Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Tragédias - Volume 1
Tragédias - Volume 1
Tragédias - Volume 1
E-book708 páginas5 horas

Tragédias - Volume 1

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

TRAGÉDIAS | TITUS ANDRONICUS | TIMON DE ATENAS | REI LEAR | CORIOLANO
Um dos maiores escritores de língua inglesa — quiçá o maior de todos —, William Shakespeare brinda o público com uma obra diversa e monumental. Suas primeiras criações datam do final do século XVI, não apenas fazendo parte, mas marcando o auge da época de ouro do teatro inglês. De temas abrangentes e reflexões profundas, as peças do autor atravessam os séculos e influenciam a cultura até os dias de hoje.
Neste volume, temos acesso a quatro tragédias fundamentais do Bardo: Titus Andronicus, em que acompanhamos o poderoso general romano que dá título ao texto em seu retorno após a grande vitória contra os godos. Sua recusa em as-cender ao trono, entretanto, gera as disputas mais sangrentas possíveis. A peça se-guinte, Timon de Atenas, traz o irreverente personagem em banquetes monumen-tais, pelos quais conhecemos as diversas faces da alma humana e suas vicissitudes. A terceira peça, Rei Lear, é considerada por muitos uma obra-prima, acerca das controvérsias decorrentes da tentativa de divisão do reino da Bretanha pelo pró-prio rei. Por último, temos a grandiosa Coriolano, que acompanha o general mais odiado pelos romanos, chegando a um final trágico e sangrento.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de jan. de 2022
ISBN9786556404363
Tragédias - Volume 1
Autor

William Shakespeare

William Shakespeare (1564–1616) is arguably the most famous playwright to ever live. Born in England, he attended grammar school but did not study at a university. In the 1590s, Shakespeare worked as partner and performer at the London-based acting company, the King’s Men. His earliest plays were Henry VI and Richard III, both based on the historical figures. During his career, Shakespeare produced nearly 40 plays that reached multiple countries and cultures. Some of his most notable titles include Hamlet, Romeo and Juliet and Julius Caesar. His acclaimed catalog earned him the title of the world’s greatest dramatist.

Autores relacionados

Relacionado a Tragédias - Volume 1

Títulos nesta série (3)

Visualizar mais

Ebooks relacionados

Artes Cênicas para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Tragédias - Volume 1

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Tragédias - Volume 1 - William Shakespeare

    Shakespeare. Grandes obras 2. Tragédias. Liana de Camargo Leão. Organização. Barbara Heliodora. Tradução. Editora Nova Fronteira.Shakespeare. Grandes obras 2.Volume 1. Tragédias. Tradução e introdução às peças: Barbara Heliodora. Organização: Liana de Camargo Leão. Introdução geral: Fernanda Medeiros e Liana de camargo Leão. Titus Andronicus. Timon de Atenas, Rei Lear, Coriolano. Editora Nova Fronteira.

    Títulos originais:

    Titus Andronicus

    Timon of Athens

    King Lear

    Coriolanus

    © Copyright da tradução 2021 por Espólio de Barbara Heliodora.

    Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela Editora Nova Fronteira Participações S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite.

    Editora Nova Fronteira Participações S.A.

    Rua Candelária, 60 — 7º andar — Centro — 20091-020

    Rio de Janeiro — RJ — Brasil

    Tel.: (21) 3882-8200

    Créditos de imagem

    Capa:

    Rembrandt van Rijn, Retrato velho. 1632, Harvard Art Museum.

    Benjamin West, King Lear. 1788, O.S.T., Museum of fine Art, Boston.

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    S527g

    Shakespeare, William

    Grandes obras de Shakespeare: volume 1: tragédias / William Shakespeare; traduzido por Barbara Heliodora. – 2.ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 2022.

    616 p.

    Formato: e-book, 2.748 KB

    ISBN: 9786556404363

    1. Peças de teatro – tragédias. I. Heliodora, Barbara. II. Título.

    CDD: 882

    CDU: 82-2

    André Queiroz – CRB-4/2242

    Sumário

    Volume 1

    A tragédia shakespeariana

    Titus Andronicus

    Timon de Atenas

    Rei Lear

    Coriolano

    Cronologia conjectural das peças de William Shakespeare

    A tragédia shakespeariana

    Assistir a Rei Lear é se aproximar do reconhecimento de que não há, no fundo, nenhum sentido para a vida e de que há limites para a compreensão humana. Então, nós deitamos ao chão um fardo pesado e nos tornamos mais humildes. Isso é o que a tragédia de Shakespeare alcança para nós. (Peter Ackroyd)

    Ao reunir as peças de Shakespeare em um volume de obras dramáticas completas — o Primeiro fólio (1623) —, seus colegas de companhia teatral, os atores John Heminges e Henry Condell, utilizaram as categorias Comédias, Dramas históricos e Tragédias, convidando os leitores desde então a compreender as obras dentro desses três gêneros. Comédias e tragédias eram categorias que vinham da Antiguidade; a novidade eram os Dramas históricos (Histories), que comportam as dez peças sobre a história inglesa: nove tratando de reis da Idade Média, e uma de um rei do período moderno. Ocorre, entretanto, que Shakespeare é, antes de tudo, um grande experimentador, e nos gêneros mais conhecidos não vamos deixar de encontrar grandes desafios analíticos, pois, nas mãos do Bardo, os conceitos de tragédia e comédia se expandem e se hibridizam.

    A busca por uma definição do que constituiria a tragédia shakespeariana vem de longa data. As respostas têm sido variadas, contraditórias ou amplas demais para que possam ser sintetizadas em uma fórmula única e coerente, capaz de propor uma teoria que responda por todas as dez tragédias do cânone, a saber: Titus Andronicus (1591-3); Romeu e Julieta (1594-6); Júlio César (1599); Hamlet (1600-1); Otelo (1603-4); Timon de Atenas (1605-8); Rei Lear (1605-6); Macbeth (1606); Antônio e Cleópatra (1606-8) e Coriolano (1608). Kenneth Muir (1972) afirma que não há algo como a tragédia shakespeariana; há somente as tragédias shakespearianas, cada peça constituindo um novo experimento no gênero. Stephen Booth (1983) comenta que a busca por uma definição de tragédia tem sido a mais persistente e difundida de todas, ainda que o gênero sofra de uma instabilidade radical.

    Conquanto não possamos, felizmente, escapar dessa variedade, não deixamos de observar elementos comuns a essas obras, algumas delas tornadas objetos de verdadeira devoção e releituras infindáveis em nossa cultura. Tais elementos resultam da relação de Shakespeare com as transformações radicais que marcaram a sua época — o início da modernidade —, relação formatada pelo forte aparato verbal que ele desenvolveu graças à sua formação em uma grammar school inglesa, e modulada pela compreensão que ele provou ter dos hábitos mentais fomentados pela cultura humanista e retórica. Já é um lugar comum dizermos que Shakespeare é nosso contemporâneo tamanha a ressonância de suas peças ainda hoje. Lembremos, contudo, que ele é também, e profundamente, um homem de seu tempo.

    Sabemos que o conceito de originalidade é posterior ao século XVI; mas talvez não seja tão claro que Shakespeare e seus pares foram, antes de tudo, leitores e adaptadores. Para alguns, é quase um choque a informação de que Shakespeare não é o criador de Romeu e Julieta, tampouco de Otelo, Iago ou Desdêmona, ou ainda de Lear ou Hamlet. O humanismo, movimento intelectual que começa a se desenvolver na Europa desde o século IX, e que alcança seu ápice entre os séculos XIV e XVI, propiciou um cenário não de criadores, mas de inventores, imitadores e emuladores, seguindo os procedimentos composicionais clássicos — a inventio,1 a imitatio, a emulatio. Produzir obras não representava gerá-las do nada, mas reprocessar materiais e histórias conhecidos inventariando-os, imitando-os, emulando-os. Isso se aplica não apenas aos dramaturgos e poetas elisabetano-jaimescos, mas a filósofos e pensadores que, juntamente com Shakespeare, ajudaram a desenhar o que passou a se chamar modernidade; nomes como Nicolau Maquiavel (1469-1527) e Michel de Montaigne (1533-1592).

    São esses modos de fazer sempre no regime dialógico e intertextual, característicos da cultura humanista, que possibilitam que a tragédia moderna assuma formas tão variadas, com fontes ecléticas e um repertório de referências inesgotável. Em geral, quando falamos em tragédia, logo nos vem à mente a tragédia grega, com seu coro narrador, seus deuses em disputa com os homens, suas maldições milenares contagiando gerações. Mas a tragédia grega é apenas uma das diversas referências a informar a tragédia moderna, juntamente com uma série de outras, e não é das mais determinantes, pois os ingleses eram admiradores da cultura latina, em detrimento da grega, e foram, ademais, impiedosos com as regras clássicas aristotélicas.

    Assim, quando pensamos nas influências da tragédia elisabetano-jaimesca, temos uma lista longa de itens: a tragédia clássica, sobretudo a tragédia romana de Sêneca (?-65 d.C.); a história antiga; a mitologia grega, principalmente nas narrativas do poeta romano Ovídio (43-17 a.C.) em seu livro As metamorfoses; as narrativas medievais, também chamadas de tragédias, sobre a queda de poderosos; os contos e poemas de Geoffrey Chaucer (1340?-1400) e Giovanni Boccaccio (1313-1375); o drama medieval popular; as tragédias de transgressão moral de Christopher Marlowe (1564-1593), contemporâneo do Bardo; as dezenas de narrativas italianas; o folclore; a Bíblia. No caso de Shakespeare, esse conjunto variado é trabalhado com uma habilidade ímpar de formular discursos que adequam personagens a ocasiões e a relações particulares, e com uma ousadia verbal que tira partido máximo da educação retórica e de uma língua inglesa que se encontra profundamente aberta a inovações lexicais, com um alto grau de plasticidade, receptiva aos neologismos e desejosa de se firmar intelectual e poeticamente diante do latim.

    Um repertório tão rico e variado de nada adiantaria, ou talvez nem viesse a ser utlizado, sem um público igualmente diverso e disposto a consumi-lo. A importância da contingência comercial do teatro elisabetano-jaimesco nos permite entender que seu caráter experimental e híbrido responde também à necessidade de agradar a uma plateia múltipla e numerosa: homens e mulheres de diferentes classes sociais e ocupações, podendo chegar a 2 ou 3 mil pessoas por sessão, e com a concorrência desafiadora de outros teatros, das brigas de ursos com cães (bearbaitings) e do espetáculo das execuções de criminosos. É de uma indústria cultural que estamos falando quando pensamos no teatro inglês do Renascimento. Em Shakespeare and the Traditions of Tragedy, George K. Hunter (1997) menciona o importante papel desempenhado por ouvintes e espectadores (hearers e viewers, como foram referidos os membros do público teatral inglês) em suas demandas em relação às peças. Segundo o crítico, as plateias esperavam encontrar intrigas inteligentes, conflitos de valores estimulantes, transformações inesperadas, diálogos elaborados e séria moralização poética. Com isso, a própria noção de tragédia se flexibiliza, incorporando temas que lhe eram estranhos, como o do amor erótico, até então típico das comédias; incorporando momentos cômicos; desrespeitando a regra aristotélica das unidades de tempo, espaço e ação. Para os elisabetanos, o que diferenciava tragédias e comédias não era a presença ou ausência de comicidade, mas sobretudo o fato de que, nas tragédias, já se sabia que os protagonistas morreriam ao final, e, nas comédias, isso não aconteceria. No mais, tudo é infinita variedade, como diria Enobarbo, personagem shakespeariano de Antônio e Cleópatra — porque, afinal, era preciso vender ingressos.

    Uma arte que se apropria simultaneamente de várias fontes, não estando sujeita a regras clássicas; que investe pesadamente na linguagem e tem como foco um público múltiplo: eis aí as fundações do teatro shakespeariano. A esses aspectos, acrescente-se a escuta de Shakespeare ao seu contexto histórico, o início da modernidade — "early modernity, em inglês, termo mais utlizado nos dias de hoje, no âmbito dos Estudos Shakespearianos, do que Renascimento. Trata-se de um momento marcado por grandes rupturas no Ocidente, como a descoberta das Américas, a Reforma Protestante, as revoluções astronômicas e a reabilitação do pensamento pagão da Antiguidade. É nesse cenário que o movimento humanista realiza sua grande revolução pedagógica, que a classe média ganha cada vez mais espaço, que os estados modernos começam a se formar, produzindo a ideia de identidades nacionais bastante moldadas a partir da língua e da história vernáculas. Na Inglaterra, testemunham-se igualmente os efeitos da ruptura de Henrique VIII com a Igreja Católica, ocorrida em 1533, e a subsequente criação de uma Igreja de Estado, além de uma importante vitória naval sobre os espanhóis, em 1588, e uma mudança dinástica que parecia pouco auspiciosa, com a morte de Elizabeth I e a ascensão de Jaime I, dos Stuarts, em 1603. Diante de acontecimentos que colocaram o mundo de cabeça para baixo", como os próprios elisabetanos formulavam, a experiência de crise e transformação é que vai fornecer a temperatura afetiva e epistemológica do período, na medida em que a ideia de mobilidade e impermanência passa a atravessar todas as áreas da vida. A tragédia responde a isso sublinhando o caráter angustiante das mudanças que, embora prometam o progresso, não resolvem o problema máximo da finitude humana; a comédia, por sua vez, celebra a instabilidade enquanto condição propiciadora da vitalidade e dos encontros.

    É nesse cenário, igualmente, que um novo ator social começará a ter seus contornos cada vez mais fortemente delineados: o que entenderemos por indivíduo moderno — fruto das camadas médias e da Reforma Protestante, além de beneficiário da revolução pedagógica humanista, que triplicou o número de escolas de ensino fundamental, as grammar schools, durante o reinado de Elizabeth I. A presença, no imaginário da época, de um indivíduo que não está mais determinado por seu nascimento, que pode modelar-se por meio da educação, e que pode acessar a palavra divina diretamente e não apenas por intermédio de um sacerdote, torna-se um aspecto essencial para a recepção da tragédia shakespeariana, cujos enredos constroem-se sempre em torno de grandes indivíduos e seus processos de escolha, decisão e responsabilização. É nesse indivíduo crente em sua própria autonomia, cuja potência ganha amplificação pela roupagem que Shakespeare lhe dá em seus dramas — serão reis, generais, príncipes — que teremos a semente dos grandes protagonistas trágicos, pois nosso autor, embora figurasse suas histórias em cenários medievais, entre os castelos e as cortes da realeza, não falava exclusivamente sobre, ou para, a aristocracia. Sendo ele próprio oriundo da classe média, tomou como modelo de subjetividade trágica aquela que encontramos nesse tipo de indivíduo que se imagina dono do próprio destino. Caso a plateia inglesa do século XVI não acreditasse que indivíduos pudessem diferir da espécie; caso essa plateia não estivesse minimamente impregnada de uma ideologia de mobilidade socioeconômica, algumas das histórias trágicas contadas pelo Bardo talvez não fizessem sentido ou tivessem pouca ressonância.

    Tomemos o caso mais conhecido de todos, o de Romeu e Julieta. O apaixonamento infunde nos dois jovens o ímpeto de abrir mão de seus nomes próprios, de suas origens, para iniciarem uma nova história, modelada por eles. Se o que lhes impedia o amor era a briga secular das famílias, a solução era apartar-se delas, reinventando-se e renomeando-se: Eu não serei mais dos Capuletos, decide Julieta, após a festa; e Se me chamar de amor, me rebatizo: / E de hoje em diante eu não sou mais Romeu, promete Romeu, na famosa cena do balcão (ato 2, cena 2). Os dois não escolhem se apaixonar, mas escolhem se casar, fazendo uso de uma liberdade que acreditam ter, a despeito de todos os obstáculos. Como todos os personagens trágicos, obedecem ao próprio desejo, ou à própria pulsão, e apesar do ódio que separa as famílias, alcançam seu encontro absoluto no amor e na morte. É muito importante atentarmos para o fato de que Shakespeare não julga seus personagens, não os condena, não os corrige. Retira de seus textos qualquer visada moralizante. Entrega-nos suas criaturas e suas paixões, entrega-nos suas intensidades, e nos proporciona a experiência de uma humanidade radical, fora do enquadramento dos certos ou errados. Exemplar também dessa forma de representação dos indivíduos é o caso de Macbeth: um general valoroso, honrado, homenageado pelo rei escocês por suas conquistas bélicas. Um homem que teria tudo para celebrar suas vitórias e seu prestígio, gozando do muito que já conquistara, mas que, por sua ambição, ou desejo, ou capricho, queria ser rei. Em nome desse incontrolável querer, Macbeth comete o crime hediondo e inafiançável do regicídio, e, o que é mais notável, perfeitamente consciente do horror que estava perpetrando. Termina por padecer de si mesmo, pois as Bruxas que o saúdam como rei nunca lhe disseram que teria de se tornar um assassino para portar a coroa. Esses gestos de plena agência são a base de valores centrais do que será a cultura ocidental moderna — uma cultura predominantemente individualista — e, portanto, uma janela de possível identificação da plateia com os personagens trágicos shakespearianos.

    São as idiossincrasias de cada indivíduo, capazes de distanciá-lo do corpo social e apartá-lo de sua comunidade, tornando-o uma máquina de autossatisfação e autodestruição a um só tempo, que formatarão as falhas trágicas dos personagens. O que A. C. Bradley, renomado crítico shakespeariano, denominou de caráter em seu clássico Shakespearean Tragedy (1991 [1904]), capta bastante bem essa característica, postulando a tragédia como um conflito dentro do herói, sempre alguém dividido, alguém que termina agindo contra si mesmo — e que quando ocupa uma posição de poder, pode vir a aniquilar todo um estado. Bradley circunscreveu a tragédia shakespeariana ao que ele chamou de quatro grandes tragédiasHamlet, Otelo, Lear e Macbeth — e suas análises concentram-se nessas peças, para ele representações perfeitas da ideia do trágico. No entanto, muito de suas ricas discussões são aplicáveis a todas as dez peças. Por exemplo, sua definição da tragédia shakespeariana como uma história de calamidade excepcional, conduzindo à morte de um homem que ocupa uma alta posição, na qual o protagonista sempre contribui em alguma medida para o desastre no qual ele perece é geral o bastante; bem como aquilo que ele considera a experiência central da tragédia: o desperdício do bem, "waste of good". Por que tal personagem age do modo como age? Por que opta por esse curso de ação, fatal para si? Por que não realiza a grandeza que já possui, por que quer mais? O desperdício do que poderia ser bom gera o efeito do enigma trágico, do mistério que não terá resposta. Não temos uma explicação definitiva para as ações humanas, ou para o quer que seja, e é essa talvez a pedagogia trágica shakespeariana: precisamos ser lembrados de que não sabemos, e de que desejamos saber.

    Não por acaso, o não saber que deseja saber é algo que a cultura retórica do século XVI também cultiva, ao aceitar que em não sendo possível atingir a verdade absoluta sobre as coisas, o que resta são as probabilidades, forjadas na linguagem. A cultura do início da modernidade constitui-se como uma cultura do debate (Altman, 1978), e o teatro moderno torna-se um palco perfeito para o que Russ McDonald (2001) chamará de perspectivismo. No século XVI inglês, em todas as áreas — religião, política, educação, filosofia — cultiva-se a prática da disputatio in utramque partem, a técnica de explorar um tema por perspectivas opostas. Estudantes, universitários, políticos, dramaturgos, advogados, teólogos — todos valorizam essa habilidade de argumentar. E um dos debates em voga na época será justamente sobre a extensão da potência individual, sobre a extensão da agência dos indivíduos e seu grau de liberdade. A Reforma Prostestante havia recolocado em pauta o tema da predestinação, e Erasmo de Roterdã (1466-1536) e Martinho Lutero (1483-1546) travam famoso debate, por meio de seus escritos, acerca do livre arbítrio ("free will") e sua relação com a salvação (1525). Erasmo defende a ideia de que as boas ações proverão um caminho para a salvação, ao passo que Lutero defende que a salvação é uma questão que cabe à graça divina, portanto à predestinação. Também Maquiavel colocava o problema da relação entre Vontade e Fortuna em seu volume O príncipe (1513/1532), apostando que cinquenta por cento das vidas dos homens competiam a eles, e o restante à Fortuna — que significa o acaso caprichoso, insuspeito, incontrolável. Emma Smith (2019) salienta o projeto tipicamente renascentista de investigar a mente humana, e a curiosidade sobre as causas e explicações de sentimentos e comportamentos que marcam a época. A tragédia shakespeariana é um dos locais privilegiados para a encenação dessa curiosidade e das indagações concernentes à autonomia e à liberdade dos indivíduos, e graças a esse interesse, termina por abranger um território existencial vastíssimo e toda espécie de conflitos em que sujeitos, visões de mundo ou sistemas de valores se encontram, expondo as contradições da natureza humana e das organizações sociais.

    ***

    Diante desse quadro geral, que nos fornece um macrocosmo do contexto histórico-cultural shakespeariano, voltemos ao microcosmo de cada tragédia e de suas particularidades. Em Titus Andronicus, Timon de Atenas, Rei Lear e Coriolano, com as variações que singularizam cada uma dessas obras, teremos a chance de ver em operação indivíduos em conflito com seus mundos e consigo próprios; relações afetivas e familiares intensas; escolhas equivocadas — excessos de humanidade que acabam por aniquilar os protagonistas e a tantos outros próximos deles.

    Titus Andronicus e Coriolano são a primeira e a última das quatro tragédias romanas de Shakespeare, juntamente com Júlio César e Antônio e Cleópatra. As peças romanas têm cunho fortemente político, e Roma nunca deixa de ser um personagem de seus enredos. Shakespeare tirou partido desse cenário distante no tempo e no espaço para proteger-se do olhar dos censores e para poder discutir de modo aprofundado os regimes de governo e suas crises. Tomando por base quase dez séculos de história romana, cobriu desde os primórdios da república, no século V a.C. (Coriolano) à sua derrocada e transição para o império, no século I a.C. (Júlio César e Antônio e Cleópatra), chegando à decadência do império, no século IV d.C. (Titus Andronicus). Com base nas biografias do historiador grego Plutarco (ca.46 - ca.120 d.C.) e nos relatos históricos de Tito Lívio (59 a.C. - 17 d.C.) — com exceção de Titus Andronicus, de matéria puramente ficcional —, Shakespeare aborda assuntos que interessavam muito aos ingleses, não só em função da enorme admiração que nutriam pelos romanos, mas em função de sua própria história política, plena de contradições e peculiaridades, como a presença precoce de um parlamento, desde 1215; a ruptura com a Igreja Católica, em 1533, seguida de uma alternância radical de religiões oficiais.2 Especificamente nessas peças, os protagonistas estarão envolvidos de modo muito direto com a esfera pública; suas subjetividades apresentam-se encharcadas de seus papeis políticos, com modulações diferentes do que vemos nas intrigas de usurpação e nas disputas de poder encenadas nas outras tragédias e nos dramas históricos. Nas tragédias romanas, os nomes próprios funcionam como metonímias de instituições ou do próprio Estado, e esse pertencimento inelutável ao coletivo também colabora para a experiência trágica ao já delinear uma divisão do sujeito entre um determinado dever e seus afetos íntimos. O indivíduo comparece em sua pujança, mas ao mesmo tempo representa algo maior que ele: o Estado (Roma; Egito); uma determinada crença (a República e seus valores; a guerra).

    Titus Andronicus é uma tragédia de vingança, subgênero muito popular na última década do século XVI. Foi por muito tempo a menos valorizada das tragédias, devido à sua mostração quase grotesca da violência: não apenas um, mas dois enredos de vingança, além de estupro, mutilações, infanticídio, incineração de humanos. Conta-se que na noite de estreia da produção de 1923 do Old Vic, em Londres, mais de dez pessoas desmaiaram na plateia. Anos depois, em 1955, o Shakespeare Memorial Theatre, em Stratford-upon-Avon, estreou uma montagem com Laurence Olivier e Vivien Leigh dirigidos por Peter Brook, que mantinha uma ambulância de prontidão na porta do teatro para atender aos membros da plateia que passavam mal... uma média de três por espetáculo.

    A montagem de Brook foi aplaudida na Inglaterra, viajando pela Europa nos anos seguintes, e ocasionando uma revalorização da peça, que desde então tem tido os seus méritos reconhecidos. Em 1957, Eugene Waith publicou um ensaio que, apontando a presença dos mitos ovidianos na obra, defendia sua estrutura trágica. De forma similar, A. C. Hamilton (1963) argumentou que a violência da obra não era gratuita mas estava a serviço de seu desenho trágico e que Titus mereceria ser abordada como uma obra seminal do cânone shakespeariano. Quando Jan Kott (1965) assistiu à montagem de Brook na Polônia, observou que "Peter Brook e Olivier decidiram encenar Titus por terem visto, na sua forma ainda bruta, o embrião de todas as futuras tragédias de Shakespeare. (...) O sofrimento de Titus antecipa Lear." Nos anos posteriores, muitos críticos retomaram a ideia de Titus como um protótipo para a criação Lear, enfatizando que ambos são patriarcas que agem de modo irascível, imprudente, inflexível e cruel para com os filhos e com consequências fatais para eles próprios, a família e toda a sociedade.

    Segundo o crítico Frank Kermode (2000), "Titus é provavelmente a peça mais erudita de Shakespeare, e suas referências à cultura clássica são tantas que Wolfgang Clemen (1967) a considera um caso de exibicionismo de saber". Essa convergência de excessos — o excesso de violência e o excesso de cultura livresca — é uma chave importante de leitura de Titus Andronicus. Somos confrontados com algo arcaico e tosco no mesmo golpe em que nos é dado ver uma longa tradição de narrativas e personagens clássicas que supostamente nos educariam e ilustrariam. Barbárie e civilização convivem em um mesmo texto, e nessa aproximação de paradoxos vemos um Shakespeare que nos fala do nosso próprio mundo, sem papas na língua; antecipando um Quentin Tarantino, na visão de críticos como Deborah Cartmell (apud Shakespeare, 2006).

    Uma outra ressalva que costuma ser feita a essa peça diz respeito a seu protagonista merecer ou não o estatuto de herói trágico. Titus, um general experiente que dedicou a vida ao combate e à derrota dos inimigos de Roma, que tem algo da senilidade de Lear e da subjetividade militarizada de Coriolano, vai ganhando envergadura trágica à medida que se torna um pária do Estado que ajudou a construir. Converte-se em vítima de um tirano caprichoso, mas, sobretudo, de erros que ele mesmo cometeu — não apenas um, mas dois erros fatais, logo no primeiro ato. Em função dessa falha, Titus será levado a encontrar uma região de si próprio que desconhecia, sua arrogância militar vai sendo solapada por sua condição de velho, de romano aviltado, de pai desesperado. Todo o terceiro ato dá lugar a uma epifania prolongada de Titus, merecendo nossa atenção por sua beleza e pungência, emblematizadas na imagem do velho general descendo ao chão em súplica e inundando a cena com suas lágrimas. Ainda que para exercer uma vingança, Titus é obrigado a se reinventar e nesse processo, as personagens femininas da peça mostram-se cruciais: Tamora, a rainha dos Godos, alçada ao posto de imperatriz de Roma propicia os ataques a Titus; e Lavínia, única filha mulher do general, uma das figuras femininas mais inquietantes de Shakespeare, moça estuprada e mutilada, uma ruína de mulher que dilacerará o coração do pai, mas que lhe infundirá a empatia necessária para que engendre uma nova língua.

    ***

    Coriolano é outra das tragédias pouco lidas e encenadas, a despeito de sua profunda relevância. Retrata um momento específico dos primórdios da república romana (séc. V a.C.), quando o povo ganha o direito de ser representado por tribunos junto aos patrícios. Acontece que o povo está faminto, pois os ricos guardam para si o excedente de grãos, de modo que a tentativa de democratização da sociedade produz abalos que deixam suas tensões à mostra, tornando o conflito de classes o tema estruturante da peça. Shakespeare o explora com um grau de complexidade surpreendente para a época, revelando como trágica a própria condição de uma sociedade que tenta se democratizar, mas cujas elites se recusam a dividir o alimento com a plebe. A entrada dos tribunos em cena corresponderia a uma tentativa de tornar essas forças menos assimétricas, mas não é isso o que essa tragédia nos mostra. Na medida em que os tribunos apenas substituem as elites na manutenção da subalternidade dos cidadãos; na medida em que a república converte-se em uma encenação superficial de democracia; na medida em que uma mãe entrega a cabeça do filho único ao Estado, somos postos em contato com a insolubilidade do conflito e com o fato de que a intolerância que o aristocrata Coriolano personifica não tem como alternativa a tolerância, mas o engodo, a demagogia, a força dos projetos pessoais de alguns poderosos. Na república recém-inaugurada, as técnicas de conservação do poder apenas se transformam, tornam-se mais maquiavélicas. Em uma conclusão de dolorido niilismo, essa obra parece sublinhar a forte relação entre a fome e o ódio em uma sociedade de classes: curiosamente, o ódio não é produto da fome, é antes o alimento prometido para satisfazer com rapidez todas as fomes. Daí a necessidade de se fabricar inimigos do povo — para que gerem o ódio-alimento que vai suprir a escassez dos grãos e saciar os corpos —, e em seguida eliminá-los, até que um novo inimigo seja forjado. Se a política surge, idealmente, como instrumento capaz de articular os diversos fios de interesse em jogo, e, no limite, como alternativa à guerra civil, Shakespeare sugere que seu efeito é antes domesticador, apaziguando tensões às custas de uma tirania exercida não mais pela força, mas pela palavra.

    Coriolano consiste, assim, em uma peça que parte do modelo de tragédia individual para culminar na tragédia de um projeto de sociedade e de um regime de governo. O herói é responsável por sua derrocada porque é primordialmente uma máquina de guerra, incapaz de se adaptar aos tempos de paz. Melhor que qualquer outro guerreiro, defende Roma dos inimigos estrangeiros, mas não consegue funcionar com a mesma efetividade na sociedade civil, ignorando como tratar seus concidadãos. Herói de grandes vitórias militares, o aristocrata orgulhoso não consegue fazer a transição para uma comunidade democrata em paz. Sem abrir mão da ênfase em seu protagonista, Coriolano apresenta-se como uma tragédia sem heróis, apenas com vencedores e vencidos. É digno de nota que, para Harold Bloom (1998), esta seja a peça mais política de Shakespeare, mais ainda que Júlio César e Henrique V".

    ***

    Timon de Atenas é outra no rol das tragédias pouco lidas e pouco encenadas, considerada por alguns uma peça inacabada. Frank Kermode (2000) nos lembra de que "Afora Titus Andronicus, é a tragédia menos admirada de Shakespeare, mas completa alertando que para outro grande crítico shakespeariano, G. Wilson Knight (1930), trata-se da mais extraordinária de todas". De fato, é uma peça estranha, talvez a mais amarga de todas as tragédias, mas quando tomamos conhecimento de que Timon provocou o interesse de Karl Marx pelo modo como figura o poder alquímico do dinheiro nas vidas das pessoas, percebemos que sua temática é profundamente atual e necessária: como construímos, ou tentamos construir, nossas identidades a partir de nossas posses.

    O percurso de Timon da prodigalidade à misantropia, pavimentado por sua incapacidade de distinguir o amor e a amizade da mais pura adulação, não deve deixar de provocar nossa empatia. Assim como nos dias de hoje muitos vivem alimentados pelos likes que recebem em suas redes sociais, e a fim de ganharem mais likes exibem-se ao mundo como belos, felizes e bem-sucedidos, Timon acreditava que era a sua riqueza que lhe garantiria seus amigos e sustentaria suas relações; acreditava que ao alimentar seus convivas com grandes banquetes e presentes valiosos estaria nutrindo afetos e não o canibalismo de que foi sendo objeto. Enganou-se a si próprio, em um misto de arrogância e ingenuidade, e terminou optando por odiar a espécie humana, isolando-se e morrendo só.

    O filósofo George Steiner, autor do influente A morte da tragédia, ao retomar suas reflexões sobre o trágico, elege Timon de Atenas como a única tragédia absoluta escrita por Shakespeare. Todas as demais tragédias do dramaturgo são escritas no modo tragicômico e não importa quão sombrias, elas acomodam sempre a confiança na continuação do mundo: assim, em Hamlet, Otelo, Macbeth e Lear, após a morte do protagonista, há o sentido de continuidade no governo dos herdeiros Fortimbrás, Cássio, Malcolm, e Edgar, respectivamente. Mesmo que Rei Lear possa, sob outro prisma, ser lida como terminando na escuridão, ainda assim a peça permite ideias de redenção. Timon de Atenas, para Steiner, é pura tragédia. Seu protagonista condena o mundo como irremediavelmente corrupto, a sociedade como asquerosa, homens e mulheres como animais lascivos, a geração de crianças como loucura bestial, e até mesmo o sol é caluniado. Finalmente, perto do desfecho, Timon ordena o fim da linguagem, um tropo reforçado pelo fato de que seu epitáfio deve ser constantemente lavado pelo mar, de modo que não reste mais texto. Timon é, assim, o ponto zero, o buraco negro da esperança em que tudo, e mesmo a linguagem, deve morrer.

    ***

    Rei Lear (1605-6) é uma históia de violência, ódio e traição tão perturbadora que por um tempo figurou como uma das obras menos populares de Shakespeare. Em 1681, a peça foi adaptada pelo jovem dramaturgo Nahum Tate (1652-1715) para se adequar à sensibilidade das novas plateias que desejavam histórias com um final feliz, como o de Charles II, restaurado ao trono inglês depois de onze anos (1649-1660) de governo republicano. Reescrita em linguagem simples, sem as metáforas, ambiguidades e paradoxos característicos de Shakespeare, a adaptação de Tate é uma estória sentimental que afirma o triunfo do bem e da virtude sobre o mal e o vício: somem o Bobo, a excruciante cena do cegamento de Gloucester e o desespero de Lear pela morte da filha; tudo termina com o rei de volta ao trono e o casamento de Cordélia e Edgar. Pelos 150 anos seguintes, é essa versão de Rei Lear que ocupa os palcos da Inglaterra.

    É apenas no século XX que esse drama pungente sobre duas famílias fraturadas em um universo sem Deus emerge como a obra-prima do poeta. Descrita pelo diretor Peter Brook como uma montanha cujo cume nunca foi alcançado e pelo crítico Jan Kott (1965) como uma montanha que todos admiram, mas ninguém deseja escalar, é a obra mais filosoficamente densa de Shakespeare, uma meditação profunda e sombria sobre a condição humana. Nas palavras do crítico Harold Goddard (1951), Lear é o documento mais sombrio na poesia suprema do mundo. Nas palavras de Harold Bloom (2010), é o cosmos ruindo no caos. Caos, ou Ran, em japonês, é o título que Akira Kurosawa deu para seu filme de 1985 baseado em Rei Lear. Mais que qualquer outra tragédia, Lear

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1