Amor sob Telas: Insights sobre vivências afetivas na Era Digital
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Amor sob Telas - Kelly Christi
IMPASSES, CRUSHS E PIZZA
Escrever é exprimir os nossos enganos mais profundos, os debates e impasses do sentimento amoroso em uma criação, assim sustentou Roland Barthes em Fragmentos de um Discurso Amoroso
(1977) em seu questionamento sobre as relações amorosas no mundo contemporâneo e que inspirou os insights das páginas que você lerá a seguir.
Minhas vivências afetivas, desde a adolescência à então chegada da vida adulta sempre foram intermediadas pelo espaço virtual de alguma forma, mesmo que eu também tenha conhecido parceiros que considerasse interessantes em locais públicos e a convivência se tornasse mais próxima, pessoalmente. A tela estava ali, auxiliando as conversas, os interesses, as melhores fotos, os conflitos àquilo que se podia escolher silenciar ou criar, entre perfis de redes sociais e aplicativos de relacionamento.
Meus enganos mais profundos começaram a emergir quando o movimento de conhecer possíveis crushs por perfis compatíveis
se tornaram uma escolha entre likes ou não-likes por uma foto, aparentando ser algo normal no meu cotidiano, longe de muitas reflexões.
Por mais que os aplicativos de relacionamento tenham me proporcionado conhecer parceiros interessantes, as vivências que até então pareciam ser normais, passaram a se tornar algo mecânico e repetitivo em minha vida pessoal: a escolha de crushs, as mensagens simultâneas, alguns encontros, um possível envolvimento, um breve adeus.
O adeus sem término, vivendo na ausência de uma conversa final, na mensagem não lida, tampouco respondida no WhatsApp, no deletar dos contatos quando o interesse acabava entre ambos em questões de dias ou alguns meses e até mesmo a possibilidade de virar mais um contatinho, quando não houvesse uma opção com quem sair num sábado qualquer, tudo isto passou a ser parte dos meus debates e impasses, tanto como mulher, como um indivíduo, vivendo em uma cidade urbana, mergulhada em auxílios de aplicativos para diversas coisas, incluindo encontrar parceiros, feito pedir uma pizza.
Barthes (1977) aponta que o discurso amoroso, por muitos anos, foi hostilizado, deixado à deriva das ciências, dos conhecimentos. Ele é falado por milhares de indivíduos – e porque não dizer sentido em diversas formas, mas não é sustentado por ninguém, logo vive dentro de uma extrema solidão.
Para o autor, há uma necessidade em observá-lo como um retrato, pois é este que oferece em sua leitura um lugar de fala do eu, do outro, daquele que cala, evitando que o discurso amoroso caia em uma redução de sintomas psicológicos.
Cada vez mais aguçada por esta reflexão, passei a procurar leituras de cibercultura, amor, sexo e afetos na sociedade contemporânea que me instigaram a pesquisar sobre o tema e compartilhar insights de dois anos de pesquisa com pessoas, que talvez, sejam como eu: imersas nesta cultura de aplicativos, que já viveram alguma história afetiva dentro de um app de relacionamento.
Há ainda os que não se encaixam neste grupo, tenham vivido em uma outra geração e ainda estão tentando se contextualizar a este modo de viver os afetos, então sintam-se à vontade para ler as reflexões aqui compartilhadas também.
Acredito que para além da transformação de um eu, esta pesquisa se tratou de compartilhar um pouco da transformação de um nós – pronome que escolhi para compartilhar os próximos capítulos que serão apreciados.
DE OLHO
NO HAPPN
Além de ser inspirada em grandes pensadores contemporâneos como Michel Foucault, Zygmunt Bauman, Anthony Giddens, Manuel Castells, entre outros que se empenham em entender a sexualidade, os afetos e amores no mundo contemporâneo, a pesquisa também foi possível pelo encontro de reflexões colhidas por entrevistas anônimas de jovens adultos, entre 25-39 anos e economicamente ativos. Tivemos como base para definir este grupo as pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Ao longo deste livro, compartilharemos alguns trechos destas entrevistas com nomes fictícios. Os entrevistados são moradores de cidades urbanas, como São Paulo e região do ABC Paulista, jovens que já nasceram ou foram conduzidos a viver dentro desta nova configuração que modificou não só a economia como os hábitos dos indivíduos, o que o sociólogo Manuel Castells chama de sociedade em rede
(1999), a sociedade influenciada e mediada por conexões na rede das redes
: a internet.
Nestas entrevistas queríamos entender: o que os jovens buscavam em um aplicativo de relacionamento? Será que poderíamos falar somente de histórias líquidas, que se desfazem rapidamente, ou ainda havia grandes histórias de afeto que chegaram a uma vivência afetiva mais longa?
Longe de determinar preceitos da vida digital ou de pré-conceitos sobre as experiências dos indivíduos que se relacionam desta forma, pretendemos mostrar o tipo de mudança nas vivências afetivas entre jovens que utilizam aplicativos de relacionamento, dentro de uma perspectiva social, tomando como base as vivências no aplicativo Happn.
O aplicativo em questão foi desenvolvido na cidade de Paris em 2014, e lançado no Brasil em 2015, com a pretensão de ser concorrente do Tinder - um dos aplicativos mais populares deste nicho. Atualmente, o Brasil é o terceiro maior público do Happn, sendo um dos países que mais geraram lucros à empresa em 2018, e que chama a atenção de usuários pelo seu lema encontre as pessoas que cruzaram o seu caminho na vida real
.
Trata-se de um aplicativo que propõe aos indivíduos que frequentam ou passaram em locais em comum, mas por algum motivo momentâneo não se olharam, não se encontraram, tenham a possibilidade de ter um encontro, utilizando o compartilhamento de dados e a geolocalização de seus usuários para chegar a esta finalidade.
Porém, esta relação da proximidade, do cruzamento de indivíduos na vida real que poderia beirar ao acaso, mas que está sendo intermediado por um software, pareceu ser algo intrigante para entender uma transformação que, segundo hipóteses, leituras e questionamentos, carrega um passado não tão distante.
Partimos da ideia de que temos um certo tipo de liberdade construída socialmente, para escolher quem queremos e que ao mesmo tempo não deixaram de lado a ideia do romantismo, difundido midiaticamente: o acaso em dobrar a esquina, em ir em uma festa e encontrar alguém, como nos filmes românticos.
Em entrevista dada à Revista Exame, publicada em 6 maio de 2019, Didier Rappaport – CEO do Happn naquele momento, apontou que o aplicativo se diferencia de seus principais competidores pelo intuito do app buscar a junção do virtual e do real, e também por ter um conceito diferente de alguns concorrentes diretos.
Rappaport apontou nesta mesma entrevista que o marketing de alguns dos seus concorrentes pareciam vagos. A ideia Single, not sorry
– o mesmo que Solteiro, mas não sinto tanto
, realizada pelo Tinder era algo no qual o Happn não compactuava.
Segundo o CEO, o conceito do app é diferente, é um aplicativo moderno, falando de amor para tempos modernos, sem estigmas, onde tanto o homem, quanto a mulher, podem iniciar a conversa e os usuários podem ter a chance de compartilhar a vida com indivíduos reais que passaram por eles.
Algumas destas ideias foram completadas, quando no decorrer da pesquisa, tivemos a oportunidade de realizar uma entrevista exclusiva com a empresa, por meio de sua assessoria de imprensa no Brasil. Happn compartilhou alguns pontos de vista importantes como diferenciais do aplicativo, crescimento do app no Brasil, questões de privacidade e segurança, e como o aplicativo hipoteticamente poderia auxiliar no amor, nos tempos atuais.
Outra questão interessante, é que além da diferenciação do Tinder e da proximidade de indivíduos por geolocalização, como o aplicativo promete, a escolha também se deu por ser um dos apps mais utilizados entre adultos brasileiros, sobretudo na cidade de São Paulo.
Conforme matéria publicada no Jornal Estado de São Paulo, em 25 de fevereiro de 2017, o Happn contava com 27 milhões de usuários mundialmente, sendo 4 milhões no país e 1,2 milhões de usuários em São Paulo. Ainda, segundo a matéria, o app tem como foco fazer com que usuários em locais próximos se conheçam, evitando longos trajetos e bate-papos extensos.
Portanto, o Happn provou-se como um objeto interessante para entender como o passado recente posto na experiência de liberdade de escolha conquistada socialmente, de encontrar indivíduos pelos sentimentos e afinidades ligadas ao seu meio social, fundiu-se com as questões presentes das vivências afetivas: as muitas possibilidades de afeto com a utilização da tecnologia.
A análise das entrevistas partiu de um questionário, onde obtivemos resultados quantitativos e também por entrevistas pessoais, onde tivemos contato mais próximo com participantes que compartilharam experiências.
Disponibilizamos a opção voluntária para entrevistas on-line aos usuários que se sentissem mais à vontade para compartilhar as suas histórias pessoais com parceiros ou como se sentiam utilizando o app, dentro das vivências que tinham com frequência.
O questionário contou com a participação de 50 usuários desconhecidos do Happn e com 10 entrevistas que foram realizadas através de e-mail ou simultaneamente por WhatsApp.
Os usuários souberam da pesquisa através de um anúncio compartilhado em diversos grupos de paquera e relacionamentos no Facebook - como Afrocrush
, Match da URSAL
, Namoro e Paquera Oficial
, entre outros que escaparam da noção de origem, devido à viralização do anúncio.
A análise foi inspirada em conceitos de netnografia. Proposta por Robert Kozinets (2014) e com influências de etnografia, a abordagem se trata de uma metodologia aplicada em pesquisas realizadas na rede e se fundamenta em decisões importantes como: o que observar, como perguntar e preparar o campo
– no caso a observação de determinada comunidade virtual, sendo necessário também o anonimato dos entrevistados e/ou observados, motivo pelo qual optamos por nomes fictícios.
Chamaremos os olhares compartilhados de vivências afetivas. Em tempos de afetos digitais tão complexos, por vezes líquidos, é difícil entender o que é um relacionamento e como ele se configura. Mas entre crushs há histórias, desejos, sentidos e consequentemente experiências e é neste contexto das telas que estamos vivenciando transformações, que precisam ser entendidas como uma memória social dos afetos.
Por