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A Fenda
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E-book284 páginas4 horas

A Fenda

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Sobre este e-book

na busca por exorcizar os fantasmas do passado, Nerenk, um ex-mercenário, transcreve as memórias de sua maior e mais perturbadora aventura: a expedição ao Novo Continente atrás de uma lendária montanha de ouro.Na travessia do mar ou nas cavernas dos nickels; nas ruínas de um forte órquico ou na Fenda do Itaimbé, os perigos de um mundo novo se somavam à segredos e intrigas trazidos do antigo, deixando a expedição por um fio.“Não sei por onde começo. Vivi tantas aventuras em meus tempos de mercenário, que até confundo e misturo os acontecimentos de uma e outra. Todas elas, porém, eu narro com tranquilidade e até rio-me dos problemas em que, tantas vezes, me coloquei. Menos essa. Essa, que eu mais quis esquecer, é a que minha mente mais me obriga a lembrar. Suspiro e abro o baú onde guardo pertences de alguns companheiros que, infelizmente, não sobreviveram à expedição ou enlouqueceram por causa dela. Preciso escrever. Preciso para não seguir o mesmo caminho, e também para honrar a todos.Mas por que é tão difícil começar? É a terceira vez que tento. Puxo a memória dos primeiros dias, e me bate um sentimento de angústia. Acho que estou fazendo do jeito errado: É verdade que algumas passagens difíceis aconteceram logo no início da viagem, mas é na segunda metade que veio o pior. Foi depois de um ponto que ocorreram aqueles momentos cujas lembranças mais me deixam agoniado. Preciso então encontrar esse ponto… E assim pensando, acho que agora sei por onde começar desta vez…”
IdiomaPortuguês
EditoraEstronho
Data de lançamento16 de mar. de 2022
ISBN9788594580610
A Fenda
Autor

Roman Schossig

Roman Schossig nasceu em Rio Negro, Paraná, no dia 27 de Março de 1981. Em 2000 iniciou o curso de História na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), vindo a se formar em 2003. Em 2014 formou-se em Letras-Português, bacharelado, na Universidade Federal do Paraná. Suas atividades literárias se iniciaram por volta de 1999 com seus primeiros contos no estilo fantasy. Em 2002 foi vencedor do I Concurso de Romances Juvenis promovido pela Editora Peregrina e pela Academia Paranaense de Letras com seu romance O Olho do Céu, que seria publicado em 2004. Em 2005 o mesmo livro recebeu a láurea Prosa do Prêmio Apollo Taborda França de Literatura, promovido pelo Rotary Club “Alto da Glória” de Curitiba.

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    A Fenda - Roman Schossig

    Prólogo

    É

    comum o aventureiro, ao voltar de uma expedição em que viu de perto a morte, declarar ao mundo, aos deuses e a si mesmo que não voltará a empreender nenhuma outra busca por qualquer preço que seja. Nem bem passam algumas semanas, no entanto, e ele já está com mochila nas costas e espada na mão. Tudo parece arrastá-lo de volta para fora. Os problemas que nunca deixam o mundo, as pessoas que sempre querem histórias novas para ouvir, os companheiros de espadas que tem alguma conta a acertar, a própria dificuldade de se adaptar a uma vida pacata ou o simples acaso de a aventura chegar a ele.

    Comigo não foi diferente, e eu perdi a conta de quantas vezes isso me ocorreu, até vir a tal busca que me fez cumprir o prometido – pelo menos por mais tempo do que o normal. Foi aquela expedição ao Novo Mundo. Aquela em que, numa terra tão distante, vi a morte em formatos que jamais imaginaria ver. Aquela em que vivi coisas que não conseguia descrever com as palavras que conheço.

    Tentei, é verdade, retomar minha vida. Empunhei outras vezes a espada, mas alguma coisa mudou em mim e acabei por guardá-la no baú das lembranças.

    Os anos se passaram, e já não sou mais o Nerenk – aos que lerem esses relatos sem me conhecer, aqui me apresento – aventureiro e mercenário. O tempo debilitou meu corpo e meus reflexos, e um casamento tardio acalmou meu espírito. Agora me sento confortável na rede de minha varanda contemplando meu pomar, o vilarejo de Namos – que acolheu esse velho aventureiro – e as colinas ao fundo, sobre as quais se ergue o castelo do visconde. Aqui recebo as visitas e novos amigos, em sua maioria de mentalidade muito diferente daqueles turbulentos com quem eu andava.

    A eles narro minhas aventuras ao som de seus alaúdes e ao sabor do chá de minha esposa. As passagens curiosas e por vezes até cômicas os divertem, e fazem seus filhos, que normalmente estão depenando meu pomar, pedirem para que eu repita ou conte outra história.

    Nessas horas costuma vir a pergunta torturante: Qual foi a aventura que mais o marcou?. E uma série de eventos se passa em minha mente, mas nenhuma palavra sai de minha boca. Tento articular uma passagem que seja, mas nem eu me entendo. Eles se entreolham e mudam o assunto. As noites então se tornam soturnas, com sono difícil e sensação se estar sendo seguido e observado.

    De manhã, abatido pela noite mal dormida, minha esposa me conduzia ao templo, para falar com o pároco. A posição dele era sempre a mesma. Se você não consegue falar sobre o que aconteceu, então é porque de fato não deve. Esqueça isso e dê paz ao seu espírito. Não acorde os dragões que dormem. Conversarei com o povo, e pedirei a eles que não o perturbem mais.

    Por um tempo as pessoas paravam de frequentar minha casa ou paravam de fazer a pergunta ou me induzir a contar sobre essa expedição, mas aos poucos a curiosidade os vencia. Além disso, pessoas de outras vilas passaram a vir à Namos e acabavam por se juntar à minha varanda, afinal, quem resiste às histórias de um velho aventureiro atormentado por lembranças secretas?

    Há um ano, mais ou menos, o velho pároco partiu e foi substituído por um novo, nosso caro Moreffer. Ele, ao me conhecer, apresentou-me outro pensamento: Se é difícil falar sobre essa aventura, por que então não a escreve?.

    Escrever. Tentar me expressar por outra linguagem. E a ideia me animou, e quem sabe assim eu pudesse enfim exorcizar esses demônios. Ora, eu já soube de outros aventureiros que escreveram seus relatos maravilhosos e já li vários deles. Podia, ainda, pedir ajuda ao pároco. Minha esposa primeiramente não gostou, pois previa novas noites perturbadas, mas por fim aceitou. A sua curiosidade, há muito trancafiada, também veio à tona e a venceu.

    Mas as coisas não foram tão fáceis. Desconfio que esses aventureiros contratem magos ou sacerdotes para transcrever tão bem suas lembranças, ou eu sou muito bronco. Possivelmente as duas coisas. Como e por onde começar? Como manter a estética fria e racional da escrita sobre momentos tão confusos e dramáticos? Como manter um tom uniforme a respeito de uma jornada que nos despertou as mais variadas reações e sentimentos? E o pior, como se lembrar de todos os detalhes do começo ao fim da história?  Por mais de uma vez desisti. Por mais de uma vez rasguei meus escritos ou os guardei no baú.

    Finalmente ocorreu-me uma outra ideia, talvez a derradeira. Não começar do começo, e sim por momento chave. Um momento que considero mais vivo na memória, ou que vejo como o divisor de águas. Além disso, preciso mudar a estética. Não imitar tanto os estilos de outros diários, e sim deixar fluir as lembranças e emoções. Transcrever cada momento da maneira como senti, ou como recordo que senti. Talvez agora, com menos amarras, consiga ir até o final.

    Desejo a todos uma boa leitura, e que as filhas do altíssimo Kando, senhor da sabedoria, guiem-me nesse trabalho.

    A Clareira

    I

    C

    onseguem ler o que está escrito? – perguntei aos meus dois companheiros, diante de uma placa de madeira grossa na parede. Junto a ela estava um amontoado de pedras.

    – Parecem caracteres órquicos – respondeu um deles, aproximando a tocha.

    Forte... Gur... Gurmigan – leu o segundo.

    – Que curioso – comentei. – Muito, aliás.

    Forte Gurmigan. Tínhamos ido fazer uma vistoria nos arredores do acampamento e acabamos encontrando o que restou de um forte órquico destruído e abandonado. Uma bela descoberta com a qual julgo adequado iniciar a narrativa. Os companheiros que estavam comigo eram Kirenser e Olaitan. O primeiro era meu grande amigo e companheiro de armas. Mercenário como eu, ele era um homem bem constituído e com uma barba escura e longa como a de um pagador de promessas. O outro era um homem de pele negra, conhecedor de artes mágicas e de línguas distantes.

    Olaitan começou a se concentrar e repetir baixo algumas palavras, como se procurasse entrar em contato com espíritos, enquanto Kirenser, sem perder tempo, passou a remover os pedregulhos. Impelido pela mesma curiosidade, o imitei.

    – Esperem! – falou Olaitan de olhos fechados. – Não sabemos o que pode existir aqui.

    – Por isso mesmo estamos investigando – foi a pronta resposta de Kirenser. Logo removemos as principais pedras que cobriam o chão e encontramos um buraco com uma velha escada de madeira.

    Kirenser aproximou outra vez a tocha e viu que o buraco não era tão profundo. Em seguida, apoiando-se numa das pedras, testou a força da escada e constatou que ela estava firme.

    – Escada órquica em madeira grossa – disse ele num sorriso.

    – Nossa sorte é que tudo o que se relaciona a eles é rijo e bruto, por isso dura tanto – comentei e, voltando-me para Olaitan, o chamei. – Venha, vamos descer.

    – Estou sentindo espíritos por aqui – alertou ele. – Eles não vão gostar de serem incomodados.

    – Então fique aí – respondeu Kirenser já dentro do buraco. Olaitan olhou para os lados e enfim decidiu descer junto.

    Estávamos numa câmara de considerável tamanho, mas podia se ver que já fora maior, pois havia muitas pedras e entulhos tapando passagens. Passamos as tochas pelo aposento na procura de algo interessante – leia-se valioso – e encontramos uma antiga mesa de madeira bruta com alguns rolos de pergaminho empoeirado.

    – Isso deve valer um bom dinheiro. – Kirenser tomou alguns daqueles rolos em mãos. Eu, por minha vez, peguei um livro.

    – Não tirem nada do lugar – aconselhou Olaitan. – Isso pertence aos mortos.

    – Se não foi enterrado, então não pertence a ninguém – respondi.

    – É mesmo, enterrados... – disse Kirenser. – Vamos procurar por câmaras mortuárias. Deve haver alguma.

    Kirenser, como podemos ver, era bem menos prudente e mais ambicioso do que eu. Não apenas dava a mínima importância para o fato de estarmos nas ruínas de um forte órquico a milhares de quilômetros de nossa terra, como ainda desejava violar seus túmulos. Eu deveria tê-lo feito parar, mas estava curioso também. Olaitan nos seguia com seus alertas.

    Procuramos por passagens e acabamos encontrando corredores estreitos por onde podíamos passar um de cada vez. Após mais alguns minutos andando às escuras, vi o olhar de Kirenser brilhar. Estávamos no que restou de um antigo arsenal do forte. Armas e armaduras estavam dispostas nas paredes ou caídas ao chão entre entulhos e teias de aranha.

    – Tudo enferrujado – lamentou-se Kirenser após checar algumas. Mesmo assim tomou em mãos uma espada que parecia estar em melhores condições. Eu também não resisti e me apoderei de um bracelete dourado com inscrições.

    – Pronto? Satisfeitos? Podemos ir embora? – perguntou Olaitan, trêmulo.

    – Eu queria um escudo espelhado igual o seu – disse Kirenser.

    – Eu te dou o meu, ou te encomendo um com os artífices de minha aldeia, se esse for o caso – falou o negro. Mas Kirenser, como se não escutasse, continuou a olhar pelo aposento e empurrar paredes e tatear o chão com o cabo da espada que encontrou. Súbito, deu um grunhido que era característico quando encontrava algo que o interessava.

    Era um esqueleto humano caído ao chão, em sua mão direita estava um medalhão cujas dimensões cobriam a palma da mão de meu amigo. Em um dos lados havia um escrito.

    – Está muito escuro, não consigo ler – disse Kirenser, em seguida estendeu o medalhão para Olaitan –, consegue entender?

    – Está escrito devolva isso já! – falou Olaitan sem tocar no objeto.

    – Na volta eu devolvo – gracejou o saqueador, que não deu atenção aos protestos do xamã e ficou tateando as paredes. Numa delas ele pareceu encontrar algo que o fez soltar outra vez aquele grunhido. Kirenser pôs as mãos nela e a empurrou. Nada ocorreu. Uma segunda tentativa também não deu resultado.

    – Vão ficar só olhando? – perguntou ele enfim.

    Eu dei minha tocha para Olaitan segurar e ajudei-o a empurrar a parede que pareceu se mover de leve. Nosso amigo, vendo que não iríamos embora mesmo, tentou nos auxiliar empurrando com os ombros e as costas.

    Enfim pudemos passar, e um odor desagradável se espalhou pelo ar. Havia ali muitos esqueletos de orcos. Pelos cálculos de Olaitan, eles deveriam ter pelo menos dois séculos. Kirenser, com uma mão no nariz e outra na tocha, continuou a olhar pelas paredes, teto e chão até encontrar uma nova porta de madeira grossa onde estavam cravadas várias letras órquicas.

    – O que diz aí? – perguntou ele a Olaitan.

    O negro aproximou seus olhos e começou a traduzir.

    Aqui deitam-se os capitães Utak-Ark e Karaor, bravos e honrados comandantes que deram suas vidas pelo Forte Gurmigan em defesa contra os... Mi... Mitrídates... – leu Olaitan. – Mitrídates, interessante isso.

    – Interessante são os capitães orcos – falei.

    – O mais interessante ainda é que estão sepultados aqui, atrás de nós – falou Kirenser. – Venham. Ajudem-me.

    – Kirenser, não – Olaitan advertiu, um pouco assustado. – Estou sentindo presença de espíritos aqui. Eles não nos querem nesse lugar.

    – Nem eu. Só quero pegar seus pertences e ir embora –  concordou Kirenser.  – Pode falar para seus orixás.

    Desta vez apoiei Olaitan. O lugar, além de insalubre, tinha um aspecto opressivo. Nosso amigo xamã tinha razão e eu acreditava quando ele dizia que se comunicava com espíritos de um lugar. Assim, puxei Kirenser pelo braço.

    – Venha! Já vimos demais.

    Meu amigo salteador de túmulos, vendo que precisaria de muita ajuda para abrir aquela porta, acabou cedendo, mas com um olhar de outro dia eu volto e entro aqui estampado.

    Olaitan parou e teve um tremor. Então voltou-se para nós e, antes de dizer algo, ouvimos um barulho muito alto ecoar pelos túneis.

    – Isso que eu ia dizer – falou ele. – Depressa!

    Voltamos o mais rápido possível para a superfície, quase aos tropeços e com o coração pulando, temendo que alguma besta medonha das cavernas estivesse ao nosso encalço. Vi esqueletos tremerem como se recebessem entre seus ossos algum espírito atiçado. Sabia o que aquilo significava, mas fomos mais rápidos e eles não tiveram tempo de nos atacar. Fechamos a passagem com as pedras e suspiramos aliviados enquanto víamos o sol e recebíamos o ar fresco em nossos rostos. Kirenser sentou-se numa pedra e em seguida tirou do bolso o medalhão, no qual resplandecia o sol, iluminando agora seus escritos.

    Enairon... Sherken – leu ele. – O que será isso?

    – Nome do morto, provavelmente. – Apontei.

    – De um humano morto nas ruinas de um forte órquico – relembrou Olaitan –, por si só isso já é assustador. 

    – Mais tarde poderemos descobrir – disse ele, riscando uma das pedras com o que dizia ser sua assinatura. – Pronto. Agora saberemos por onde entrar.

    – Está maluco? – perguntei. – Vai voltar lá como? Sozinho?

    – Como sozinho? Há dezenas de pessoas no acampamento que podem vir nos ajudar.

    – Não conte comigo – declarou Olaitan, tentando ficar fora do que considerou ser uma loucura. – Posso até explorar masmorra, mas violar túmulo nunca.

    – Relaxe – replicou ele, deitando-se sobre um rochedo de fronte ao que antes deveria ser parte de um muro de paliçada. – O que poderia acontecer?

    Eu ia concordar com Olaitan, quando outro barulho se fez ouvir. Por detrás do resto de paliçada, uma enorme criatura surgiu rosnando. Era um orco. Orco de pele marrom. Seu tamanho e constituição física são maiores do que os de pele verde, com os quais estamos mais acostumados.

    O orco deveria ter uns dois metros e meio e pelo menos duzentos quilos de ossos, músculos e presas. Ao nos ver, ele rugiu e ergueu uma enorme clava espinhosa para nos atacar. Kirenser por muito pouco não foi fazer companhia para os mortos ali mesmo, pois o golpe que quase o atingiu esmigalhou parte da rocha sobre a qual ele se deitava.

    – Pelas minhas barbas! – exclamou o sobrevivente, os olhos arregalados.

    Desembainhamos nossas espadas e, olhando ao redor para constatar se não havia outros deles, pusemo-nos na defensiva. Olaitan ficou atrás de seu escudo espelhado e o provocou com o reflexo do sol na cara dele. O gigante correu em nossa direção e, com uma finta bem-sucedida, conseguimos não só desviar como também golpear sua arma que voou longe. Enfurecido, ele agarrou Kirenser com rapidez e o arremessou ao chão. Talvez fosse esmurrá-lo se eu e não o tivesse distraído golpeando seu flanco. Olaitan bateu sua lança ao chão fazendo com que a terra ao redor do gigante se erguesse até quase um metro e envolvesse-o. Aproveitando a deixa, Kirenser, levantou-se e decapitou o orco. Em seguida caiu ao chão, ofegante.

    – Está satisfeito agora? – indagou Olaitan.

    – Muito – respondeu Kirenser sorridente.

    – Agora precisarei fazer novas oferendas para os orixás e espíritos da terra por tê-la usado em proveito egoísta.

    – Egoísta nada – declarou ele. – Era para salvar nossas vidas. Vamos agora ao acampamento avisar Eikar e depois voltaremos.

    Enquanto Kirenser falava, subi nos rochedos para olhar o longo descampado. Pela minha experiência, raramente um monstrengo desses anda por aí sozinho sem algum companheiro ou uma tropa inteira, e eu precisava ter certeza. Olaitan subiu também e, junto comigo, viu distante o que parecia ser uma comitiva se aproximando.

    – Este era um batedor. Estão vindo todos para cá – alertou ele com pesar na voz.

    – Consegue ver quantos? – Forcei o olhar.

    – Não consigo... mas são mais de trezentos. E deverão chegar aqui ao anoitecer.

    Olaitan apertava suas mãos em sua arma, preocupado.

    – Então vamos embora logo – apressei, e, descendo os rochedos, deparei-me com uma cena esperada, mas nem por isso menos indignante. – O que pensa que está fazendo?

    – Levando meus troféus – respondeu Kirenser que extraía os dentes do orco. – Não quer que eu leve a cabeça dele inteira, não é?

    – Pois eu acho melhor levá-la – aconselhou Olaitan. – Eikar precisa saber disso.

    – E é melhor do que perder mais tempo aqui – ponderei –, vamos embora. No acampamento você cuida disso.

    – Mas os dentes serão meus! – enfatizou Kirenser. Preferi não responder.

    Deixamos o lugar às pressas e voltamos para o acampamento que distava um quarto de hora daquelas ruínas.

    II

    Assim era a vida de mercenário. Seguíamos os nossos contratantes e, entre uma ordem e outra, agíamos por contra própria atrás de algum ganho extra. Naquela ocasião, o contratante era um duque de Audergar, homem rico e influente junto à grande corte de Untag. Ele não estava conosco, mas enviou-nos para aquela missão de acompanhar sua comitiva pelo Novo Mundo.

    Eu já tinha feito meu nome – Nerenk, devo me apresentar aos que pularam o prólogo – servindo em algumas companhias de mercenários nos áureos tempos em que o Império de Untag havia libertado as Terras Náuridas das mãos dos orcos e de outras bestas desprezíveis. Podia ter ficado por lá, uma vez que a soma de ouro – e de cicatrizes – que juntei era o suficiente para uma vida tranquila... Ou se quisesse aventuras, bastava circundar as fronteiras mais remotas do Império, e sempre teria o que fazer...

    Mas... promessas e relatos maravilhosos sobre o novo continente me seduziam. Além disso, meu amigo Kirenser me convenceu a tomarmos parte.

    Nossa comitiva não era grande. Era dividida entre os comandantes e guias, os soldados regulares, os mercenários e os trabalhadores. Totalizavam, naquele momento, umas cinquenta pessoas.

    Deixamos nossa terra no dia vinte de janeiro, e já estávamos em meados de fevereiro quando encontramos as ruínas do forte Gurmigan. Julgo que esse é o ponto ideal para iniciar meu relato, como o leitor e ouvinte perceberá. Sobre a contratação, a travessia do mar, o contato com nossas colônias rudimentares contarei no momento adequado.

    Voltando à narrativa, fomos direto falar com o nosso líder. Ele se chamava Eikar, e tratava-se de um sujeito de presença muito forte. Não era alto e robusto se comparado aos seus tenentes, mas era um sujeito bravo, severo e determinado. Não fosse por ele, não teríamos ido muito longe... Não apenas porque nos sentíamos seguros e inspirados em sua presença, mas porque seus métodos de lidar com tudo o que ele chamava covardia afrescalhada ou insubordinação eram realmente intimidadores. Naquele momento, ele olhava para um mapa sobre a mesa e conversava com os cartógrafos. Ao seu lado estavam seus tenentes Kiorion e Titorion. O primeiro era um verdadeiro brutamontes encouraçado, e o segundo também um homem forte e conseguia ser mais teimoso do que o próprio Eikar. Para sua sorte, normalmente ele concordava com o líder.

    – Enfim, voltaram – comentou Titorion. – Estávamos já de prontidão, mandando algum grupo de resgate atrás de vocês.

    – Sabem qual é a pena para desertores – falou calmamente Eikar, porém com seu olhar sério.

    – Nem nos passou pela cabeça tal ideia, senhor – falou Kirenser.

    Eikar abrandou o olhar, mas se manteve sério.

    – É melhor levantarmos acampamento, pois esse lugar não é seguro – disse Olaitan, e antes que fossem indagadas as razões, Kirenser exibiu a cabeça do orco. Eikar e seus tenentes levantaram sobrancelhas ou coçaram a barba. Os cartógrafos, por sua vez, abriram a boca aterrorizados.

    – Os deuses nos livrem disso – falaram eles.

    – Era um batedor – expliquei –, mas, avistando de cima de um rochedo, vimos uma tropa de uns trezentos deles, e em um dia estarão aqui.

    – Trezentos... – ponderou Eikar olhando para o acampamento. – Esse terreno não nos favorece. Será melhor sairmos daqui.

    Novas expressões e novos gestos de receio entre os cartógrafos, enquanto os tenentes tentaram ser mais comedidos e apenas trocaram alguns olhares e interjeições.

    – Mas onde os avistaram? – perguntou finalmente Titorion.

    – Seguindo por aquela direção encontramos algumas ruínas – comentei –, e lá tivemos o encontro com esse orco.

    – Que ruínas eram? – perguntou Eikar, e naquele momento outro dentre os comandantes, um tal Hudean, passou a se interessar mais pela narrativa.

    – Possivelmente uma fortaleza órquica – respondeu Olaitan. – Foi o que constatei pela arquitetura do que sobrou e também pelas palavras escritas em caracteres órquicos. Ali dizia Forte Gurmigan.

    Forte Gurmigan – ponderou Eikar, e, voltando-se para os cartógrafos, perguntou: – Alguma menção à essa fortaleza em seus mapas?

    Os cartógrafos voltaram-se ao mapa, mas era tão grande a emoção – mistura de medo e ganância – que quase o rasgaram. Era tamanha a ânsia, que chegava a ser cômica. Eikar preferiu virar a cara para aquela cena, evitando se irritar.

    – Nenhuma – responderam eles enfim.

    – E como era esse forte? – perguntou Hudean aproximando-se. – Havia coisas nele ainda intactas?

    – Havia ainda algumas câmaras, inclusive mortuárias – respondeu Kirenser com os olhos brilhantes, como se convidassem Hudean para seus planos futuros –, mas não conseguimos abrir.

    – Se despistássemos os orcos poderíamos cavar e encontrar muita coisa lá – ponderou Hudean.

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