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Ele tem o sopro do Diabo nos pulmões
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Ele tem o sopro do Diabo nos pulmões
E-book291 páginas4 horas

Ele tem o sopro do Diabo nos pulmões

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Sobre este e-book

Romance de horror: lá de cima, da caravela que passa, aquele é apenas um lugar estranho, distinto. Mas é ali embaixo que as almas banidas devem ficar eternamente presas nas terríveis Gotas de Âmbar. No entanto, algo se mostra muito errado quando um homem consegue burlar o seu destino. E, ao se envolver com uma misteriosa mulher, tentará escapar desse mundo abissal.Depois, um jovem se tornará o maestro do espetáculo circense mais horrível da Terra. Uma figura enigmática em busca do melhor – ou pior – para o seu espetáculo perfeito, doentio.O romance de horror Ele tem o sopro do Diabo nos pulmões apresenta o grotesco e o sobrenatural que transitam por uma atmosfera carregada de gore, insanidades e um toque de steampunk.Bem-vindo ao maior espetáculo de horrores já visto! Bem-vindo ao Cirque Le Monde Bizarre! Mas tome cuidado para não ser a próxima vítima das insanidades do… leal Tissot.
IdiomaPortuguês
EditoraEstronho
Data de lançamento16 de mar. de 2022
ISBN9788594580511
Ele tem o sopro do Diabo nos pulmões

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    Pré-visualização do livro

    Ele tem o sopro do Diabo nos pulmões - Marcelo Amado

    Prefácio

    O Diabo é um otimista se acredita que pode piorar as pessoas.

    Karl Kraus

    H

    á histórias que precisam ser contadas.

    Elas saltam da mente do escritor e tomam forma em nosso imaginário criando uma simbiose muito rara entre criador, obra e leitor. É um elo precioso que não acontece por acaso.

    Ele tem o sopro do Diabo nos pulmões, de Marcelo Amado, é uma dessas obras que te levam perfeitamente a uma percepção etérea do universo criado pelo autor, por meio de uma trama envolvente, ambientação e personagens que nos cativam. É como se fôssemos jogados naquele mundo descrito em palavras sem a menor possibilidade de sairmos ilesos e, mesmo sofrendo severas consequências junto com os personagens, não conseguimos parar de ler.

    Já de início somos jogados em um mundo abissal onde almas perdidas clamam por misericórdia enquanto enfrentam seu inexorável destino. Poucas vezes a visão do Inferno foi tão clara e cruel em um exercício pleno de criação de um mundo mítico muito detalhado e singular, num desenrolar impressionante que nos leva a encontros e fugas completamente imprevisíveis. A dor na carne é pouco, se comparada a dor da alma.

    Mas isso é só o começo, pois quando voltamos à nossa vil realidade, mais precisamente ao mundo do maravilhoso Cirque Le Monde Bizarre somos atraídos pelo trágico, sádico e sujo a ponto de começar, mesmo que à revelia, a enxergar a beleza onde só há, aos olhos despreparados, o bizarro, a pobreza e o desagradável. Nesse caso, sou obrigado a cometer a heresia de discordar de Aristóteles quando disse que o belo é o esplendor da ordem, pois se havia alguma dúvida, Ele tem o sopro do Diabo nos pulmões me provou que pode haver beleza no caos.

    Só não me entendam mal, de maneira alguma estou dizendo que a história seja caótica, muito longe disso. Mas a ordem se apresenta de várias maneiras, e uma delas é na beleza convencional, característica que passa longe da vida dos personagens do livro dada as suas condições físicas, psicológicas e do local onde vivem e trabalham. Tudo parece que vai desmoronar a cada segundo e essa falta de segurança dos personagens é transmitida com precisão a quem está lendo, e isso nos consome.

    O equilíbrio entre o sagrado e o mundano vem à tona a partir da ambiguidade de seus personagens, que representam, sem espaço para maniqueísmo, características diversas que vão além de suas aparências. Esse é um dos pontos altos da história que se move junto com a companhia circense do intrépido Serge Tissot pelo mundo, mas que tem nas atitudes e decisões de cada um dos personagens a chave para o desenvolvimento da trama.

    Ele tem o sopro do Diabo nos pulmões também brinca com diversas referências e até personagens históricos (que não vou contar aqui para não estragar a surpresa). Tudo muito divertido e inserido de maneira extremamente coerente na narrativa, o que denota uma pesquisa apurada por parte do autor, que realiza uma ótima reconstrução da época (Era Vitoriana, auge da Revolução Industrial), com alusões ao melhor do subgênero steampunk. O mais interessante de tudo é que nada disso é gratuito, todas essas características são um veio importantíssimo para que os eventos relacionados à trama tenham sentido.

    A descrição retrofuturista das enormes máquinas a vapor e apetrechos do circo são uma atração à parte e ocasionam muitas vezes situações que irão surpreender aos leitores assim como o excelente retrato da burguesia europeia mimada que busca no circo, custe o que custar, uma forma de acabar com o tédio comum da vida na alta sociedade da época.

    Posso dizer que tive uma experiência visceral ao ler essa história que, a meu ver, não fala somente sobre o bizarro, mas principalmente sobre o que está além dos nossos olhos. Se o mundo fosse ao contrário, os normais seriam os estranhos.

    A eterna dicotomia inerente a todos nós com a qual teimamos em lutar é muito presente no livro, mas de uma forma sutil, sem julgamentos ou culpas, dentro de uma lógica que, mesmo que estranha à primeira vista, se revela comum se levarmos em conta o quanto erráticos somos como seres humanos. É sobre aceitar quem somos e não o que querem ou pensam que somos.

    Joel Caetano

    oo oo

    Joel é diretor, roteirista e ator. Dirigiu filmes premiados como Gato, Encosto, Judas e outras dezenas de produções com prêmios e menções honrosas em festivais no Brasil e no exterior. É também codiretor do longa As Fábulas Negras, ao lado de Rodrigo Aragão e José Mojica Marins. Além disso ministra cursos de cinema e palestras por todo Brasil.

    PARTE I

    ALMAS EM ÂMBAR

    Beatrice

    E

    ra uma época em que os homens mal haviam começado a descobrir o mundo ao seu redor. Cavalos e carruagens eram os meios de transporte mais conhecidos por grande parte da civilização e até mesmo as imponentes naus eram raras nos mares. Exatamente por isso o pavor pelo desconhecido era o primeiro sentimento a tomar os que embarcavam contra a própria vontade naquela coisa estranha.

    Um grande barco que não precisava do mar?

    E o que eram aquelas coisas cheias de engrenagens e peças de metal?

    Se fosse possível alguém suportar a força dos ventos e não ser engolido pelas nuvens de terra próximas à entrada do lugar conhecido como Borda do Inferno, esse alguém testemunharia a chegada majestosa da caravela negra flutuando alguns metros acima do solo arenoso. Sua estrutura, embora parecesse castigada pelo tempo, com velas rasgadas ou faltantes, casco remendado com pedaços de metal e até mesmo mastros auxiliares quebrados ao meio, mantinha um ar imponente e assustador. Ela não pertencia àquela época... ou melhor dizendo, ela não pertencia a nenhuma época. Vinha do futuro e do passado.

    E desde os tempos em que nem se media o tempo, a grande embarcação fazia o mesmo trajeto, levando espíritos e, não raramente, pessoas vivas. Seres banidos, condenados a um inferno particular onde as almas, cada uma a seu modo, passavam a eternidade em sofrimento.

    Ao se movimentar fora da Borda do Inferno, os propulsores produziam um ruído contínuo e irritante. A cantoria chiada dos vapores que saiam de suas caldeiras, acompanhada pelas batidas das pás que as alimentavam, aumentava o incômodo e a angústia de seus inusitados passageiros. No entanto, ao entrar naquele ambiente lúgubre, a grande nau parecia deslizar sobre um silencioso campo magnético. Apesar de serem visíveis a fumaça e os vapores, não se ouvia sequer um som vindo das engrenagens e motores. E talvez por esse motivo tudo parecia ser ainda mais aterrorizante, como uma tortura psicológica involuntariamente aplicada antes de atirar pelo convés, almas e corpos — alguns, embora vivos, já entrando em decomposição, exalando odores insuportáveis.

    A dor da carne sendo comida pelo invisível era tão intensa que os desmaios se faziam frequentes. Quando algum ser mais resistente insistia em ficar de pé, surgia um capataz, ainda munido de um resquício de compaixão, e batia com um porrete na cabeça do infeliz fazendo-o desabar. Esse gesto de misericórdia só era possível quando Capitão não estava por perto, caso contrário não seria apenas o banido que sofreria com as dores. Capitão não admitia fracos em sua tripulação, embora soubesse que alguns ali mantivessem vibrações do que um dia haviam sido em vida.

    Quase todos os banidos vivos eram presos a ferros. Os mortos, acorrentados ao fogo. E se engana quem pensa que espíritos, pelo fato de estarem livres da carne, não sentiam suas próprias dores. O sofrimento era ainda pior, pois não havia como amenizá-lo. Cada um, à sua maneira, gritava dentro da essência de suas vidas. Para alguns a tortura, em tão alto grau, era passageira. Quando largados no Vale das Gotas de Âmbar, sentiriam certo alívio, uma diminuição desse sofrimento contínuo. Para outros era apenas o começo. Um aquecimento para o que ainda estaria por vir.

    A tripulação do Vapor da Morte — nome não oficial, mas adotado por muitos de seus integrantes — era bem diversificada. Seres humanos (ou algo próximo ao que teriam sido um dia), criaturas do subterrâneo, cães selvagens e até um imediato alado, na verdade um diabrete, que nunca dormia e ficava constantemente voando ao redor da nau, vigiando, dedurando tentativas inúteis de fuga e vez por outra buscando lenha para as fornalhas.

    Capitão era monstruosamente assustador, se me permitem o trocadilho. Um verdadeiro monstro de dois metros e meio de altura, corpo escamado e língua de lagarto. Braços quase tão largos quanto suas pernas. Nos punhos, tiras de couro humano eram usados como adorno. Em suas costas, três ossos pontudos pareciam emergir de suas entranhas, e dali escorria de forma contínua um sangue espesso e enegrecido. Sua bocarra, repleta de pequenos, porém afiadíssimos dentes, lembrava um conjunto de serras sempre em movimento, prontas para dilacerar qualquer coisa. Era comum que se exibisse, mordendo e destruindo grandes pedaços de lenha, a fim de assustar seus passageiros e manter o respeito junto aos subordinados. Seu nome era impronunciável em qualquer idioma conhecido na Terra e, por esse motivo, o chamavam apenas de Capitão.

    Um pouco distante da fileira de bancos onde se acomodava a maioria dos banidos, alheia a toda essa monstruosidade e ao sofrimento de quase todos ao seu redor, debruçada sobre um corrimão, estava ela... Pele muito clara, cabelos e olhos negros. Com o olhar perdido em direção aos próprios pés descalços, mergulhava cada vez mais em seus pensamentos e percepções.

    oo oo

    Vejo ilusões perdidas, sonhos interrompidos, lágrimas, fluídos... vidas passadas dando voltas ao redor de espíritos confusos. Sinto, sem saber o motivo, que tudo isso é normal para mim. Exceto essa música, essa sensação...

    Tenho a percepção de que estamos num lugar muito quente e abafado, inóspito, aterrorizante. Mas não é o que realmente sinto. Essa brisa levantando meus cabelos, essa paz interior, uma vontade de dançar. Me sinto livre e ao mesmo tempo olho para meus braços e pernas... é como se não estivessem em meu corpo. Falta algo e não sei o que é.

    Não sei se estou morta ou se algum dia já estive viva. Tento chorar, mas não tenho lágrimas. Sinto fome, mas não de alimento. De algo além, talvez de...

    oo oo

    O baque do corpo batendo sobre um amontoado de barris vazios espantou um trio de corvos pousados sobre as cordas. Sentinelas foram correndo ver o que tinha acontecido, mas recuaram ao ver Capitão esbravejando e cuspindo sobre a mulher caída, toda torta, sobre uma poça de... sabe-se lá de quê.

    — Quem você pensa que é? Acha que está aqui passeando? Que é uma viagem de princesa?

    A mulher abraçava os joelhos e sentia o sangue escorrendo pela têmpora. Mas eu não sangro, pensou. E que pensamento era aquele? Não sangro? Como?

    — Sua merdinha! Acha que não sei quem você é? — esbravejou Capitão e, aos poucos, seu bufado se transformou em uma risada. Gargalhou por alguns segundos e virou-se para um dos capatazes. — Tire essa infeliz daqui e a mantenha acorrentada até chegarmos ao vale. — Ainda rindo um pouco, saiu falando sozinho. — Talvez ela nem tenha tempo de se lembrar quem foi. É uma pena, pois eu gostaria de ver toda aquela arrogância sendo engolida por ela... ou enfiada em seu rabo!

    As últimas palavras foram pronunciadas em alto e bom som.

    oo oo

    Eu não sangro. Eu não choro.

    Ainda sinto a brisa, embora veja um mormaço subindo do solo. Até a tripulação demonstra inquietação com o calor. Me vejo nesse vestido branco, mas sinto que não me pertence. Como se a energia de outra pessoa... pessoa... o que sou?

    Alguns passageiros me olham fixamente. Como se me reconhecessem de algum lugar. Olhares de ódio, olhares de respeito... medo. Vejo a brasa da maldade em alguns espectros. E uma luz azul em outros. Por que foram banidos? Por que eu fui banida?

    oo oo

    A tarde se aproximava do fim e o céu era tomado pela escuridão. Não havia mais calor, o clima mudara. Aproximavam-se de um dos locais de despejo e Capitão, que já aguardava impaciente em sua cabine, foi ter com a tripulação.

    — Senhores! Preparem-se para atirar esse monte de lixo para fora da minha embarcação! — berrou enquanto ainda subia as escadas. — Quero que a deixem por último. — Apontou para a mulher. — Essa é minha! Faço questão de jogar essa criatura para fora daqui usando toda a minha força. E, de preferência, que caia com a bunda em cima de um pedaço de pau bem afiado!

    Gargalhadas tomaram conta do ambiente enquanto espíritos eram lançados para fora. Capatazes os capturavam utilizando um estranho instrumento de metal com duas pedras encrustadas em uma das pontas, onde também havia uma fenda. Quando apontada na direção da vítima, as pedras emitiam uma luz alaranjada e uma fumaça negra era sugada para dentro da abertura, fazendo com que o espírito desaparecesse. Em seguida o instrumento era apontado para fora da embarcação e as pedras se iluminavam novamente, mas num tom azulado. A fumaça negra era expelida numa velocidade absurda, indo de encontro às árvores mais próximas. Bolas negras eram formadas ao redor dos galhos e, aos poucos, eram sorvidas por uma espécie de fruto. Ali dentro, as almas passariam a eternidade em sofrimento. Durante o dia seria possível ver seus rostos na transparência do âmbar.

    Não eram frutos.

    Os vivos, ou aqueles mortos durante a jornada, com corpos inteiros ou em pedaços, eram atirados contra as rochas e espinhos. Com o passar do tempo, a força de atração das árvores os arrastaria para junto delas, e cada gota de sangue e suor, cada pedaço de carne, cartilagem e ossos, seria sugado centímetro a centímetro, numa sinfonia de gritos e choros que poderia durar horas ou semanas.

    oo oo

    Estou voando. Sinto plumas em meus braços e o vento acariciando meu colo, minhas costas, pernas... estou nua. Vejo o céu azul claro, mesmo sabendo que há escuridão. Pouso, delicadamente, sobre essa relva molhada. A chuva cobre meu rosto e se mistura a meu sangue.

    Mas eu não sangro!

    Brisa nos cabelos de Beatrice

    A

    s sensações de Beatrice não correspondiam à realidade. Capitão sequer retirou as correntes que a prendiam. Puxou de maneira brutal o corpo da mulher fazendo romper os grilhões em sua base. Depois de rasgar sua roupa, ergueu Beatrice bem acima de sua cabeça e atirou-a contra um paredão de rochas próximo das árvores. Qualquer um teria seu corpo esfacelado pela força do impacto.

    Capitão ordenou que fizessem a volta. Era hora de retornar.

    Mas antes de entrar em seus aposentos, se deteve para olhar o festival de luzes que ficava para trás. Espíritos eram sugados por luzes levemente alaranjadas. Névoas azuladas eram vistas enquanto corpos ou pedaços de corpos eram puxados de encontro às árvores que, por sua vez, assumiam uma aparência monstruosa. Deu uma última olhada no local em que caíra a mulher e reagiu com um menear de cabeça.

    Fez tantos sofrerem sem necessidade. Agora é sua vez, maldita. Nem eu, a face da maldade encarnada, sou capaz das coisas que você fazia.

    Seus pensamentos foram interrompidos pelo diabrete, que veio justamente daquela direção.

    — Capitão, o senhor moeu a mulher. Trabalho facilitado para as forças do vale.

    — Engana-se, amiguinho. Ela não sofreu nada de grave. Não quebrou um osso sequer. Ela apenas ficará um tempo sem conseguir se mexer e será o início de seu merecido sofrimento eterno. Fiz o que fiz para que as árvores executem logo o seu trabalho sem encontrar muita resistência.

    Assim espero, pensou.

    — O senhor a odeia tanto assim, Capitão?

    — Sabe, amiguinho... eu posso não saber ao certo o que é ter um coração. Desconheço a bondade exacerbada, e confesso que sinto prazer em trazer para cá essas almas banidas. Mas se tem uma coisa que eu respeito e que rege minha existência, é o cumprimento do dever, seguir aquilo que me foi ordenado. Existem regras e essas regras precisam ser levadas a sério. Somos apenas uma peça de tudo que nos governa, seja nesse ou em outro mundo. Fugir das suas ordens, salvo em casos extremos, é o mesmo que ir contra o que te sustenta. Você pode ser o demônio... — ele olhou de soslaio para o diabrete e ensaiou um sorriso — literalmente... Mas é preciso seguir a sua função em tudo isso. — Fez um gesto com o braço, indicando que falava sobre tudo ao redor.

    — Mas, Capitão, demônios não seguem regras e...

    — Não seja estúpido, diabrete! É óbvio que exagerei em minhas palavras. Além do mais, qual a função dos demônios? Eles fazem o que lhes é designado a fazer. São o que são e o que devem ser. Ela não.

    O imediato então entendeu de quem se tratava.

    — Ela é...?

    — Sim, mas obedecer a regras não é seu forte. E eu odeio desobediência. E por falar nisso, amiguinho, a identidade dessa mulher não interessa a ninguém, ouviu bem?

    Seus olhos se acenderam, como duas bolas de fogo, mirando o diabrete.

    — Mulher? De que mulher o senhor está falando? Tenho uma péssima memória, Capitão...

    Voou para longe.

    oo oo

    A escuridão era quase total. Os espíritos já não lutavam tentando escapar. Corpos eram digeridos por uma força invisível.

    Beatrice abriu os olhos bem devagar. Não conseguia se mexer. O frio era real. As noites em Borda do Inferno eram terrivelmente geladas.

    Sentiu seu corpo sendo arrastado... eram as árvores.

    Eu me lembrei.

    Antes de desmaiar outra vez, ouviu passos apressados em sua direção.

    oo oo

    Pela manhã, o clima nos arredores do Vale das Gotas de Âmbar era ameno. Alguns poucos animais se aventuravam na busca por restos de corpos, aproveitando a lenta atividade das árvores, o que diminuía o risco de virarem lanche em vez de conseguirem um. Uma hiena se fartava com um belo pedaço de perna humana. Um corvo bicava, insistente e inutilmente, uma das gotas de âmbar, enquanto o espírito aprisionado em seu interior o olhava assustado e tentando entender em que lugar estava. E ele ficaria confuso para toda a eternidade.

    Um pequeno lagarto sondava as rochas, passeando por onde caíra Beatrice e de onde partia um rastro deixado pelo seu corpo.

    Nuvens pesadas e escuras começavam a se aglomerar. Borda do Inferno também precisava de chuva. O corvo levantou voo.

    oo oo

    Um cheiro adocicado a fez acordar. Estava deitada numa cama improvisada com troncos e galhos. Sem roupas, mas coberta por uma colcha feita de peles de animais. Sentou-se e a colcha deslizou deixando à mostra os seios, cobertos por tatuagens, tal qual o restante de seu corpo. Ainda um pouco perdida ouviu a voz grave do homem que estava sentado no canto, fazendo anotações.

    — Não temos muitos animais grandes por aqui. Quer dizer, até temos, mas eu não consigo capturá-los. — Sorriu sem graça.

    Sem entender, a expressão do seu rosto e um sussurro deixaram claro que ela perguntava: o que disse?

    Apontando para a colcha de retalhos, o homem esclareceu.

    — A colcha. Sei que não é uma perfeição de costura e bom gosto, mas foi o que deu para fazer com a pele dos pequenos animais que consigo capturar de vez em quando. Esse lugar tem uma fauna interessante. Animais que você poderia jurar que nunca se encontrariam, por serem de partes muito distantes no planeta, e outros tantos desconhecidos do homem vivo. A propósito, teremos um filhote de porco do mato para a refeição.

    Olhou por alguns instantes para os seios de Beatrice, encarando-a em seguida, ao retomar o diálogo.

    — Acho que você não deve sentir fome, não é? Não desse tipo de alimento, estou certo?

    Beatrice não respondeu. Olhou ao redor para se acostumar com o local. Paredes de pedra e terra. Tudo muito escuro ao fundo. Mas onde se encontrava, uma luz natural invadia o lugar, deixando o clima um pouco aconchegante. Uma caverna.

    Levantou-se, exibindo o seu belo corpo. Pernas e coxas bem torneadas. Nem gorda, nem magra. As tatuagens a cobriam quase por completo, mas ainda assim era possível perceber uma pele muito branca, que se revelaria muito macia a quem a tocasse.

    Caminhou na direção de uma mesa improvisada feita de pedra e pegou

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