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Aspectos probatórios da responsabilidade civil pelo dano ambiental
Aspectos probatórios da responsabilidade civil pelo dano ambiental
Aspectos probatórios da responsabilidade civil pelo dano ambiental
E-book405 páginas5 horas

Aspectos probatórios da responsabilidade civil pelo dano ambiental

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Sobre este e-book

O presente livro examina as técnicas processuais tradicionalmente utilizadas para provar as alegações de fato em litígios pertinentes à jurisdição civil ambiental. A questão fundamental é saber se tais instrumentos são capazes de captar a complexidade em que frequentemente se insere a degradação ambiental. Nessa toada, constatou-se que a imputação das consequências civis pelo dano ambiental baseada na convicção de verdade e de certeza comprometeria sobremaneira a efetividade do direito material violado.
No entanto, em que pese a dificuldade da questão, não se dispensa o seu equacionamento. Assim, a materialização do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva impõe a adoção de técnicas processuais adaptadas às lides ambientais, tornando o instrumento, que é o processo, adequado para atingir as suas finalidades.
Dessa forma, esta obra procurou expor aspectos da atividade instrutória na comprovação do dano ambiental para fins de apuração da responsabilidade civil à luz das peculiaridades do direito ambiental material e das circunstâncias do caso concreto.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento28 de jan. de 2022
ISBN9786525221960
Aspectos probatórios da responsabilidade civil pelo dano ambiental

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    Pré-visualização do livro

    Aspectos probatórios da responsabilidade civil pelo dano ambiental - Eliane Mitsuko Sato

    I - O PROGRESSO TECNOLÓGICO E O DANO AMBIENTAL: A DESMISTIFICAÇÃO DA CIÊNCIA E O DIREITO AMBIENTAL

    1. A VULNERABILIDADE DO MEIO AMBIENTE COMO EFEITO COLATERAL DO PROGRESSO TECNOLÓGICO

    A busca do conhecimento verdadeiro figura entre as atividades a que os seres humanos se dedicaram de forma resoluta ao longo de sua História. Desde os primórdios, o homem almeja conhecer o mundo que o circunda. No intuito de encontrar respostas para os problemas, diversas explicações foram elaboradas, aceitas e abandonadas.

    Esse mister contribuiu para o domínio das leis que regem a ocorrência dos fenômenos naturais, permitindo a construção de ferramentas para debelar as ameaças oriundas do meio¹. A descrição objetiva dos fatores que ocasionavam os eventos observados e o êxito na previsão dos seus efeitos possibilitou a manipulação do mundo tangível, sucesso que transformou a ciência e a aplicação prática do saber teórico², isto é, a tecnologia³, respectivamente, em modelo de conhecimento racional da realidade e de solução de todos os problemas da modernidade.

    Tal hegemonia foi consolidada com a absorção da ciência e da tecnologia pela economia, processo que se acentuou a partir do final da Segunda Guerra Mundial. A facilidade de lidar com novos conhecimentos e alterações estruturais promoveu a interação destes sistemas que acelerou a produção e o consumo de inovações científicas e tecnológicas pelo mercado global⁴. Assim, ciência e tecnologia converteram-se em força produtiva e seus frutos em mercadorias⁵.

    Incrementar a produtividade, especialmente a industrial, tornou-se o objetivo comum das políticas econômicas nacionais, dadas as suas repercussões no crescimento econômico de um país. Neste processo, cada vez mais matéria-prima e energia passaram a ser demandadas com o objetivo de sustentar este movimento.

    Sucede que a intensificação do aproveitamento dos recursos naturais e a utilização massiva dos artefatos tecnológicos geraram efeitos negativos extremamente gravosos. De fato, a extração predatória de recursos naturais, o lançamento de resíduos domésticos e industriais, a ocupação humana para fins de moradia e de exploração agropecuária, a realização de obras de infraestrutura, o transporte de pessoas e de bens, dentre outras, são ações que interferiram significativamente no meio circundante.

    O impacto humano no planeta é tão profundo que muitos estudiosos o compara a episódios que, em tempos imemoriais, teriam exterminado grande parte das formas de vida que um dia habitaram a Terra⁶, sendo difundida no âmbito científico a expressão Antropoceno para designar a época geológica atual. É inquestionável que o desenvolvimento da ciência e o incremento do poderio técnico a ele correlato contribuíram decisivamente para este cenário, expandindo em ritmo acelerado e contínuo as possibilidades de intervenção na realidade.

    Contudo, o aumento da capacidade humana de agir não foi acompanhado pelo de prever suas consequências. Muitos dos resultados ruinosos não foram previstos ou confirmados pela ciência. É certo que a heterogeneidade dos eventos e as infinitas possibilidades combinatórias entre eles autorizam supor que determinados efeitos sequer poderiam ter sido vislumbrados nem mesmo pelos mais competentes especialistas e com o uso dos mais sofisticados equipamentos. Neste sentido, SANTOS pontua que, se no passado as ações e as respectivas consequências partilhavam a mesma dimensão espaço-temporal, hoje a intervenção tecnológica pode prolongar as consequências, no tempo e no espaço, muito para além da dimensão do próprio acto através de nexos de causalidade cada vez mais complexos e opacos.

    Em suma, a magnitude das perturbações experimentadas e a insuficiência do conhecimento disponível para identificar a totalidade das consequências advindas da intervenção humana na natureza apontam para a existência de uma ameaça sobre as condições indispensáveis para a sobrevivência de todos os seres vivos. Consoante percebera JONAS, os danos já produzidos em decorrência do agir humano, potencializados pela tecnologia, autorizam inferir a alarmante vulnerabilidade da natureza⁸. No entanto, a real dimensão da ameaça e a probabilidade de ocorrência são ignorados pelo estágio atual do saber.

    2. O ANTAGONISMO DO PAPEL DA CIÊNCIA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

    A ciência é valorizada hodiernamente como modelo de racionalidade. É comum a invocação de estudos e pareceres de especialistas para defender posicionamentos e fundamentar decisões⁹. Impende examinar as razões pelas quais a racionalidade científica ocupa posição hegemônica na explicação dos fenômenos.

    Parte deste primado da ciência advém da suposição de que a verdade pode ser descoberta por meio da pesquisa neste setor. É largamente difundida a visão de que o conhecimento científico se fundamenta em evidências rigorosas e exaustivamente verificadas, resultando em teorias precisas que descrevem, explicam e predizem os fenômenos naturais, estando a pesquisa e os seus resultados a salvo de postulados morais ou de interferências de ordem política, social ou cultural. Objetividade, neutralidade e autonomia, valores encarecidos pela comunidade científica¹⁰, conferem credibilidade ao conhecimento produzido por meio da ciência. Concorre para este amplo prestígio o constante trabalho dos pesquisadores em aperfeiçoar suas teorias. A partir de um conjunto de premissas teóricas e metodológicas, os dados obtidos durante a pesquisa são analisados, extraindo-se daí eventuais regularidades que estabelecerão as condições para predizer o comportamento futuro do fenômeno estudado. Alcançado um consenso estável na pesquisa com a aceitação destes resultados por parte expressiva da comunidade científica, a investigação passa a se concentrar no detalhamento de fenômenos específicos e no refinamento da teoria, reduzindo-se o campo de investigação¹¹.

    Esse contínuo processo de revalidação e reavaliação aliada ao êxito no prognóstico dos resultados dos eventos naturais reforça a confiança na ciência, transformando-a na forma preferida de produção do conhecimento em detrimento das demais formas de saber, as quais usualmente se recusa a chancela de racional por não seguirem as premissas e os métodos científicos.

    No entanto, essa crença na infalibilidade da ciência tem sido alvo de críticas. Todo o conhecimento científico acumulado não foi capaz de prever e impedir a ocorrência de acidentes de grandes proporções que atingiram tanto o meio ambiente, afetando de maneira significativa o equilíbrio ecológico, como um considerável número de pessoas, impingindo agravos à sua saúde e ao seu patrimônio. A este propósito, BECK observa de maneira contundente que a "história da conscientização e do reconhecimento social dos riscos coincide com a história da desmistificação das ciências".¹²

    Uma das possíveis causas para essa falha advém da metodologia científica de perfil tradicional. Com efeito, dada a abundância de problemas e de fenômenos passíveis de estudo, o pesquisador se vê na contingência de ter de selecionar aqueles sobre os quais direcionará sua atenção, sendo forçado a afastar as conexões do objeto com outras realidades ou a tratar tais relações de maneira superficial. Disto resulta um saber altamente especializado que será empregado na concepção de soluções igualmente pontuais.

    Ocorre que essa forma de abordagem com demasiado grau de compartimentalização propiciou o surgimento e o desenvolvimento dos riscos civilizacionais¹³. A ação centrada exclusivamente no objetivo em mira tem ocasionado desarranjos conjunturais que contribuem para a consolidação da sociedade de risco. Nas palavras de BAUMAN:

    A busca, focalizada em problema, da eficácia, admitidamente o recurso mais poderoso e mais gabado da tecnologia, repercute em impulsos descoordenados de maximização. Ainda que cada impulso seja eficaz para resolver a tarefa em mão (ou, antes, porque é tão eficaz), o resultado geral é o volume e a intensidade sem cessar crescentes de desequilíbrios sistêmicos. A estratégia, que ganhou seus lauréis de seu sucesso espetacular em construir ordens localizadas, é ela própria o fator maior da desordem global que aumenta rapidamente¹⁴.

    Além disso, a seleção do objeto de pesquisa científica não é aleatória. Os temas que despertam mais interesse dos pesquisadores e dos financiadores nem sempre são os mesmos que necessitam de mais estudo. Frequentemente a escolha é pautada pela expectativa de exploração econômica e militar de seus resultados, como é o caso da tecnologia transgênica que rapidamente se desenvolve impulsionada pelo agronegócio¹⁵. O inverso também ocorre: o receio das repercussões políticas e econômicas negativas em decorrência de erro na fixação do teto de tolerância aos pesticidas pode desestimular a realização de pesquisas que tenham por objetivo aprofundar o conhecimento sobre os efeitos da acumulação destas substâncias no organismo humano¹⁶.

    Mesmo a atividade de identificação dos riscos civilizacionais é incentivada pela parcela do mercado que lucra com a produção e disseminação do conhecimento sobre eles e com a comercialização de produtos ou serviços projetados para afastar ou minorar seus efeitos¹⁷. Ocorre que a pesquisa conduzida segundo uma abordagem apartada das dimensões social e ecológica dos fenômenos, típica da metodologia científica dominante, é inadequada para uma avaliação de risco confiável nesta conjuntura¹⁸.

    Não se deve olvidar que os valores influenciam a pesquisa muito mais do que os cientistas costumam admitir. A formulação de teorias não prescinde da atividade intelectual do seu autor na interpretação dos dados obtidos, observando-os e organizando-os segundo sua mundividência, que, por sua vez, resulta das informações, valores e experiências acumuladas ao longo de sua vida. Além disso, como todo ser racional que vive em sociedade, o cientista sofre influências políticas, sociais e culturais do seu meio.

    Esses fatores explicam a ampla acolhida da Teoria da Evolução de Darwin. Consoante anota SANTOS, merece destaque a sintonia existente entre as conclusões desta Teoria e as concepções políticas, econômicas e sociais em voga na época em que foi formulada, pontuando que a seleção natural dos mais aptos é uma história de progresso, de expansão, de invasão e de colonização; é, em suma, quase uma história natural do capitalismo ou uma história do capitalismo natural¹⁹.

    No tocante aos riscos civilizacionais, acostumada a refutar as hipóteses que não pudessem ser exaustivamente verificadas, a posição inicial da comunidade científica foi a de negar a existência dos efeitos colaterais do progresso tecnológico mesmo quando seus sinais eram sentidos pela população na forma de agravos à saúde e de deterioração generalizada das condições ambientais. As percepções oriundas do senso comum foram menosprezadas em um primeiro momento por serem consideradas irracionais.

    Outro falseamento em que a ciência dominante incorreu concerne à identificação das ações potencialmente danosas. Não se atribuía a alcunha de arriscada a atividades cuja periculosidade não pudesse ser confirmada pelos rígidos critérios científicos, postura que se mostrou equivocada.

    Em síntese, de um lado, a ciência é enaltecida pelos benefícios proporcionados aos seres humanos, sendo inegável a sua contribuição para o florescimento de áreas como a medicina, a engenharia e a informática. Do outro, pesa contra ela a acusação de ser corresponsável pelas ameaças incomensuráveis sobre a base natural da vida, na medida em que potencializou a capacidade humana de destruição. O seu êxito em descrever fenômenos e regularidades não se repetiu na elucidação e antevisão dos efeitos adversos do progresso tecnológico. A falha na identificação destes riscos pôs em xeque a crença generalizada na infalibilidade da ciência para conhecer a realidade.

    Seja qual for o mérito a ser atribuído a essas considerações, elas repercutiram no seio da comunidade científica. Os próprios cientistas empreendem uma autocrítica em relação ao modelo tradicional de racionalidade²⁰. Uma delas consiste na admissão da premissa de que a ciência parte da seleção arbitrária de critérios que reduzem a natureza, um todo complexo, às leis naturais²¹. De outra banda, percebeu-se que o ato de observar e de medir interfere no objeto em estudo, impedindo o conhecimento neutro e totalmente desvinculado do sujeito observador²².

    Registre-se, ainda, o socorro crescente às metanálises, frequentemente utilizadas em setores em que existe uma proliferação de publicações, como na Medicina. Trata-se de estudos que têm por objeto revisar e reunir o resultado de várias pesquisas científicas sobre um mesmo problema em busca da solução de divergências entre suas conclusões, ante a constatação de que algumas destas contradições são ocasionadas por investigações de má qualidade, sem metodologia confiável ou enviesados. O pesquisador formula a pergunta, realiza uma revisão sistemática da literatura com o objetivo de localizar estudos que tentaram responder à mesma questão, descarta aqueles inconsistentes ou de metodologia obscura, coleta os dados das publicações remanescentes e os submete a um rigoroso cálculo estatístico. Esta depuração inclui as distorções provocadas pela ausência de estudos que deixam de ser publicados por não haver interesse na sua divulgação. Assim, por submeterem as pesquisas à revisão segundo o método científico, as metanálises consubstanciam uma forma de reduzir a incerteza na ciência²³.

    Não obstante a ciência seja considerada como uma das causadoras do recrudescimento da ameaça que paira sobre a biota terrestre, releva identificar neste ponto se ela oferece o instrumental necessário para solucionar este impasse.

    Em que pese o fracasso da abordagem científica tradicional na identificação das ameaças civilizacionais, demonizar a ciência não é a melhor resposta para enfrentá-las. Ainda que não possa solitariamente identificar os riscos do avanço tecnológico, a ciência é importante para descrever, explicar e predizer os fenômenos naturais, conhecimento que poderá auxiliar na concepção de instrumentos para a investigação e na escolha das medidas a serem adotadas para o enfrentamento dos problemas relacionados com a preocupante degeneração das condições naturais do planeta, em um campo em que são necessários mais estudos. Em sua crítica aos tecnófobos, LEBRUN destaca:

    Mas o fato, como observa Séris, é que a ciência e a técnica são com frequência os melhores instrumentos de proteção do meio ambiente: ‘Toda uma vertente da atividade técnica de nosso tempo, e da atividade mais inventiva, dedica-se a encontrar soluções aos problemas colocados pela técnica’. E será a técnicos que nos dirigiremos para reciclar resíduos, criar motores não poluentes, energias ‘alternativas’. ‘A natureza tem ainda necessidade da arte’, tem necessidade dela mais do que nunca, para reparar os danos que o homem lhe inflige (...). Em suma, não é difícil fazer surgir aporias lá onde os tecnófobos só apresentam boas intenções. É uma boa intenção que leva os tecnófobos a lutar contra os fatores de risco (transporte de hidrocarbonetos, o nuclear), mas é uma falta de prudência que os faz negligenciar os efeitos possíveis da eliminação brutal destes últimos (...). A ética dos filósofos não tem o monopólio das precauções contra os perigos do ‘progresso’: são os biólogos, afinal de contas, que chamam a atenção para novíssimos problemas e dilemas éticos (e que devem, eles, enfrentá-los em sua prática profissional).²⁴

    Com efeito, nem a ciência, nem a técnica interferem no mérito das finalidades a que servem, não sendo intrinsicamente boas ou más. Nenhuma delas decide o uso que se fará das inovações tecnológicas.

    Conquanto se reconheça o papel da ciência no enfrentamento dos problemas decorrentes do progresso tecnológico, ela é incapaz de, por si só, infundir nos espíritos a importância da adoção de medidas que tenham por fim assegurar as condições de vida consideradas satisfatórias. A qualificação do que seja necessário materializar não se aparta da aferição da pertinência de tais medidas a uma pauta de valores fortemente caracterizada pelo utilitarismo, relativismo e imediatismo, cujo estabelecimento a ciência não tem nenhuma ingerência.

    Em resumo, a incapacidade de prever a ocorrência dos danos causados em decorrência da ação humana potencializada pelo progresso tecnológico colocaram em questão a ciência como instância hegemônica da racionalidade e de instrumento de investigação e explicação da verdade. Contudo, esta desmistificação serve para delinear os limites da validade do discurso científico sem menosprezar a sua utilidade na solução dos problemas da modernidade reflexiva.

    3. A ÉTICA DIANTE DOS RISCOS DO PROGRESSO TECNOLÓGICO

    Sem embargo da interação entre a natureza e as sociedades ser objeto de reflexões filosóficas e científicas há centenas de anos, no passado o foco concentrava-se na maneira como o meio natural influenciava a história humana. A novidade da abordagem contemporânea da relação transferiu para o centro das preocupações as consequências ambientais do agir humano ante as drásticas transformações provocadas no meio ambiente²⁵.

    Alguns consideram que os problemas oriundos do progresso tecnológico são insolúveis, sendo a inevitável contrapartida do cobiçado desenvolvimento econômico. Além disso, sua complexidade e dimensão tornam inócuos todos os esforços no sentido de impedir a tragédia anunciada.

    Em oposição a esta visão, algumas alternativas são sugeridas para o seu enfrentamento.

    Uma primeira corrente defende que todos os inconvenientes resultantes da pós-modernidade podem ser neutralizados adotando-se as mesmas estratégias, métodos e instrumentos utilizados para a solução de qualquer problema. Parte da premissa de que o progresso tecnológico não admite limitações em razão da essencialidade dos benefícios proporcionados e da confiança de que o gênio humano sempre será capaz de encontrar uma saída para todo tipo de situação indesejada. Assim, os efeitos negativos dos artefatos são anulados por meio de outro dispositivo tecnológico.

    Uma das objeções a esta linha argumentativa consiste no entendimento de que, ao invés de corrigir o desvio, o recurso a estes expedientes tende a desencadear novos infortúnios, em um ciclo ininterrupto que, ao extremo, é passível de desarticular todo o conjunto que se almeja proteger. Demais disso, questiona-se se a ciência ou a tecnologia são instâncias aptas a prever todas as consequências das ações humanas por elas intensificadas e de conceber soluções capazes de reverter, por exemplo, a extinção de espécimes da fauna e da flora, as mudanças climáticas e a degeneração de biomas que levaram milhares de anos para serem erguidos.

    Uma segunda linha de abordagem a respeito dos riscos do progresso tecnológico tem na Ética o ponto de partida. A consciência da ignorância a respeito da amplitude da potencialidade lesiva do agir humano impõe o dever de levá-la em conta antes de praticar a ação, sendo aconselhável a abstenção quando for possível entrever que os resultados daí advindos poderão ser catastróficos. Para JONAS, em razão do potencial quase escatológico dos nossos processos técnicos, o próprio desconhecimento das consequências últimas é motivo para uma contenção responsável²⁶. A prudência também é recomendada por WILSON à vista do valor inestimável do bem em perigo. Suas palavras merecem transcrição:

    Desconsiderar a diversidade da vida é correr o risco de nos lançarmos em um ambiente estranho e hostil. (...) Como os cientistas ainda não deram nomes à maioria dos organismos, e por eles só terem a mais vaga ideia de como os ecossistemas funcionam, é temerário supor que a biodiversidade possa ser reduzida indefinidamente sem ameaçar a própria humanidade. Estudos de campo mostram que, quando a biodiversidade é reduzida, também diminui a qualidade dos serviços prestados pelos ecossistemas. Estudos de ecossistemas sob estresse também demonstram que a degeneração pode ser imprevisivelmente abrupta²⁷.

    Tais posicionamentos refletem visões de mundo distintas e exercem notável influência na eleição dos fins considerados de suma importância pela comunidade e dos meios para a sua implementação. Assim, a premissa de que o progresso tecnológico não comporta restrição autoriza a ilação de que, na ausência de alternativas, os problemas que porventura surgirem serão debelados por soluções técnicas, isto é, com mais tecnologia. A longo termo, a solução de hoje transmuda-se no problema de amanhã. Sob a segunda perspectiva, a que coloca em causa a própria irresistibilidade do progresso tecnológico, a autolimitação responsável à vista do desconhecido é medida que se impõe em prol de finalidades e valores mais relevantes.

    Ocorre que, diversamente do déficit de conhecimento a respeito da integralidade dos efeitos da aplicação das inovações científicas, a irresistibilidade do progresso tecnológico carece de demonstração empírica ou da notoriedade atribuída pelos seus defensores. A aptidão para encontrar solução para todo tipo de problema, pressuposto deste modo de pensar, jamais foi comprovada segundo um método científico. Por isto, não passam de argumentos, de justificativas apresentadas para que as inovações sigam sendo utilizadas sem barreiras éticas²⁸.

    4. A REAÇÃO DO DIREITO AOS PROBLEMAS AMBIENTAIS NA PÓS-MODERNIDADE: O DIREITO AMBIENTAL

    O fato de a proteção do meio ambiente integrar a agenda política de grande parte das nações, sendo discutida tanto em conferências internacionais como no meio corporativo e acadêmico, evidencia a pertinência do tema ao gênero humano. O Direito enquanto construção cultural concebida para conciliar os valores e interesses eminentes da sociedade não poderia estar alheio a interesse de tão larga abrangência subjetiva, principalmente com o recrudescimento das reações adversas sobre o seu aspecto material oriundas das atividades perpetradas pelo homem.

    Esses fatores reverberaram no Direito ao dar ensejo à concepção de todo um aparato normativo e teórico tendente a inaugurar uma ramificação disciplinar específica. Assim, o Direito Ambiental surge como resposta jurídica à sociedade de risco com vistas à criação de um instrumental suficientemente complexo para lidar com a incerteza das consequências futuras de determinadas atividades, com a complexidade das reações ambientais de danos presentes ou futuros e com o controle e a regulação das inovações tecnológicas²⁹.

    No cenário normativo brasileiro, a maior parte da produção legislativa relativa à temática ambiental visava à promoção da saúde, à conservação de paisagens e à proteção dos recursos naturais enquanto bens de expressão econômica³⁰. Este quadro começou a mudar a partir da edição da Lei n. 6.938/1981, segundo a qual o meio ambiente passou a ser considerado como algo valioso em si.

    A partir da ordem constitucional estabelecida em 1988, a norma que outorgou a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado impôs deveres e obrigações tanto ao Estado como à coletividade³¹, além de preconizar a responsabilização do infrator nas esferas civil, penal e administrativa³².

    Em que pese as diferenças quanto aos pressupostos e consequências destes três sistemas de responsabilidade jurídica³³, de um modo geral a responsabilidade é a resposta da ordem jurídica transgredida, a contrapartida da sociedade pela prática de ato ou a adoção de um comportamento contrário a uma norma de conduta. A responsabilidade sempre ostentou conotação retributivo-repressiva, sendo a consequência de um fato contrário ao princípio geral da proibição de ofender contido na expressão neminem laedere³⁴. Justificava-se na necessidade de restabelecer o equilíbrio rompido pela conduta do agente³⁵.

    No caso da responsabilidade civil em matéria ambiental, o dever de reparação surge como consequência da violação de outro dever: o de proteger a integridade das características ambientais salutares para uma sadia qualidade de vida, abrangendo tanto os recursos naturais individualmente considerados como as interações entre eles. Neste quadro, consoante averbado por CARVALHO, a responsabilidade civil fundada na teoria do risco (concreto) trata-se de uma resposta do direito às mutações havidas na sociedade em decorrência de processos de industrialização e desenvolvimento tecnológico³⁶.

    Em uma etapa posterior, a Declaração do Rio de Janeiro de 1992, enunciou a precaução como um dos princípios do sistema global de proteção do meio ambiente. A complexidade dos fenômenos, a consciência da limitação do saber a respeito da extensão e magnitude das respectivas consequências, bem como as dificuldades na recuperação dos bens afetados quando não forem irreversíveis os efeitos da degradação, impuseram a primazia de uma abordagem antecipatória do dano, salientando a importância da prevenção mesmo quando não houver consenso científico sobre os riscos.

    Neste cenário, o operador do direito se viu impelido a atuar em meio a situações em que obrigações devem ser impostas com apoio em conjecturas, em um grau de incerteza com o qual o Direito não está habituado a lidar.

    5. A INCERTEZA CIENTÍFICA E O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

    5.1 ORIGEM, CONTEÚDO E OS FUNDAMENTOS DE SUA JURIDICIDADE NO ORDENAMENTO BRASILEIRO

    Durante muito tempo, acreditou-se que o respaldo científico bastava para o sucesso das medidas ambientais a serem executadas pelos Estados. Tal filosofia norteou a elaboração da maioria dos instrumentos internacionais firmados até o final da década de 1980³⁷.

    Todavia, a constatação de que a espera da comprovação científica exaustiva poderia tornar inócuas as medidas de enfrentamento de certos tipos de ameaça propiciaram o surgimento do princípio da precaução. Assim como o Direito Ambiental tem sua origem na preocupação com os efeitos da intervenção humana no planeta impulsionada pelo desenvolvimento tecnológico exponencial, as discussões a respeito deste princípio deitam suas raízes em um contexto de incertezas quanto aos riscos oriundos da modernização das sociedades.

    O princípio da precaução teve sua consagração internacional com a Declaração do Rio de Janeiro, documento resultante dos trabalhos da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada em 1992. De acordo com o Princípio 15:

    De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.

    No Brasil, o princípio em estudo foi expressamente contemplado em documentos dotados de força obrigatória tais como a Convenção da Diversidade Biológica (promulgada pelo Decreto n. 2.519/1998), a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (promulgada pelo Decreto n. 2.652/1998) e a Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes (promulgada pelo Decreto n. 5.472/2005), na Lei n. 11.105/2005 (Lei de Biossegurança), na Lei n. 11.428/2006 (que dispõe sobre a utilização e proteção da vegetação nativa do Bioma Mata Atlântica), na Lei n. 12.187/2009 (Política Nacional sobre Mudança do Clima) e na Lei n. 12.305/2010 (Política Nacional de Resíduos Sólidos).

    Em que pese a Convenção da Diversidade Biológica não aluda expressamente ao princípio da precaução, ele foi enunciado no preâmbulo deste tratado nos seguintes termos:

    Observando também que quando exista ameaça de sensível redução ou perda de diversidade biológica, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar medidas para evitar ou minimizar essa ameaça [...]

    Já na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, o princípio da precaução figurou do seu artigo 3º com a seguinte redação:

    As Partes devem adotar medidas de precaução para prever, evitar ou minimizar as causas da mudança do clima e mitigar seus efeitos negativos. Quando surgirem ameaças de danos sérios ou irreversíveis, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar essas medidas, levando em conta que as políticas e medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em função dos custos, de modo a assegurar benefícios mundiais ao menor custo possível. Para esse fim, essas políticas e medidas devem levar em conta os diferentes contextos socioeconômicos, ser abrangentes, cobrir todas as fontes, sumidouros e reservatórios significativos de gases de efeito estufa e adaptações, e abranger todos os setores econômicos. As Partes interessadas podem realizar esforços, em cooperação, para enfrentar a mudança do clima.

    Os três documentos apontam como finalidade do princípio da precaução evitar ou minimizar os danos ao meio ambiente. Nos três, a incerteza científica sobre a potencialidade lesiva da substância ou atividade não deve ser interpretada como se não houvesse o risco de dano.

    A doutrina diverge a respeito da possibilidade de aplicação do princípio em apreço para além das situações normatizadas pelos diplomas que expressamente o adotam. MANCUSO afirma que o princípio da precaução foi acolhido pela Constituição no artigo 225, § 1º, incisos V e VII³⁸, bem como com a internalização dos tratados internacionais que o afirmaram, sendo, portanto, um princípio constitucional³⁹. MACHADO sustenta que, conquanto a avaliação prévia de risco de uma atividade constitua aplicação do princípio da precaução, a Lei n. 6.938/1981 não introduziu

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