quitinete como programa consiste na sobreposição de funções domésticas (estar, repouso e alimentação), decorrente da redução de sua área ao mínimo considerado aceitável para uma moradia digna. A discussão sobre a definição deste mínimo ocorrera ainda no século XIX, na França e Inglaterra (MUMFORD: 2002, p. 31). Na Alemanha das primeiras décadas do século XX, as realizações de Ernst May em Frankfurt (Das Neue Frankfurt, 1925 - 1930)[2] e as experimentações sobre diferentes tipologias de moradia no Weißenhofsiedlung (1927)[3], influenciaram as pesquisas efetivadas por ocasião do CIAM II (Die Wohnung für das Existenzminimum, 1929, Frankfurt). Neste encontro, arquitetos de distintas nacionalidades ministraram palestras (como as proferidas por Walter Gropius, Victor Bourgeois, Hans Schmidt e Le Corbusier) e discutiram sobre as necessidades básicas da família, a fim de definir o Existenzminimum (célula mínima de moradia).

    Buscava-se, neste contexto, a minimização do espaço da casa de maneira associada à satisfação das demandas dos moradores, a adequação daquele espaço às alterações verificadas no núcleo familiar (como a redução do número de membros e a atualização das atividades individuais exercidas) e ao modo moderno de construir, possibilitado pelas novas tecnologias e pela concepção da arquitetura como um produto racionalizado (padronizado e produzido em série de modo econômico). A célula mínima de moradia deveria, portanto, possibilitar a realização das principais atividades domésticas em espaços funcionais e confortáveis, ou seja, adequadamente organizados para reduzir o tempo destinado a cada atividade e dotados, por exemplo, de iluminação e ventilação natural.

    No Existenzminimum, a redução de área (principalmente da cozinha), número de equipamentos e funções domésticas relaciona-se, assim, a outro modo de morar, sustentado por alterações não apenas no interior das casas, mas também em seu contexto de implantação. Deste modo, atividades que antes eram realizadas em espaços privados específicos (cozinhas, lavanderias) são transferidas para espaços públicos ou semi públicos desenhados para estes fins. Esta transferência de funções domésticas de dentro para fora possibilita, além da minimização da área de espaços específicos, a redução do tempo dispensado a cada atividade - viabilizando, por exemplo, a disponibilização da mulher como mão de obra na indústria.

    Nas discussões sobre o Existenzminimum realizadas no CIAM II, portanto, a implantação das células mínimas deveria ser pensada de modo a compensar a redução de área efetivada nas unidades de moradia. Seus agrupamentos (conjuntos) tiveram que ser concebidos de modo relacionado a espaços externos semi públicos dotados de equipamentos de serviço (como lavanderias e cozinhas) e de lazer (jardins, praças), bem como deveriam ser inseridos em sítios dotados de áreas verdes. Verifica-se, aqui, a interdependência (relação de necessidade, e não contingência) entre o espaço privado da casa e os seus prolongamentos (espaços voltados para atividades de lazer e serviços domésticos deslocados para o exterior). O programa da moradia mínima, portanto, expande-se para fora do núcleo privado e ganha significação quando entendido de modo relacionado às suas extensões, efetivadas no âmbito semi público. Neste contexto, a discussão sobre a moradia mínima não se encerra no CIAM II e continua relevante no encontro seguinte, realizado em Bruxelas (1930), onde foram abordadas as relações entre os espaços de moradia e sua implantação, ou seja, entre a arquitetura e o planejamento dos bairros residenciais.

    Na Alemanha, os conjuntos de moradia popular (que apresentavam tipologias mínimas) eram de modo geral executados em terrenos periféricos (de menor custo), mas situados em áreas providas de infraestrutura urbana. A localização afastada do centro urbano não se configurava como elemento de distanciamento existencial dos moradores em relação à cidade. O programa da célula mínima de moradia digna estava, portanto, diretamente relacionado às características de implantação e à existência de prolongamentos (equipamentos de lazer e serviço) integrados aos conjuntos.

    Na República de Weimar se pretendia, com a construção de conjuntos financiados pelo poder público, atender à demanda habitacional principalmente dos setores menos privilegiados social e economicamente. Estes conjuntos associavam diferentes tipologias, dentre as quais as unidades mínimas. Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, buscava-se atender o mercado imobiliário privado em expansão, oferecendo moradias econômicas também associadas a outras tipologias, mas localizadas principalmente nos centros das grandes cidades, em áreas dotadas de infraestrutura, equipamentos e serviços, e próximas dos locais de trabalho.

    O Existenzminimum e a quitinete brasileira aproximam-se, portanto, na busca pela definição do espaço mínimo de moradia; no entanto, a célula mínima alemã, concebida a partir de critérios de racionalização construtiva e manutenção da qualidade de vida, não necessariamente incluía a sobreposição de funções relacionada à escassez de área, uma das principais características definidoras da quitinete como programa.

    Ao surgir no mercado imobiliário brasileiro, a quitinete se relaciona com o acelerado crescimento das grandes cidades e a verticalização de suas áreas centrais. Volta-se principalmente para locação, atendendo o segmento formado em sua maioria por solteiros ou jovens casais, estudantes, trabalhadores em busca de ocupação ou início de carreira. No Brasil, a unidade mínima (também identificada como apartamento conjugado) possui um cômodo de maior área voltado para as atividades de estar, repouso e alimentação, uma pequena cozinha para preparo de alimentos (integrada ou separada do ambiente principal) e sanitário geralmente sem abertura para o exterior, com ventilação indireta (por dutos) e iluminação artificial. Esta tipologia apresenta entre 25 e 40m² de área total (SILVA: 2013, p. 149), limitando excessos de quaisquer ordem - característica que, assim como no Existenzminimum, favorecia a execução de atividades domésticas de limpeza e manutenção, anteriormente realizadas por empregados.

    O surgimento e a aceitação de novos programas do morar, como o proposto pela quitinete, aconteciam portanto devido a fatores econômicos (interesse do mercado imobiliário em multiplicar as áreas voltadas para a moradia, minimizando investimentos e aumentando lucros), questões técnicas e tecnológicas (viabilização de novas possibilidades construtivas), bem como a aspectos sociais e culturais (criação de novas sociabilidades e modos de se relacionar com a cidade articulados com o processo de modernização).

    Em relação ao local de implantação das unidades mínimas, o contexto brasileiro distancia-se do alemão; no Brasil, a localização central era fator extremamente importante para o êxito da quitinete como produto imobiliário, pois a proximidade dos espaços de comércio, lazer, serviço e trabalho viabilizava o morar mínimo. Estas condições estavam presentes na periferia de Stuttgart, por exemplo, mas não nos arredores de São Paulo. O contexto de implantação da quitinete brasileira era, assim, determinante para a aceitação do modo de morar onde o estar, o repouso e a alimentação se confundiam, pois eram realizados em um ambiente multifuncional.

    A maximização do mínimo no Copan

    Novos modos de morar surgiam concomitantemente às transformações nos parâmetros disciplinares arquitetônicos e urbanos, em curso desde o século XIX. Em São Paulo, uma alteração na legislação passou a permitir a comercialização legal da quitinete como produto imobiliário, ocorrida pela primeira vez no Copan[4]. O edifício se configura, assim, como o primeiro empreendimento paulistano a oferecer as unidades mínimas de moradia. Inseria-se oficialmente no mercado, deste modo, o programa do morar caracterizado pela área reduzida, sobreposição de funções domésticas, banheiros com ventilação e iluminação indiretas e localização privilegiada em relação à existência de infraestrutura urbana e possibilidades de trabalho. As quitinetes oferecidas no Copan configuravam-se, naquele momento, como o programa do morar adequado a migrantes recém chegados, jovens solteiros, estudantes e trabalhadores em busca de uma nova vida.

    O programa do Copan é marcado pela multiplicidade de usos e configurações das unidades de moradia. O edifício se desenvolve como um robusto embasamento que acompanha o desenho do terreno onde se insere e uma lâmina de trinta e dois pavimentos com planta em S. Abriga, em sua base, estabelecimentos comerciais e de serviços; na lâmina, encontram-se 1.160 unidades de moradia de diferentes áreas e configurações espaciais. Divididas em seis blocos independentes, aproximadamente 2.000 pessoas têm o emblemático edifício paulistano como espaço onde o morar se transforma, pelo uso cotidiano, em habitar.

    Inserido no contexto de comemorações do IV Centenário de São Paulo, o Copan faz parte das ações voltadas para a construção de uma imagem de cidade intrinsecamente relacionada ao progresso e à modernidade, identificados com a industrialização e a prosperidade econômica. Naquele momento, a arquitetura deveria, a partir de sua visualidade (programa funcional variado, grandes dimensões, verticalidade, forma livre em S, homogeneidade das fachadas, especificação de materiais), articular indicialmente o edifício e a cidade de modo relacionado à imagem que se pretendia construir de São Paulo. O Copan, a partir de sua arquitetura, deveria manifestar, em sua visibilidade, valores como poder, força e solidez, ou seja, deveria existir como parte de um impactante presente capaz de engendrar um futuro glorioso.

    O edifício executado no centro de São Paulo apresenta significativas diferenças em relação ao projeto elaborado por Oscar Niemeyer na década de 1950. Há duas versões publicadas em um mesmo número da revista L’Architecture d’Aujourd’hui (1952); em ambas o conjunto pensado para o Copan era composto por embasamento e dois edifícios independentes (hotel e residencial), volumetricamente diferentes e integrados ao terraço, reforçando a fluidez de deslocamentos entre os dois edifícios a partir de uma área de lazer compartilhada e facilitando a utilização dos equipamentos tanto pelos moradores, como pelos hóspedes do hotel, além do público em geral[5].

    img1-copan-versao1.jpg

    Planta pavimento tipo – versão inicial (L´Architecture d´aujourd´hui, 1952)

    img2-copan-versao-final.jpg

    Planta pavimento tipo – versão final (LEMOS: 2014, p. 132, 133)

    A versão final do projeto foi desenvolvida por Carlos Lemos; entre a primeira proposta apresentada na revista francesa e o edifício executado foram efetivadas inúmeras modificações[6]. Estas alterações, realizadas ao longo da obra, relacionam-se principalmente a questões financeiras e ao atendimento de expectativas do mercado imobiliário. Neste contexto, as modificações mais significativas ocorreram no programa das unidades de moradia, principalmente nos blocos E e F. Originalmente projetados para abrigar amplos apartamentos de quatro dormitórios (cada bloco), apresentam no edifício construído quitinetes e apartamentos de um dormitório[7].

    Além dos blocos E e F, o bloco B também passou por relevante reformulação de seu programa e abriga o maior número de quitinetes do Copan (448). Na planta publicada em 1952 (primeira versão do projeto), as unidades correspondentes aos blocos A e B configuram-se como um único bloco, composto por quitinetes e apartamentos de um dormitório[8]. Em relação ao acesso às unidades de moradia situadas nesta porção do edifício, havia uma torre única de circulação vertical (elevadores e escadas) que servia todo o pavimento tipo e era alcançada a partir do corredor central situado entre as unidades voltadas para a fachada principal e para a fachada secundária. O restante da lâmina (correspondente aos blocos C, D, E e F), além do acesso à torre de circulação vertical a partir do corredor contíguo à fachada secundária, contava com três pares de elevadores. No projeto executado, a torre de circulação vertical possibilita acesso apenas ao bloco B, tendo os demais blocos entradas independentes.

    As quitinetes abrangem assim, quase 50% da área do pavimento tipo do edifício executado[9] (GALVÃO: 2004, p. 31-35), e configuram-se como o programa de morar que identifica o bloco B. Além das quatorze quitinetes (com área aproximada de 32m²), compostas por um ambiente multifuncional, banheiro e cozinha, o bloco B conta com seis unidades de moradia compostas por sala, um dormitório, banheiro e cozinha, distribuídos em 48m². Em cada pavimento, portanto, tem-se vinte unidades, totalizando 640 (448 quitinetes e 192 apartamentos de um dormitório) no bloco mais extenso do Copan. O acesso às unidades acontece a partir da torre de elevadores destacada do corpo do edifício, onde se encontram cinco elevadores, escada de emergência e depósito de lixo em cada pavimento. Os elevadores possuem a metade do número de paradas em relação ao número de pavimentos (32), de modo que o morador ou visitante sobe ou desce uma rampa para acessar o sinuoso corredor de dois metros de largura e chegar aos apartamentos do bloco B.

    img3-bloco-B.jpg

    Bloco B – quitinete (acima) e apartamento de um dormitório (LEMOS: 2014, p. 144)

    Com largura variando entre 3 e 3,70m e aproximadamente 4,30m de comprimento no ambiente multifuncional, as quitinetes executadas no bloco B contam com banheiro e cozinha de área reduzida e sem aberturas para o exterior. A planta publicada na revista francesa traz duas sugestões de utilização dos espaços: na primeira, elaborada para a unidade situada na extremidade nordeste e voltada para a parte de trás do edifício, o layout mostra o ambiente multifuncional abrigando estar, repouso e alimentação (cozinha integrada), e banheiro de grande área em relação ao total; há ainda um armário embutido que conforma o corredor de acesso. O outro layout corresponde a uma quitinete situada na parte da frente do edifício, de planta alongada, banheiro reduzido e com separação entre as áreas de repouso (contígua ao banheiro) e estar / alimentação (com abertura para a fachada principal). No projeto executado, a cozinha é delimitada e possui abertura para um fosso; na primeira versão não há conformação física da área de cozinha.

    A esquadria de vidro do piso ao teto (com superfície translúcida na faixa inferior) explicita, na fachada secundária do Copan, a extensão e heterogeneidade do bloco B, marcado ainda pela plasticidade da torre de circulação vertical. Nos demais blocos, adotou-se uma composição de elementos vazados (cobogós) e brises em trama retangular, associada às escadas helicoidais (acesso secundário aos blocos A, E e F)[10]. A solução de visualidade adotada nesta fachada difere bastante, portanto, dos brises horizontais da vista principal do edifício.

    À deriva entre índices: transgressões do programa mínimo

    Transtornos de um plano ou significações em distintas escalas

    Verifica-se assim que há, no Copan, uma multiplicidade de programas (atualizações de um mesmo programa, programas originais desvelados ou novos programas?) entre as propostas publicadas em 1952, as plantas aprovadas pela Prefeitura de São Paulo em 1961 e o edifício executado e entregue aos moradores. Esta variedade se relaciona a adequações às contingências do empreendimento (de sua concepção à execução e operação), que fazem parte do desenvolvimento de qualquer projeto em arquitetura. O Copan, no entanto, tem força comunicativa continuamente explicitada em inúmeros suportes: alimenta pesquisas acadêmicas, experimentações artísticas, publicações em revistas especializadas, reportagens veiculadas na internet. Recebe visitantes do mundo inteiro, seus moradores são procurados para dar entrevistas. O edifício se constrói como ícone e índice de São Paulo, representando cidades imaginárias e imaginadas – desejadas ou rejeitadas, conhecidas, reconhecidas, desconhecidas. É seu múltiplo e extenso programa, explicitado por sua visualidade, que alimenta as distintas imagens do edifício e da cidade onde ele se insere.

    O que se investiga aqui são as relações entre as características de visualidade destes distintos programas que marcam a história comunicativa do Copan e, a partir de seus ícones, compreender imagens possíveis do habitar, produzindo um conhecimento sobre a cidade. Pode-se questionar, assim, o significa (ou pode significar) ter o Copan como casa: o que simultaneamente distancia e aproxima este morador de qualquer outro, e qual cidade se relaciona com este modo de habitar? Ou ainda o que significa morar no edifício, mas no bloco B, e qual cidade se inventa a partir deste habitar?

    Inúmeras representações distinguem, nesta escala macro, aqueles que vivenciam o Copan como espaço do morar (e produzem, imprevista e cotidianamente, o habitar), daqueles que apenas transitam pelo edifício - sejam frequentadores habituais ou acidentais de lojas e restaurantes, amigos de moradores, funcionários do Copan. Este traço de distinção relaciona-se com as características de visualidade do edifício (programa arquitetônico, volumetria, soluções de fachada, dimensões, materiais, localização etc.) e seus índices de visibilidade, produzidos pela instância vivida e constantemente atualizados de inúmeros modos. Neste contexto, morar/habitar o Copan pode significar fazer efetivamente parte de São Paulo (por conta da aproximação sígnica entre o edifício e a cidade) e ser privilegiado por usufruir de um modo de vida não facilmente verificado na capital paulista (devido às características programáticas do empreendimento, como sua localização, infraestrutura, oferta de comércio e serviços, além da ideia de segurança possibilitada pelos mecanismos de controle existentes no edifício); ou ainda vivenciar uma obra de arte, um edifício com assinatura (ressalta-se assim a força do nome do arquiteto, apesar de sua controversa relação com o projeto), de desenho exclusivo e relevante na história da arquitetura brasileira; viver o Copan pode significar exclusividade (ou seja, ter poder para se distinguir), pois habitar o edifício é para poucos (os que podem pagar, pois o metro quadrado no edifício é mais caro do que a média da região[11]; os que conseguiram e garantiram sua permanência, pois a demanda hoje é maior do que a oferta de unidades), ainda que estes poucos sejam muitos. As significações sobre o morar (o habitar) são assim mutáveis, mais ou menos imprevistas, e consistem em um sem número de possibilidades.

    Os índices que produzem estas significações são apreensíveis na observação de diferentes relações que alimentam, além daquela distinção entre aqueles que habitam o Copan e os que não o fazem, um traço de diferenciação associado ao espaço

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