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Peças históricas - Volume 3
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E-book733 páginas7 horas

Peças históricas - Volume 3

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Sobre este e-book

PEÇAS HISTÓRICAS | HENRIQUE IV PARTE 1 | HENRIQUE IV PARTE 2 | HENRIQUE V | HENRIQUE VIII
É amplamente sabido que William Shakespeare foi um gênio capaz de criar os mais diversos enredos e personagens. Além das tragédias e comédias que figu-ram em sua obra de dramaturgia, escreveu também diversos dramas históricos. A partir de obras clássicas, o Bardo elevou o gênero a sua mais alta dimensão, provocando reflexões pertinentes ao público da época, mas também a nós, hoje.
No presente volume figuram algumas dessas peças que fazem parte da prós-pera fase da produção do Shakespeare dramaturgo. Henrique IV parte 1 apresenta as inquietações de um rei que se vê em meio a conflitos em fronteiras e com seu antecessor, Ricardo II, além de questões com seu indômito filho, o príncipe her-deiro. Mais do que uma continuação da peça anterior, Henrique IV parte 2 é consi-derada uma extensão da primeira. Nela, com o rei cada vez mais doente, o foco se amplia para outros personagens, indo por caminhos diversos que se encontram ao final. Henrique V traz o outrora indisciplinado príncipe em um momento de ascensão: sua vitória sobre a França, mesmo com grande desvantagem. Henrique VIII, por sua vez, mostra a grande personalidade emblemática e controversa do rei da Inglaterra, conhecido por seu conflito com a Igreja.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de jan. de 2022
ISBN9786556404387
Peças históricas - Volume 3
Autor

William Shakespeare

William Shakespeare was born in April 1564 in the town of Stratford-upon-Avon, on England’s Avon River. When he was eighteen, he married Anne Hathaway. The couple had three children—an older daughter Susanna and twins, Judith and Hamnet. Hamnet, Shakespeare’s only son, died in childhood. The bulk of Shakespeare’s working life was spent in the theater world of London, where he established himself professionally by the early 1590s. He enjoyed success not only as a playwright and poet, but also as an actor and shareholder in an acting company. Although some think that sometime between 1610 and 1613 Shakespeare retired from the theater and returned home to Stratford, where he died in 1616, others believe that he may have continued to work in London until close to his death.

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    Peças históricas - Volume 3 - William Shakespeare

    Shakespeare. Grandes obras 2. Peças históricas inglesas. Liana de Camargo Leão. Organização. Barbara Heliodora. Tradução. Editora Nova Fronteira.Shakespeare. Grandes obras 2.Volume 3. Peças históricas. Tradução, ensaio sobre Falstaff e introdução às peças: Barbara Heliodora. Organização e nota introdutória: Liana de Camargo Leão. Introdução geral: Roberta Ferreira da Rocha. Henrique IV Parte 1. Henrique IV Parte 2. Henrique V. Henrique VIII. Editora Nova Fronteira.

    Títulos originais:

    Henry IV, part 1

    Henry IV, part 2

    Henry V

    Henry VIII

    © Copyright da tradução 2021 por Espólio de Barbara Heliodora.

    Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela Editora Nova Fronteira Participações S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite.

    Editora Nova Fronteira Participações S.A.

    Rua Candelária, 60 — 7º andar — Centro — 20091-020

    Rio de Janeiro — RJ — Brasil

    Tel.: (21) 3882-8200

    Créditos de imagem

    Capa:

    Hans Holbein, Henry the VIII. 1537, O.S.T. Thyssen-Bornemisza, Madrid.

    James Stephanoff, Falstaff. 1832, Yale Center of British Art.

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    S527g

    Shakespeare, William

    Grandes obras de Shakespeare: volume 3: peça de teatro / William Shakespeare; traduzido por Barbara Heliodora. – 2.ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 2022.

    632 p.

    Formato: e-book, 4.453 KB

    ISBN: 9786556404387

    1. Peças de teatro. I. Heliodora, Barbara. II. Título.

    CDD: 882

    CDU: 82-2

    André Queiroz – CRB-4/2242

    Sumário

    Volume 3

    Nota sobre a escolha das peças históricas inglesas

    Introdução ao drama histórico shakespeariano

    Falstaff

    Henrique IV parte 1

    Henrique IV parte 2

    Henrique V

    Henrique VIII

    Genealogia simplificada dos monarcas ingleses

    Reis ingleses até William Shakespeare

    Nota sobre a escolha das peças históricas inglesas

    Qualquer pessoa que tenha esbarrado no mundo da realpolitik em qualquer governo não poderá deixar de se interessar pelas peças históricas de William Shakespeare. Nelas estão retratadas a anatomia do oportunismo político, da ambiguidade moral, da conveniência e da hipocrisia. Há quem diga que foi Shakespeare que criou a peça histórica; verdade ou não, ele foi o seu maior expoente. Mais do que a qualquer historiador, é ao dramaturgo que a maioria de nós deve seu conhecimento sobre história medieval inglesa. Ele eternizou em nossa memória a vilania de Ricardo III, a vaidade de Ricardo II, a capacidade de governar de Henrique IV, o heroísmo de Henrique V; apenas em relação a Henrique VIII, o dramaturgo pouco influenciou a imagem que temos daquele rei, moldada por filmes e séries de televisão.

    As quatro peças selecionadas para o presente volume oferecem uma excelente visão do uso variado que Shakespeare faz da história da Inglaterra em seu teatro. Aqui incluímos as três peças que se seguem a Ricardo II, esta inclusa no volume 1 de Grandes obras de Shakespeare, peças históricas. São elas Henrique IV parte 1, a peça mais popular de Shakespeare em sua época, Henrique IV parte 2, escrita na esteira do sucesso da primeira parte; e Henrique V, a conclusão desse primeiro ciclo histórico. A quarta peça inclusa neste volume é Henrique VIII, centrada no mais famoso dos reis ingleses e obra pouquíssimo conhecida no Brasil.

    A leitura das peças históricas apresenta dificuldades extras para qualquer leitor, mesmo aqueles familiarizados com a história da Inglaterra. Em primeiro lugar, são muitos os Ricardos, Henriques, Northumberlands, Norfolks, Mortimers, etc. Ou seja, nomes, sobrenomes e títulos se repetem em várias peças; os títulos, sendo hereditários, não necessariamente se referem às mesmas pessoas. Como sabemos, a política do século XV era um assunto de família, envolvendo não apenas parentes de sangue, mas também parentes pelo casamento; as Guerras das Rosas foram travadas entre dois ramos familiares descendentes do Rei Eduardo III. Ao fim e ao cabo, eram todos parentes.

    Em segundo lugar, precisa-se considerar o grande número de personagens que compõem as peças históricas, em média muito superior aos das tragédias e comédias: Henrique IV parte 1 tem 34 personagens, Henrique IV parte 2 tem 52, Henrique V e Henrique VIII contam, cada um, com 43.

    A terceira dificuldade diz respeito à supressão ou condensação de informações. Ao dramatizar determinado reinado, o dramaturgo toma liberdades com a história, ainda que os eventos mais importantes e os resultados das batalhas sejam preservados: ora ele suprime, ora inventa incidentes, fundindo batalhas e compactando o tempo em que os fatos ocorrem; também condensa figuras históricas em determinados personagens.

    Há, ainda, uma quarta dificuldade que diz respeito à natureza do drama histórico. Sem precedentes na tradição clássica ou medieval, a peça histórica é um gênero novo e, portanto, mais flexível e bastante poroso em relação aos clássicos comédia e tragédia. Ao iniciar sua carreira como dramaturgo, Shakespeare experimenta diversos genêros, retrabalhando o material oferecido pelas crônicas históricas acrescido de elementos da tragédia e da comédia. Desse modo, é possível compreender as três partes de Henrique VI, Ricardo III e Ricardo II dentro da matriz trágica; e as duas partes de Henrique IV e Henrique V dentro da matriz da comédia. Versando sobre sucessão, tirania, rebelião, usurpação e regicídio, a maioria dessas oito peças pode ser lida e montada no teatro como obra independente e também como parte de uma ou duas sequências históricas. Consideradas em seu conjunto, as duas tetralogias formam o grande épico do dramaturgo, desenhando um panorama da história da nação.

    Em três das peças aqui inclusas — Henrique IV partes 1 e 2 e Henrique V — somos apresentados a uma ampla gama de tipos sociais, tanto personagens que circulam na corte e como aqueles que frequentam o mundo das tabernas de Londres. São histórias de pais e filhos, de amizade, desapontamento e traição, onde a simpatia do leitor oscila. Nenhum personagem está livre de culpa ou responsabilidade já que nenhum deles é exemplar: todos são contraditórios e moralmente ambíguos. As três peças também nos interessam pela presença de Falstaff, um dos personagens mais celebrados de Shakespeare e que rivaliza até mesmo com Hamlet em termos de atenção do público. A vitalidade e subversiva irredutibilidade do cavalheiro a quaisquer sistematizações de valores ou ideias o tornam uma das representações artísticas mais vivas da natureza humana. Como observou o crítico Frank Kermode, em A linguagem de Shakespeare, sua criação, em meio às peças históricas, é um verdadeiro golpe de gênio.

    Henrique VIII é, por sua vez, uma peça bastante incomum, escrita em um momento diferente dessa primeira incursão no gênero histórico. De autoria compartilhada com o jovem dramaturgo John Fletcher (1579-1625), diversamente das demais peças sobre reis ingleses, Henrique VIII não retrata uma nação em guerra e, tampouco, explora a psicologia profunda do protagonista. Escrita na mesma época que os chamados romances, na última fase da dramaturgia shakespeariana, a peça evidencia mais uma vez o experimentalismo contínuo do autor: no final da carreira, ele explora um novo modo de ação dramática, ao combinar material de origem histórica com a forma do romance. A peça retrata o rei não pelos seus excessos — os seis casamentos e a condenação à morte de duas de suas eposas — mas de modo respeitoso, celebrando os benefícios que a dinastia Tudor trouxe para a Inglaterra e o nascimento de Elizabeth I. Essa glorificação do momento Tudor e da fundação da Inglaterra protestante moderna é expressa na peça expecialmente por meio de duas cerimônias — a coroação de Ana Bolena e o batismo da pequena herdeira Elizabeth.

    Para auxiliar o leitor brasileiro a situar os reis que aparecem nessas quatro peças, incluímos nessa edição uma genealogia ampla dos reis ingleses bem como genealogias menores específicas para cada peça. Também foram acrescentadas notas, tanto esclarecendo referências clássicas e históricas como também algumas anotações explanatórias aos textos. Ao oferecer aos leitores informações e esclarecimentos, nosso intuito foi sempre o de facilitar a leitura e a fruição das obras. Além disso, incluímos uma introdução geral ao drama histórico elisabetano, da autoria de Roberto Ferreira da Rocha, que se soma às introduções individuais que antecedem cada peça, da autoria de Barbara Heliodora.

    Como dito acima, o imortal Falstaff aparece em três das peças históricas, além de ser o personagem central de As alegres comadres de Windsor (que integra o volume das comédias). Atesta a enorme popularidade do gordo cavalheiro na história das montagens teatrais o fato de seu nome ter figurado no anúncio das peças lado a lado com os nomes dos reis que davam título às mesmas. Não é à toa que Orson Welles o elegeu como personagem favorito, tendo interpretado o papel no celebrado filme Sinos à meia-noite (Chimes at Midnight), dirigido por ele mesmo e considerado sua magnum opus: poético, filosófico e inovador, o enredo do filme retira elementos das quatro peças acima mencionadas. Achamos por tudo isso de grande interesse incluir nessa edição um breve ensaio inédito sobre Falstaff da autoria de Barbara Heliodora.

    Esperamos que essa jornada pelas peças históricas de Shakespeare traga ao leitor muitas recompensas, motivando-o a refletir sobre a política dos nossos tempos.

    Liana de Camargo Leão

    Introdução ao drama histórico shakespeariano

    Em 1623, John Heminges (1566-1630) e Henry Condell (1576-1627), atores e acionistas da mesma companhia de teatro de William Shakespeare (1564-1616), que à época chamava-se The King’s Men (Os atores do rei), e cuja sede principal era o teatro Globe (Globo), publicaram a primeira edição da obra dramática do poeta, o chamado First Folio (Primeiro fólio). Eles dividiram as trinta e seis peças contidas no volume em três gêneros: tragédias, comédias e peças históricas. As dez peças que tratam de personagens e fatos da história inglesa, todas baseadas nas crônicas do historiador seiscentista Rafael Holinshed (1576-1627), foram reunidas sob a última classificação. No entanto, algumas dessas peças históricas, ao serem editadas anteriormente ainda durante a vida de Shakespeare, em volumes avulsos — os chamados quartos — foram denominadas tragédias.

    Por outro lado, entre as tragédias do Primeiro fólio, encontram-se peças, como Rei Lear (1605-1606) e Macbeth (1606), que têm como fonte as mesmas crônicas nas quais Shakespeare se baseou para escrever suas peças históricas. Assim, as fronteiras entre os dois gêneros não foram bem definidas desde o início. Apesar de o espírito cômico não estar ausente das peças históricas (não podemos esquecer o Falstaff de Henrique IV partes 1 e 2), o universo do poder e o universo do riso permanecem distintos. Com relação à tragédia, tal não acontece; a diferença entre tragédia e drama histórico não é de modo algum óbvia. A tragédia — grega ou elisabetana — sempre lançou mão de personagens e fatos históricos para criação de seus enredos; o drama histórico, por sua vez, possui, em geral, profunda conotação trágica. Ainda assim, acreditamos que é possível delinear algumas características válidas para o drama histórico.

    Ao tentarmos responder à pergunta o que são dramas históricos? podemos seguir os passos da crítica norte-americana Lily B. Campbell (1883-1967), que, em seu livro Shakespeare’s History: Mirrors of Elizabethan Policy (Os dramas históricos de Shakespeare: espelhos da política elisabetana), de 1947, argumenta que a tragédia se ocupa dos feitos humanos que na filosofia são discutidos pela ética, enquanto a política se ocupa dos feitos históricos. Campbell procura, além disso, inserir as peças históricas de Shakespeare em um movimento de ideias sobre a história e a política presentes no período elisabetano.

    Segundo ela, essas ideias seriam um veículo de difusão de ideias sobre a história. Para os elisabetanos, a função da história seria a de um espelho político, no qual eles veriam refletidas as ações de seus antepassados, aprendendo com eles, através de seus erros e desgraças, a arte de governar que inclui, principalmente, o papel dos governantes e suas relações de poder com os governados.

    Essa visão do drama histórico como mera dramatização do discurso sobre a história e a política, elaborado com fins didáticos durante a dinastia Tudor (1485-1603), é parcialmente incorreta. A conclusão lógica desta tese, se aceita integralmente, é de que o drama histórico shakespeariano nada mais é do que a tradução cênica da ideologia Tudor. As duas tetralogias que Shakespeare escreveu sobre os fatos que marcaram a história inglesa entre o final do século XIV e o final do século XV — da abdicação de Ricardo II e a ascensão de Henrique IV (1399) à derrota de Ricardo III na batalha de Bosworth, em 1485, que deu à vitória ao barão de Richmond, que se tornaria o primeiro monarca da dinastia Tudor, com o título de Henrique VII — seriam, em última instância, exemplos de um teatro político-didático.

    As peças históricas de Shakespeare, apesar da preocupação de seu autor em alertar seus contemporâneos para os perigos do conflito civil — o trauma da Guerra das Rosas (1455-1485) ainda não fora superado — e a necessidade da manutenção da ordem e da hierarquia para que a dinastia Tudor — cuja legitimidade era controversa e muitas vezes atacada — se mantivesse no poder durante todo o século XVI, não eram meros veículos de propaganda.

    Shakespeare se apropria do fato histórico para encenar, primordialmente, os conflitos que enfrenta, tanto interna quanto externamente, aquele que encarna o papel de governante, tornando-se a figura central do sistema de poder. Em suas peças históricas, Shakespeare levanta questões sobre o papel do governante e o grau de capacidades de cada um deles de viverem, ou não, este papel adequadamente. As peças históricas não são meros sermões em forma dramática sobre a necessidade de ordem, mas a encenação do conflito entre uma ordem política ideal e uma realidade humana, carregada de contradições, não só sociais como também psicológicas.

    O drama histórico elisabetano, ao contrário da tragédia, utiliza-se de fatos da história nacional recente, marcada de profundo cunho nacionalista. É o que vemos na peça Rei João (Kinge Johan, c. 1536), de John Bale (1495-1563). Esta moralidade de cunho histórico dramatiza o confronto entre o soberano inglês e o papa Inocêncio III, ocorrido no século XI, quando a Inglaterra adere à reforma protestante com Henrique VIII (1491-1547), na década de 1530. Shakespeare desenvolve o tema do nacionalismo, na sua versão da vida e da morte deste monarca, também conhecido como João sem Terra, que reinou de 1199 a 1216, com a sua caracterização do personagem Philip Faulconbridge, o Bastardo, a personificação do espírito patriótico na peça (c. 1597), como atestam suas palavras, com as quais o drama termina:

    Nunca foi a Inglaterra e nem será

    Pisada por um pé conquistador,

    Se não com alguma ajuda dela mesma.

    Agora que esses príncipes voltaram,

    Volta os três cantos do mundo em armas,

    Os enfrentamos! Nada nos traz mal,

    Sendo a Inglaterra a si mesma leal! (5.7)

    De fato, os feitos dos reis-protagonistas nas peças históricas de Shakespeare e outros dramaturgos elisabetanos que se debruçaram sobre as mesmas fontes estão intimamente ligados às glórias e reveses da nação inglesa. Assim, peças como Rei Lear e Macbeth, que também se inspiram em fatos da história inglesa e escocesa, respectivamente, não possuem este cunho nacionalista. Baseados neste fato, alguns críticos chegaram a afirmar que o verdadeiro herói das tetralogias shakespearianas era a Inglaterra.

    Uma segunda característica do drama histórico shakespeariano é a visão especular que ele veicula. O passado é um espelho que as novas gerações contemplam para dele extraírem uma moral e uma identidade, a partir dos feitos exemplares dos grandes homens do passado, suas glórias e/ou desgraças. Nas peças históricas de Shakespeare, os próprios protagonistas e mesmo outros personagens refletem sobre o desempenho dos reis. Assim, por exemplo, Ricardo II e Henrique V, o primeiro na cena de sua morte (5.5) e o segundo na noite que antecede a batalha de Agincourt (4.1), em seus solilóquios, meditam sobre as consequências de um mau governo e as responsabilidades dos governantes, respectivamente. Estas falas não se referem apenas à situação particular apresentada nas duas peças, mas possuem uma universalidade que as torna exemplo para as gerações futuras.

    Na fala de Henrique V citada anteriormente, os dois extremos da segunda tetralogia se tocam: o rei-herói, o modelo dos reis cristãos, na véspera de uma batalha decisiva reflete quanto a legitimidade de um soberano é importante para sua manutenção no poder, quão horrível é o regicídio e quão ameaçadoras suas consequências em um sistema político que se baseia no direito divino dos reis.

    Senhor, hoje

    Não pensa, hoje, eu peço, no pecado

    Que cometeu meu pai pela coroa!

    Eu enterrei Ricardo novamente

    E por ele verti muito mais lágrimas

    Do que ele jorrou sangues em gotas.

    Quinhentos pobres eu mantenho ao ano

    Que todos os dias erguem mãos esquálidas

    Aos céus por seu perdão; e construí

    Duas capelas onde sábios padres

    Cantam por alma de Ricardo. E mais

    Farei, mesmo que sem valor, não fosse

    A minha penitência, que o culmina

    Implorando perdão. (5.1)

    Um terceiro elemento diferenciador da tragédia e do drama histórico elisabetano é o peso maior que questões concernentes ao papel e à natureza do governante desempenham na performance deste último. Em Eduardo II (1593), de Christopher Marlowe (1564-1593), a desgraça do rei deve-se, em grande parte, à sua insistência em colocar sua paixão homossexual pelo plebeu Gaveston acima dos interesses do Estado; em Ricardo II, Shakespeare contrapõe um rei legítimo, mas incapaz de manter seu posto, e um político habilidoso que tira partido das oportunidades que se lhe apresentam para alçar-se ao poder que, a princípio, não lhe era destinado.

    A quarta e última característica do drama histórico é a de que a problemática do herói, nestas peças, é fundamentalmente política. Lear e Macbeth são reis, mas o que mais interessa deles é a sua problemática existencial. Já Ricardo II, Ricardo III ou Henrique V existem fundamentalmente enquanto figuras do poder; a individualidade desses reis-protagonistas está intimamente ligada à forma como eles vivem o papel de governante. Ser rei não é apenas o símbolo da superioridade destes personagens, mas sua própria condição ontológica e, portanto, todas as suas ações, desejos e conflitos adquirem sempre um significado político.

    Mesmo um gênio como Shakespeare só poderia surgir em um lugar e em uma época propícios ao seu aparecimento. Se bem que nenhum dramaturgo da era elisabetana tenha produzido uma obra da abrangência e da complexidade da sua, houve autores anônimos e conhecidos de real valor artístico. Todos os gêneros nos quais Shakespeare se destacou em suas obras já haviam sido ensaiados e praticados na dramaturgia que antecede imediatamente a sua.

    Quando Shakespeare chega a Londres, vindo de Stratford-upon-Avon, na década de 1580, o teatro na capital inglesa está em franco desenvolvimento. Após a construção dos primeiros prédios fixos para apresentações dramáticas em 1567 (Red Lion) e em 1576 (Theatre), outros se sucedem e companhias mais ou menos fixas começam a surgir. Apesar de a profissão de ator possuir nesta época um cunho marginal, muitos deles eram figuras populares e até prestigiados pela elite no poder.

    O tipo de teatro para o qual Shakespeare escreveu a maioria de suas peças históricas (as chamadas "public playhouses") era eminentemente popular, no sentido pleno da palavra, sendo frequentado por todas as classes sociais, da elite intelectual ao povo iletrado. O dramaturgo tinha que agradar uma massa heterogênea de espectadores, misturando o trágico e o cômico, o sério e o satírico, o romântico e o realista. É esta mescla de tons contraditórios que dá ao drama elisabetano, em geral, e ao shakespeariano, em particular, sua identidade própria.

    Este primeiro modelo propriamente moderno de dramaturgia amalgamava as tradições clássica, medieval e popular. O drama histórico não poderia escapar a esse movimento de assimilação, tanto de influências advindas dos meios eruditos quando da rica tradição popular nativa. O aparecimento do drama histórico inglês, no final do século XVI, é integralmente, o resultado de um processo de maturação artística, constituído não só de influências teatrais, mas também literárias e não literárias. Na gênese deste desenvolvimento se encontra um tipo de drama pré-elisabetano, de caráter eminentemente popular, no qual a temática político-nacionalista já despontava: as moralidades.

    Quando, em Henrique IV parte 1, Falstaff dirige-se ao Príncipe Hal, o futuro Rei Henrique V, e lhe diz: Se eu não o ponho para fora com uma espada de madeira... (3.4), os espectadores do teatro elisabetano identificavam-no como o Vício das moralidades. A espada ou adaga de madeira era um dos acessórios emblemáticos desta figura tão popular neste tipo de drama alegórico cujo aparecimento se dá, na Inglaterra, por volta da metade do século XIV.

    As moralidades se originaram no impulso didático dos sermões e homilias. As pregações do púlpito, durante a Idade Média, tinham como objetivo alertar os fiéis sobre a inevitabilidade do pecado devido à queda de Adão e Eva e indicar-lhes os meios pelos quais a alma poderia alcançar a salvação: o arrependimento dos pecados e a penitência. Assim, tal como os sermões e homilias, nas quais muitas vezes se baseavam, as moralidades perseguem um objetivo didático e piedoso e, a fim de tornar aparente aos espectadores seus objetivos, lançam mão da alegoria.

    Desse modo, por exemplo, a ideia de salvação pode ser representada através da alegoria da viagem da alma. As alegorias lançam mão de abstrações personificadas que vivem a história que constitui a alegoria. Um dos personagens alegóricos das moralidades é Todomundo (Everyman), que representa não um indivíduo, mas toda a espécie humana.

    As moralidades constituem um gênero dramático bastante convencional, o que se explica pelo seu caráter didático. Mas, por isso mesmo e por sua grande capacidade de adaptação, elas permanecem presentes no teatro inglês por um período de mais ou menos dois séculos. As moralidades, ao contrário dos mistérios ou milagres (mystery or miracle plays), os quais, por sua origem litúrgica, encenam sempre os mesmos temas bíblicos, podem adaptá-los aos interesses e fatos contemporâneos. Enquanto os mistérios são suprimidos por sua ligação com o catolicismo, durante a Reforma no reinado de Henrique VIII, as moralidades continuam a existir no século XVI, como veículo para difusão de novas ideias religiosas, sociais e políticas. As que privilegiam os temas políticos nos interessam particularmente pela contribuição ao drama shakespeariano.

    Em Magnificência (Magnyfycence), escrita entre 1515 e 1516 por John Skelton (c. 1463-1529), já há um deslocamento do tema da salvação da alma para o da preservação do rei. O didatismo desta peça possui caráter político, e não mais religioso. No já citado Rei João, John Bale dá outro passo adiante ao introduzir figuras históricas reais ao lado de personagens abstratos, tais como Inglaterra, Nobreza, Clero, Ordem Civil etc. Embora seu uso dos fatos históricos seja pouco rigoroso, o autor consegue estabelecer um paralelo entre os eventos passados e os problemas políticos de seu próprio tempo.

    O desaparecimento das moralidades dá-se paulatinamente, à medida que outras influências, principalmente as da Antiguidade, começam a formar um novo tipo de drama, em que outras convenções são adotadas. Os personagens deixam de ser meras figuras abstratas personalizadas e desaparece o forte didatismo maniqueísta das alegorias que representavam a batalha entre o Bem e o Mal, entre os Vícios e as Virtudes, abandonado em prol de um realismo psicologicamente mais sutil e complexo. No entanto, alguns de seus componentes temáticos e/ou estruturais, ainda que enfraquecidos, podem ser encontrados nas obras de Marlowe (1564-1593), Shakespeare e Ben Jonson (1572-1637).

    Ainda que as moralidades possam ser vistas como um primeiro passo em um processo que culminaria no drama histórico de Shakespeare e que alguns de seus elementos possam ter sido por ele utilizados, faltam a esta peças as características essenciais para um drama histórico maduro: uma ideia coerente de como acontece um evento histórico, uma filosofia de causa e efeito e uma teoria política que ultrapasse seu monarquismo rasteiro, como já apontava E. M. W. Tillyard em seu livro Shakespeare’s History Plays (As peças históricas de Shakespeare), de 1944. Elas não podem, pois, ser consideradas a origem de um drama que se constrói sobre um pensamento que, se nem sempre profundo, insiste em indagar-se sobre a história, seus conceitos e seus efeitos.

    Em 1592, Thomas Nashe (1567-1601), em seu Pierce Penniless (Pierce sem tostão, 1592), escreveu uma defesa das peças que tratavam dos fatos da história inglesa, desde a conquista Normanda, em 1066. Em seu texto, ele diz que:

    Em primeiro lugar, com relação ao que elas tratam, na maioria dos casos é tomado de empréstimo das crônicas inglesas, onde os atos valorosos de nossos antepassados, que permaneceram longamente enterrados em bronze enferrujado e livros carcomidos por traças, voltam à vida, e eles próprios se levantam dos túmulos do esquecimento e são trazidos de volta para exibir na nossa presença suas antigas honrarias abertamente.

    Escritas na década de 1580, em sua maioria, as chronicle plays aparecem no momento em que, sob a ameaça de iminente invasão espanhola, a Inglaterra vive momentos de sentimentos contraditórios: profunda apreensão pela proximidade da guerra com a Espanha e, posteriormente, grande euforia patriótica com a resultante derrota da Invencível Armada de Felipe II, em 1588.

    Imensamente populares, escritas por um considerável número de autores, as chronicle plays procuravam perpetuar a memória dos grandes heróis da pátria e, através da encenação de seus atos, contribuir para a formação do patriotismo, ensinando aos ingleses a evitar os erros cometidos no passado. No entanto, falta a essas peças, com as raras exceções de, por exemplo, Gorboduc (representada pela primeira vez em 1561), de Thomas Norton e Thomas Sackville, e Woodstock (1591-95), anônima, uma coesão formal que desse organicidade à massa de informação histórica.

    As falhas estruturais das chronicle plays devem-se ao seu tratamento da história como meramente a narrativa de fatos que aconteceram no passado. Daí, seus enredos episódicos, contendo uma série de eventos desencontrados, cujo único elemento de coesão é o personagem principal. Desta forma, elas não conseguem estabelecer uma legítima relação de causa e efeito entre os diversos acontecimentos, impedindo a história de ser considerada como um processo orgânico.

    Atendo-se muitas vezes apenas ao caráter anedótico dos fatos, sem chegar a perceber seu sentido profundo, estas peças não tentam elaborar uma visão dramática coerente, anulando a contribuição que este tipo de discurso poderia dar às várias leituras da história na era elisabetana. Para encontrar uma noção ou noções da história que sirvam de pressupostos para o drama histórico shakespeariano, teremos nos reportar a textos não dramáticos que dialogam com ele. Temos que nos reportar à massa de textos historiográficos que foram produzidos para colocar de pé o que ficou conhecido como o mito Tudor.

    A Guerra das Rosas (que praticamente dizimou as duas mais importantes famílias aristocráticas inglesas, os Lancaster e os York) terminou quando Henrique Tudor, Conde de Richmond, assume o poder, após derrotar Ricardo III (de York) na batalha de Bosworth, em 1485. Para terminar de vez com a rivalidade entre estes dois clãs, casa-se com Elizabeth de York (os Tudor eram um ramo da família de Lancaster), e sobe ao trono como Henrique VII. Essa nova dinastia vai dominar o trono inglês por mais de um século, saindo de cena com a morte de Elizabeth I, a rainha virgem, em 1603.

    A era Tudor foi um período de profundas modificações políticas, sociais e culturais. O regime absolutista teve que conviver com constante agitação política. Foi o século do Renascimento (na Inglaterra) e da Reforma de Henrique VIII; foi um século de crescimento populacional, epidemias de peste e períodos de fome causados pela privatização das terras comuns do reino (as enclosures); de querelas religiosas e guerras internacionais, das quais a Inglaterra de Elizabeth I conseguiu manter-se afastada.

    Ao assumirem o poder absoluto, os Tudor imediatamente perceberam que para mantê-lo precisavam de uma intensa propaganda ideológica que enfatizasse a sua legitimidade e perpetuasse sua ocupação do trono. Para tanto, eles promoveram a produção de discursos tanto religiosos quanto histórico-ideológicos para que convencessem a população da necessidade da manutenção da ordem e do respeito não só à monarquia em particular como, também, à hierarquia em geral para o bem-estar político e social do reino, numa tradução, em termos de ciência política, do sistema ptolomaico de organização do universo. Muito suscintamente poderíamos caracterizar tal sistema como uma cadeia que une desde o mais bruto até o mais espiritualizado ser, através dos elos da analogia, da semelhança e da proximidade. Neste sistema, o macrocosmo se reflete no microcosmo e cada ser encontra o lugar que lhe é devido, alcançando-se a ordem, através da organização hierárquica do universo.

    O sermão ideológico-político e o discurso histórico teriam grande influência sobre toda a produção cultural do período, incluindo-se a obra de Shakespeare. Eles formam o pano de fundo ideológico de sua produção como dramaturgo e poeta.

    Para serem lidas todos os domingos nas igrejas, como parte do culto, o governo Tudor difunde uma coleção de homilias. Um primeiro volume contendo doze delas surge em 1547, no último ano do reinado de Henrique VIII; outras vinte saem em 1563, já no governo de Elizabeth I; e, finalmente, em 1571, é publicada a Homilia contra a desobediência e rebelião desejada, a resposta do governo à revolta das províncias do Norte, ocorrida em 1569.

    O primeiro livro das homilias prega, em resumo, o direito divino dos reis, a doutrina da não resistência passiva e a natureza pecaminosa da rebelião, além de afirmar categoricamente a necessidade da ordem para a sobrevivência do universo natural e/ou político. Esta ideia é particularmente bem expressa na décima homilia do primeiro livro:

    Remova-se os reis, príncipes, governantes, magistrados, juízes e os estados da ordem divina, e nenhum homem percorrerá as estradas a pé ou a cavalo sem ser roubado, dormirá em sua própria casa ou cama sem ser morto, nenhum homem manterá sua esposa, filhos e propriedades em paz, tudo será de todos, daí resultando a corrupção e destruição das almas, dos corpos, dos bens e comunidades.

    Essas ideias sobre a importância essencial da ordem também estão presentes no discurso histórico elaborado sob a dinastia Tudor.

    Tal discurso foi elaborado ao longo dos anos principalmente por três cronistas: Polydore Vergil (c. 1470-1555), Edward Hall (c. 1496-c. 1547) e Raphael Holinshed (1529-1580). O primeiro foi o historiador oficial de Henrique VII; o segundo, de Henrique VIII; e o terceiro é a principal fonte dos dramas históricos de Shakespeare. Enquanto Vergil e Hall procuraram estabelecer uma relação de causa e efeito entre os fatos, para extrair uma lição e uma filosofia da história que atendessem aos interesses ideológicos de seus patronos, Holinshed simplesmente sobrepõe fatos e nomes, sem nenhuma preocupação além da cronológica.

    A Anglica Historia (A história inglesa), de Vergil, iniciada em 1506 e publicada em 1534, mantém um ponto de vista até certo ponto imparcial dos fatos históricos, apresentando muitas vezes os dois lados da questão. O historiador acreditava que o passado se repetia, e é tal ideia que estrutura sua obra. Além disso, ele procura estabelecer uma relação de causa e efeito para os eventos históricos. Talvez sob pressão do rei, escreveu que a deposição de Ricardo II foi um crime o qual, por intervenção divina foi purgado pela conturbação política que abalou a maioria dos reinados seguintes até que Deus abrandasse sua cólera, enviando Henrique VII para redimir a Inglaterra do caos político gerado pela Guerra das Rosas. Esta sua interpretação do advento da dinastia Tudor foi seguida pelos outros historiadores da época. Em sua obra, porém, não se encontram pregações contra a rebelião como causa principal de todos os males que se abateram sobre o reino.

    Edward Hall, autor de The Union of the Two Noble and Illustre Families of Lancastre and Yorke (A união das duas nobres e ilustres famílias de Lancaster e York, 1548), escreveu seu livro para provar a tese de que a rebelião é o câncer que destrói a unidade do reino. Ele se limitou a historiar um curto período: do reinado de Henrique IV (1399-1413) ao de Henrique VIII (1509-1547). Altamente seletivo com relação aos fatos narrados, ele procura dar uma estrutura dramática ao seu tema, omitindo aqueles que não se ajustem ao rígido esquema de causa e efeito por ele elaborado.

    Para Hall, a história é um grande drama moral. Como os autores das homilias, ele enfatiza a necessidade de obediência e da ordem, considerando a rebelião e a desordem frutos de ação individual contrária aos desígnios da Providência. Sua visão da história é, ao mesmo tempo, secular e teocrática. Ele consegue desta forma, identificar os interesses dos Tudor com os propósitos divinos. Hall é o principal ideólogo do mito Tudor, pois caracteriza Henrique VII como o salvador do reino que, por determinação de Deus, pôs fim a quase um século de lutas pelo poder, mas omite o fato de que Richmond (o futuro Henrique VII), ao rebelar-se e atacar Ricardo III, legítimo sucessor de Eduardo IV (que reinou por dois períodos: de 1461 a 1470 e de 1471 a 1483), foi ele mesmo um usurpador. Esta omissão, comum a todos os escritores da era Tudor (Shakespeare inclusive) era inevitável. A representação em tratados históricos ou peças teatrais da deposição do monarca destrói inevitavelmente a fortaleza discursiva cuidadosamente erguida contra a rebelião.

    As crônicas da Inglaterra, Escócia e Irlanda (The Chronicles of England, Scotland, and Ireland) é a obra historiográfica considerada a principal fonte das duas tetralogias que Shakespeare escreveu sobre o período que vai do reinado de Ricardo II ao de Ricardo III (entre os dois governaram Henrique IV, Henrique V, Henrique VI e Eduardo IV). Ela é, na verdade, uma obra coletiva, cujo principal autor é Raphael Holinshed. A obra tem uma abrangência de milênios, que vai de Noé aos Tudor. Foi publicada pela primeira vez em 1578. Em 1587, sai uma segunda edição com acréscimos, sendo esta última a utilizada por Shakespeare. A crônica de Holinshed é considerada inferior às obras de seus antecessores. Holinshed foi, na verdade, um compilador, que não possuía nem o humanismo de Vergil, nem o talento dramático de Hall. Sem conseguir elaborar uma filosofia da história, a crônica de Holinshed segue a ortodoxia dos discursos históricos do século XVI sobre o papel de governantes e governados, o perigo da discórdia e da guerra civil, causado pela rebelião contra o soberano, e alerta para a obrigação do historiador em extrair uma moral dos fatos. Mas Holinshed foi, assim mesmo, extremamente útil para seus contemporâneos: seu estilo era de fácil assimilação e o sentido de suas colocações facilmente inteligível.

    O trabalho dos historiadores do século XVI fornece a Shakespeare o arcabouço ideológico de seus dramas históricos. É nas crônicas que se encontram as ideias da história como repositório de um passado que molda a identidade do presente, ao mesmo tempo que, num jogo de espelhamentos, presente se remete ao passado, para daí extrair lições e respostas para as questões sobre o papel do governante, os deveres dos governados e as terríveis consequências da guerra civil. Shakespeare retrabalharia a história para dela extrair sua dramaticidade. Mas, para que este estágio fosse alcançado, antes seria necessário que a história se fizesse matéria de poesia. É neste caminho que se coloca uma obra que possui uma estrutura e um sentido bastante diverso do das crônicas: A Mirror for Magistrates (Um espelho para os magistrados).

    Um espelho para os magistrados é uma obra coletiva, composta de cinco livros e escrita durante um período de cinco anos — o primeiro livro é editado em 1599 e o último, em 1610. Os autores são figuras mais ou menos proeminentes na corte. Os autores eram políticos mais preocupados em conseguir estabilidade numa época de mudanças e tensão do que em criar teorias sobre o Estado.

    O livro foi inicialmente concebido como continuação da obra de John Lydgate (1370-1451) — The Fall of Princes (A queda dos príncipes, 1431-1439) — ainda extremamente popular no século XVI, dela tomando por empréstimo o tema da Fortuna como causadora das tragédias dos poderosos. Os autores de Um espelho para os magistrados acreditavam que a história e as lendas britânicas eram um poço inesgotável de matéria trágica esperando para ser colhida. No entanto, eles foram mais fiéis do que Lydgate ao espírito do De Casibus Virorum Illustrium (Sobre o destino dos homens ilustres, 1355-1374), de Giovanni Boccaccio (1313-1375), acrescentando ao irracionalismo e à arbitrariedade das mudanças da Fortuna, a responsabilidade individual dos governantes e magistrados na sua própria desgraça. A grande maioria das histórias que compõem Um espelho para os magistrados é sobre tragédias de retribuição por pecados ou erros cometidos.

    No próprio título já se pode perceber as intenções autorais: imagens especulares eram uma constante na era elisabetana. Esta ideia, derivada do mito da caverna do livro sétimo da República (370 a. C), de Platão (427-347 a. C), concebia a poesia e, principalmente, as obras de historiografia, como um espelho no qual, através de feitos exemplares das figuras do passado, os contemporâneos de uma época posterior poderiam se contemplar. Nas crônicas, os governantes podiam perceber as diferentes imagens de um mesmo arquétipo, do qual eles próprios eram mais um exemplo. Assim, elas seriam espelhos que captavam as imagens de fatos passados, a fim de que os contemporâneos pudessem extrair o exemplo para sua conduta presente. Um espelho para os magistrados tinha como seu principal propósito a educação do príncipe através de uma série de histórias que o fariam evitar os vícios.

    O livro não é, no entanto, uma crônica. Ele dá ao material histórico que

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