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O povo contra a corrupção: legitimidade e efetividade da participação popular no combate à corrupção
O povo contra a corrupção: legitimidade e efetividade da participação popular no combate à corrupção
O povo contra a corrupção: legitimidade e efetividade da participação popular no combate à corrupção
E-book366 páginas4 horas

O povo contra a corrupção: legitimidade e efetividade da participação popular no combate à corrupção

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Sobre este e-book

A autora apresenta uma resposta cidadã à corrupção, por meio da participação popular na construção de mecanismos reguladores e mitigadores, para combater a chaga da corrupção que corrói a democracia e ameaça o Estado Democrático de Direito brasileiro. Demonstra o perigo que a corrupção representa ao Estado Democrático de Direito e analisa caminhos de combate e controle da corrupção no ambiente institucional, apontando que o enfrentamento da corrupção é travado nos campos do controle administrativo-burocrático, judicial e não-estatal. Aponta duas modalidades de controle da corrupção: primeiramente, pela via judicial, através das leis de combate à corrupção, começando pela FCPA, lei norte-americana que colocou a corrupção no centro do debate político-econômico internacional, e pela Lei Anticorrupção brasileira, uma pequena luz no fim do "propinoduto". E por meios não-estatais, a análise da Iniciativa Popular e o Observatório Social do Brasil, instituição não governamental criada com a finalidade de fiscalizar a elaboração e a condução dos processos licitatórios em nível municipal e a destinação das verbas públicas empregadas nesses processos. Demonstra que o êxito no combate à corrupção será efetivado pela participação ativa do cidadão, legitimada por procedimentos institucionais deliberativos que assegurem o espaço democrático e igualitário a toda sociedade civil.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de mar. de 2022
ISBN9786525224329
O povo contra a corrupção: legitimidade e efetividade da participação popular no combate à corrupção

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    O povo contra a corrupção - Helimara Moreira Lamounier Heringer

    1. OS FUNDAMENTOS DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO

    É necessário delimitar o entendimento que se tem de Estado Social e Democrático de Direito. Como ponto de partida emerge a questão: qual é a atual compreensão do Estado Democrático de Direito e da cidadania; e como tal abordagem promoverá uma política de integração e combate à corrupção capaz de favorecer a manutenção das conquistas sociais do Welfare State? Tal balizamento será estabelecido com a apresentação dos conceitos contemporâneos de Estado Democrático de Direito e cidadania, em superação ao conceito de Estado Social.

    Com a influência do pós-positivismo¹, o conceito do Estado tem sido revisto, sob a perspectiva do Estado Democrático de Direito, apresentando características bem distintas dos modelos anteriores, o Estado de Direito e Estado Social. Na proposição de uma nova interpretação da relação entre direito e ética, que materialize a conexão entre princípios e regras com os direitos fundamentais, oferecendo uma maior liberdade na aplicação de princípios, que assumem uma condição normativa e possibilitam o resgate dos valores na interpretação jurídica. Caracteriza-se ainda pelo desenvolvimento de uma nova hermenêutica que prepondera a argumentação jurídica.

    Essa releitura interpretativa dada ao Estado Democrático de Direito, fundamentada na dignidade da pessoa humana, possibilita ainda o desenvolvimento de novas ênfases à teoria dos direitos fundamentais, permitindo uma releitura de conceitos tais como democracia e cidadania para a construção de um conceito de Estado Social e Democrático de Direito capaz de responder satisfatoriamente aos anseios do presente momento.

    Para trazer maior precisão conceitual ao Estado Democrático de Direito será apresentada, além das características que o compõem, a sua construção histórica, passando pelo Estado de Direito e Estado Social, bem como sua conexão com a conceituação contemporânea de democracia e cidadania, na construção necessária de novos paradigmas do que seja o Estado Democrático de Direito, que proporcione avanço conceitual e prático, concomitante com a preservação das conquistas sociais do Welfare-State.

    A CONTRIBUIÇÃO INGLESA, ALEMÃ E NORTE-AMERICANA NA CONSTRUÇÃO HISTÓRICO CONCEITUAL DO ESTADO DE DIREITO

    A defesa do Estado de Direito tornou-se uma ideia quase consensual e considerada por muitos como um pilar da democracia. Avalia Oscar Vilhena Vieira² que, de libertários como Hayek a marxistas – que antes enxergavam no discurso de Estado de Direito apenas mais uma superestrutura capaz de manter o poder das elites – especialmente, nas últimas duas décadas do último século, nenhum outro conceito foi acolhido por um espectro político tão amplo, como a noção de Estado de Direito. Entretanto, tal acolhimento não significa necessariamente consenso. Uma vez que sob o lema do Estado de Direito, ideias diametralmente opostas e noções as mais diversas têm sido defendidas como parte do entendimento do que seja o Estado de Direito.

    A ideia central do Estado de Direito, segundo Manoel G. Ferreira Filho³, tem raízes na Antiguidade, que é a noção de um direito que seja universal e extensivo a todos os homens.

    É a tese de que existe um direito que não é criado, mas apenas descoberto pelos homens, direito este que é superior aos governantes, que não o podem validamente alterar. A mais famosa apresentação desta tese é o tema fundamental da Antígona de Sófocles, onde a heroína afirma existir um direito feito pelos deuses, não escrito, inabalável, composto de «leis que não são de hoje nem de ontem, mas que sempre existiram e existirão sempre»⁴.

    Gustav Radbruch dá uma noção do que não seja o Estado de Direito, ou a ideia de Estado de não Direito, no qual

    A ordem é ordem, se determina ao soldado. Lei é lei, diz o jurista. Mas enquanto, para o soldado, o dever e o direito à obediência cessam quando ele percebe que o pedido propõe um crime ou uma contravenção, o jurista não sabe, por cerca de cem anos, que o último jus-naturalista morreu, exceto por alguns para a legitimação da lei e para a obediência do indivíduo em relação a ela. A lei é válida porque é lei e é lei quando tem o poder de se impor na regularidade dos casos. Essa concepção da lei e sua validade (que a chamamos de doutrina positivista) deixaram juristas e pessoas indefesas contra as leis mais arbitrárias, cruéis e criminosas. Em suma, ele equipara a lei com poder: somente onde há poder, há direito (tradução livre)⁵.

    Para que se compreenda a noção de Estado de Direito, pode-se tomar o entendimento de que um Estado de não Direito se caracteriza por leis arbitrárias, autocráticas, cruéis ou criminosas, que tenham sido decretadas pelo próprio Estado, no qual a vontade dos líderes prevalece sobre a noção de bem comum, invariavelmente, impostas pela força estatal, estabelecendo uma condição de injustiça e desigualdade na aplicação do Direito.

    Numa concepção clássica, o Estado de Direito envolve o entendimento de que o ente estatal seja regido por normas jurídicas, de modo que a atividade estatal e o poder que dela emana sejam limitados por preceitos legais, para que não se sobreponham às liberdades individuais dos cidadãos por ela tutelados⁶.

    Tais direitos fundamentais, fruto do pensamento liberal do Século XVIII, foram reconhecidos nas primeiras constituições escritas. E tiveram sua origem e constituição marcados por documentos históricos tais como a Magna Carta, de 1215, assinada pelo rei João Sem Terra, a Paz de Westfalia, de 1648, o Habeas Corpus Act, de 1679, a Bill of Rights, de 1688 e, finalmente, as declarações de direitos Americana, em 1776, e Francesa, em 1789.

    Friedrich A. von Hayek ressalta que a liberdade individual poderia ser, assim, pautada por uma normatividade estabelecida capaz de trazer segurança jurídica aos cidadãos do Estado em questão:

    A característica que mais claramente distingue um país livre de um país submetido a um governo arbitrário é a observância, no primeiro, dos grandes princípios conhecidos como o Estado de Direito. Deixando de lado os termos técnicos, isso significa que todas as ações do governo são regidas por normas previamente estabelecidas e divulgadas - as quais tornam possível prever com razoável grau de certeza de que modo a autoridade usará seus poderes coercitivos em dadas circunstâncias, permitindo a cada um planejar suas atividades individuais com base nesse conhecimento⁷.

    Desta forma, na perspectiva clássica, o Estado de Direito seria a contraposição ao Estado arbitrário. E um governo absolutista seria contraposto por um governo sob a égide do Estado de Direito, no qual o estabelecimento de normas fixas, claras e estáveis serviriam como instrumento de proteção à imprevisibilidade de governos autoritários.

    A concepção de que o Estado de Direito seja aquele no qual o Estado seja regido por leis, de modo a não se sobrepor às liberdades individuais de seus cidadãos, emerge a crítica de que tal Estado de Direito poderia ser exercido por um Estado autoritário⁸, revelando a insuficiência de tal conceituação.

    Historicamente, na construção de tal conceito, Hayek⁹ destaca as contribuições da Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos. Assevera que, na segunda metade do Século XVII, após duzentos anos de governos absolutos, as tradições de liberdade haviam sido destruídas. É nesse contexto que surgem os primeiros movimentos na direção de um Estado baseado em leis.

    O ESTADO DE DIREITO E A RULE OF LAW

    A construção do conceito de Estado de Direito, na Inglaterra, é marcada por luta pelas liberdades individuais. Inicialmente, como uma luta pelo poder e, a posteriore, com o consolidar da luta pelas liberdades individuais, a preservação e o aprimoramento da mesma tornaram-se um ideal neste país.

    Se o homem medieval conheceu diversas liberdades (no sentido de privilégios concedidos aos diferentes feudos ou pessoas), raramente conheceu a liberdade como uma condição comum a todas as pessoas. De certo modo, as concepções que predominavam na época em relação à natureza e às fontes da lei e da ordem impediram que a questão da liberdade surgisse na sua forma moderna. Entretanto, poderíamos dizer também que, na Inglaterra, a relativa preservação do ideal da supremacia da lei, comum na Idade Média, destruído em outros países pelo avanço do absolutismo, permitiu que ali tivesse início a moderna evolução do conceito de liberdade¹⁰.

    Em contraposição ao conceito usualmente aceito na Idade Média, de que o Estado não poderia criar leis, uma vez que a mesma vem de Deus, ao fim do período medieval, o conceito da criação deliberada de novas leis, o poder legislativo, tornou-se gradualmente aceito.

    Ainda assevera Hayek,

    O novo poder do Estado nacional altamente organizado, que surgiu nos séculos XV e XVI, usou pela primeira vez a legislação como um instrumento de política de governo. Por um momento, pareceu que esse novo poder levaria, na Inglaterra, como já ocorrera nos países da Europa continental, ao estabelecimento de uma monarquia absoluta que destruiria as liberdades medievais. A concepção de governo limitado, originária das lutas inglesas do século XVII, representou assim um novo ponto de partida, suscitando novas questões. A doutrina que vigorava anteriormente na Inglaterra ou os grandes documentos medievais, desde a Magna Carta, a grande "Constitutio Libertatis", são importantes para o desenvolvimento do conceito moderno, porque foram as armas usadas nessa luta¹¹.

    A influência dos autores clássicos sobre o Direito inglês pavimentou o caminho até a liberdade individual, na disputa entre o Parlamento e o rei. Hayek frisa ser interessante que a disputa tenha se dado em torno de questões econômicas à semelhança do que se passa até o período atual.

    Para o historiador do século XIX, as medidas de Jaime I e Carlos I, que provocaram o conflito, devem ter parecido questões antiquadas, sem maior interesse. Para nós, os problemas causados pelas tentativas dos reis de instituir monopólios industriais não representam novidade: Carlos I tentou até estatizar a indústria de carvão, mas abandonou a ideia quando soube que isso poderia provocar uma rebelião. A partir do momento em que um tribunal estabeleceu, no famoso Processo dos Monopólios, que a concessão de direitos exclusivos para a produção de qualquer artigo era contrária à igualdade perante a lei e à liberdade do súdito, a exigência de leis gerais, aplicáveis igualmente a todos os cidadãos, tornou-se a arma principal do Parlamento para impedir os objetivos do rei¹².

    Em 1885, Albert Venn Dicey¹³ destaca três características da Rule of law: a) que nenhum homem pode ser punido ou ser legalmente obrigado a sofrer no corpo ou nos bens, exceto por violação da lei estabelecida; b) que ninguém está acima da lei, independentemente de posição social, sendo todos sujeitos aos tribunais ordinários; e c) que a Rule of law é um atributo especial das instituições inglesas.

    Queremos dizer, em primeiro lugar, que nenhum homem é punível ou pode legalmente sofrer punições em seu corpo ou bens, exceto por uma violação expressa da lei estabelecida de maneira legal e ordinária, perante os tribunais comuns da terra. Nesse sentido, o Estado de Direito é contrastado com todo sistema de governo baseado no exercício pessoal de autoridade e poder de restrição amplo, arbitrário ou discricionário.

    Queremos dizer, em segundo lugar, quando falamos do Estado de Direito, enquanto característica do nosso país, não só que entre nós nenhum homem está acima da lei, mas (o que é diferente) que aqui todos os homens, qualquer que seja a sua posição ou condição, está sujeito à lei comum do reino e passível da jurisdição dos tribunais ordinários.

    Resta um terceiro sentido, diferente, no qual o Estado de Direito ou a predominância do espírito jurídico podem ser descritos como um atributo especial das instituições inglesas. Podemos dizer que a constituição está permeada pelo Estado de Direito com o fundamento de que os princípios gerais constitucionais (como, por exemplo, o direito à liberdade pessoal ou o direito de reunião pública) são como resultado de decisões judiciais que determinam direitos privados, em casos concretos apresentados aos tribunais; nos quais, em muitas constituições estrangeiras, a segurança dada aos direitos dos indivíduos resulta ou parece resultar do princípio geral da constituição (tradução livre)¹⁴.

    A doutrina do direito inglesa, no período medieval, conduziu ao que se considera o antecedente direto do Estado de Direito, a rule of law, sob forte influência do movimento liberal. Segundo José Joaquim G. Canotilho,

    O Estado de Direito é um Estado liberal no seu verdadeiro sentido. Limita-se à defesa da ordem e segurança públicas (Estado polícia, Estado gendarme, Estado guarda nocturno), remetendo-se os domínios económicos e sociais para os mecanismos da liberdade individual e da liberdade de concorrência. Neste contexto, os direitos fundamentais liberais decorriam não tanto de uma declaração revolucionária de direitos, mas do respeito de uma esfera de liberdade individual¹⁵.

    Basicamente, a rule of law significa quatro coisas: a) a imposição e a prevalência das leis e costumes do país sobre a discricionariedade do poder estatal; b) a sujeição dos atos do poder executivo à soberania do parlamento; c) a obrigatoriedade da adoção do devido processo legal, ao se punir cidadãos, privando-os da sua liberdade ou propriedade; e d) o direito e a igualdade de acesso aos tribunais para todo e qualquer indivíduo a fim de defender os seus direitos, perante qualquer ente público ou privado, sob os princípios do direito comum¹⁶.

    A Magna Carta Libertatum, de 1215, é uma referência da rule of law, através da qual a autoridade do governo exercida em consonância com as leis existentes. O Rei João Sem Terra foi coagido pelos barões ingleses a prometer obediência à mesma. Esse documento pode ser considerado um dos principais precursores de todas as futuras Declarações de Direitos.

    Na Europa, o que diferenciou as doutrinas inglesas das demais – mesmo tendo cada uma delas recebido a influência da Antiguidade e as ideias básicas do cristianismo medieval, em especial, de Tomás de Aquino – é que elas tiveram na common law condição propícia para a concretização da rule of law.

    Segundo Ferreira Filho¹⁷, a common law materializava a reta razão de todos os homens ou razão judicial, formulada por especialistas.

    No século XVII, antes das revoluções, já apareciam como princípios definidos da common law não só a invalidade dos atos, inclusive leis aprovadas pelo Parlamento, que a contradissessem; mas também a necessidade de lei formal para a criação de direitos e obrigações (lei, é claro, conforme à reta razão), a igualdade perante a lei. Também já era esboçada «a garantia da independência dos juízes»¹⁸.

    No entanto, apesar do fundamento da common law e da influência que outras obras tenham exercido na construção do Estado de Direito inglês, Hayek¹⁹ destaca que nenhuma outra obra teria preponderância tão duradoura nesse processo, como a obra de John Locke.

    Mas a liberdade dos homens submetidos a um governo consiste em possuir uma regra permanente à qual deve obedecer, comum a todos os membros daquela sociedade e instituída pelo poder legislativo nela estabelecido. É a liberdade de seguir minha própria vontade em todas as coisas não prescritas por esta regra; e não estar sujeito à vontade inconstante, incerta, desconhecida e arbitrária de outro homem: como a liberdade natural consiste na não submissão a qualquer obrigação exceto a da lei da natureza²⁰.

    A investigação filosófica de John Locke se concentra basicamente na fonte que legitima o poder e nos propósitos do governo em geral. Mas, no âmago de sua obra está a busca pela resposta de como impedir que um poder se torne arbitrário, independentemente de quem o exerça.

    A principal salvaguarda prática proposta por Locke contra o abuso de autoridade é a separação de poderes, que ele expõe, talvez menos claramente e em uma forma menos chã do que a utilizada por seus predecessores. Sua maior preocupação está na maneira de limitar a discricionariedade daquele que detém o poder executivo, mas não oferece nenhuma proteção especial. No entanto, seu objetivo último é aquilo que atualmente definimos como restrição do poder: os homens "elegem e autorizam um legislativo para que possam existir leis e ser estabelecidas normas que sirvam de salvaguarda e proteção aos bens de todos os membros da sociedade, para limitar o poder e moderar o domínio de cada parte e membro daquela sociedade²¹.

    Mais importante do que a separação dos poderes, de Locke, os limites legais do poder discricionário na área administrativa, na colocação de Hayek, é a pequena fenda pela qual, com o tempo, a liberdade de todos pode esvair-se²².

    Vieira assevera que para Hayek,

    a intervenção estatal na economia e o crescente poder discricionário dos burocratas de estabelecer e buscar objetivos sociais ameaçam a eficiência econômica; como consequência das transformações nas funções do Estado, houve um processo de declínio da condição do Direito como instrumento substantivo na proteção da liberdade. A noção de que o Estado não tem apenas a obrigação de tratar os cidadãos de maneira igual perante a lei, mas também o dever de assegurar a justiça substantiva foi acompanhada pelo argumento, proposto por novos teóricos jurídicos, de que o conceito tradicional de Estado de Direito se tornou incompatível com a nova realidade. Diferentes teorias jurídicas como o positivismo, o realismo jurídico ou a jurisprudência de interesses construíram uma versão formal do Direito, liberando o Estado das inerentes limitações impostas por uma concepção substantiva²³.

    Nessa ótica, para que a liberdade se estabeleça, as possibilidades de controle consciente devem restringir-se aos campos nos quais existam verdadeiros acordos, e que, em certas áreas da vida social, se deve confiar no acaso.

    A democracia é, em essência, um meio, um instrumento utilitário para salvaguardar a paz interna e a liberdade individual. E, como tal, não é, de modo algum, perfeita ou infalível. Tampouco devemos esquecer que muitas vezes houve mais liberdade cultural e espiritual sob os regimes autocráticos do que em certas democracias - e é concebível que, sob o governo de uma maioria muito homogênea e ortodoxa, o regime democrático possa ser tão opressor quanto a pior das ditaduras. Não queremos dizer, contudo, que a ditadura leva inevitavelmente à abolição da liberdade, e sim que a planificação conduz à ditadura porque esta é o instrumento mais eficaz de coerção e de imposição de ideais, sendo, pois, essencial para que o planejamento em larga escala se torne possível. O conflito entre planificação e democracia decorre, simplesmente, do fato de que esta constitui um obstáculo à supressão da liberdade exigida pelo dirigismo econômico. Mas, ainda que a democracia deixe de ser uma garantia da liberdade individual, mesmo assim ela pode subsistir de algum modo num regime totalitário. Guardando embora a forma democrática, uma verdadeira ditadura do proletariado que dirigisse de maneira centralizada o sistema econômico provavelmente destruiria a liberdade pessoal de modo tão definitivo quanto qualquer autocracia²⁴.

    A tradição legal inglesa versa que a lei deve governar até as pessoas e instituições. A rule of law visa conter o exercício arbitrário do poder. A tradição da common law, desde o século XIII até o século XVIII, era a da sujeição do rei ou governante a uma lei não escrita por ele. Sendo que para o rei ou qualquer outro, ignorar, anular ou modificar essa lei poderia ser considerado uma arbitrariedade. A concepção do Estado de Direito gradualmente se tornou mais preocupada com o caráter das regras que o soberano decretou: devendo ser claras, prospectivas e consistentes²⁵.

    O ESTADO BASEADO NA LEI: RECHTSSTAAT

    O termo Rechtsstaat foi inspirado pela filosofia jurídica e política de Kant. Tornou-se parte da doutrina constitucional alemã, no início século XIX, quando estudiosos alemães, fortemente impressionados com sua filosofia baseada na razão, formularam um programa de Rule of law para racionalizar o regime político e institucionalizar reivindicações liberais contra concepções estatais absolutistas, durante a transição do Estado prussiano para a unificação do Império Alemão²⁶.

    Numa tradição que envolve mais de 200 anos, Rechtsstaatlichkeit (variante alemã para Estado de Direito) e Rechtsstaat (o Estado baseado em lei), em conjunto com o princípio da democracia, os conceitos do Estado de bem-estar republicano, federalista e social e a garantia indispensável da dignidade humana são conceitos fundamentais do pensamento constitucional alemão.

    O termo Rechtsstaat descreve o tipo de sistema estatal no qual todo o poder aplicado publicamente é criado pela lei e é obrigado a seus regulamentos e está subjacente a numerosas fragmentações de poder e mecanismos de controle. Neste sentido, Rechtsstaatlichkeit é um termo coletivo para numerosos subprincípios que permitem a sujeição e o controle da política pela lei e evitar a arbitrariedade. Desta forma, em seu compromisso com uma ordem constitucional justa, Rechtsstaatlichkeit também revelada anseios democráticos e o respeito à liberdade e igualdade humanas individuais. Tais características se expressam na Grundgesetz, a constituição alemã. Desse modo, integrar o estado alemão em redes transnacionais exigirá sempre disposições adequadas para o exercício rígido do poder com base em leis²⁷.

    Robert von Mohl²⁸ defendeu uma concepção substantiva do Rechtsstaat, que alinha as exigências da justiça com os da segurança jurídica e conveniência. Ele defendeu um estado constitucional que protege a liberdade negativa dos seus cidadãos e abstém-se de intervenções que violam os direitos individuais. Isto implica que para se qualificar como um Rechtsstaat, o conteúdo normativo da Constituição deve ser levado em conta, especificamente, a proteção que é efetivamente prestada contra os crimes de terceiros em relação ao cidadão e opressão contra este por parte do próprio Estado.

    O conceito de Rechtsstaat se fundamenta em três princípios sob os quais o Estado deve ser moldado e limitado: a) a administração do estado deve ser baseada na lei; b) especialmente no que se refere à liberdade individual e ao direito de propriedade, a regulamentação formal da lei deve ser exigida; e c) toda a ação administrativa deve estar sujeita a revisão judicial. Estes três requisitos formais estabelecidos sem fornecer padrões normativos substantivos específicos compuseram a base do Estado Democrático de Direito na Alemanha.

    Portanto, a tradição germânica da Rechtsstaat não era apenas qualquer tipo de estado, mas um Estado que operasse com base em regras legais configuradas de maneiras particulares. Nela, prevalece a ideia de um Estado mínimo, nos moldes de um Estado liberal de direito. Os defensores do Rechtsstaat, contudo, não previram uma lei superior ao estado, uma base para apelar a uma noção mais elevada ou outra fonte de direito. A lei era uma característica do Rechtsstaat, mas também era seu produto.

    No entanto, os partidários do Rechtsstaat não previram uma lei superior ao estado, uma base para apelar a uma noção mais elevada ou outra fonte de direito. A lei era uma característica do Rechtsstaat, mas também era seu produto. A qualidade de rechtlich (legalidade) não-arbitrária do Estado era uma questão do grau no qual seus editos tomavam a forma de regras gerais que se enquadravam em critérios formais específicos e eram, em particular, para garantir certeza e previsibilidade. Nessa compreensão, Rechts significa que a lei é a estrutura do Estado, e não uma limitação externa a ele. ... A liberdade é uma consequência e não verdadeiramente uma premissa da lei (tradução livre)²⁹.

    Após o conflito da Segunda Guerra Mundial, houve uma forte oposição ao positivismo jurídico formal, como contraposição ao totalitarismo constitucional, tal como na Alemanha de Hitler e na Rússia, de Stalin, que para Hannah Arendt³⁰ se assemelhavam quanto a forma de lidar com as leis e a constituição, no sentido de usar da mesma com o fim de alcançar propósitos totalitários.

    A partir daí a compreensão do Estado de Direito com base no Grundgesetz passou a relacionar-se com uma cultura de direitos humanos universais, complementada por uma compreensão historicamente desenvolvida da justiça social. Rechtsstaat neste sentido deve ser entendido como o antimodelo completo para o autoconceito social e político do estado nacional-socialista. Hoje, o princípio da proporcionalidade permite verificar todas as medidas tomadas

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