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História Fantástica do Brasil: Inconfidência Mineira
História Fantástica do Brasil: Inconfidência Mineira
História Fantástica do Brasil: Inconfidência Mineira
E-book168 páginas2 horas

História Fantástica do Brasil: Inconfidência Mineira

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Sobre este e-book

Que tal se pudéssemos voltar no tempo e apimentar um pouco mais a história do nosso país? E se povoássemos as linhas de nossos livros didáticos, com lobisomens, vampiros, fantasmas, feras e criaturas vindas das florestas e dos cantos mais obscuros do Brasil?Neste volume, em sete contos, nossos autores utilizaram personagens e fatos da Inconfidência Mineira.Como teria sido a saga dos inconfidentes diante de vampiros, videntes, monstros, viagens no tempo, imagens holográficas...E quem poderia imaginar a Inconfidência fora de Minas Gerais, fora do país e com elementos Steampunk?
IdiomaPortuguês
EditoraEstronho
Data de lançamento16 de mar. de 2022
ISBN9788564590144
História Fantástica do Brasil: Inconfidência Mineira

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    História Fantástica do Brasil - Goldfield Goldfield

    ¹

    "Já vem o peso da morte

    Com seus rubros cadafalsos

    Com suas cordas potentes

    Com seus sinistros machados

    Com seus postes inflamantes

    Para os corpos em pedaços".

    Romanceiro da Inconfidência, Cecília Meireles

    I

    O

      alferes Joaquim José da Silva Xavier desmonta, num salto, da sua exausta cavalgadura e deixa-a livre para que se sacie à vontade na nascente cristalina que escorre da encosta e forma uma pequena piscina natural à margem da trilha. Por força do hábito seus olhos cinzentos amiúdam-se e, como se tivesse na alça de mira um possível alvo, perscrutam no horizonte ao chapadão imponente em cujos paredões rochosos faísca o ouro das Gerais. Respira fundo. Então escolhe uma pedra de base firme, ajeita o sabre de modo a lhe permitir que melhor se acomode, tira o chapéu, e com um lenço enxuga o suor que lhe desce pela testa larga. No relógio que traz na algibeira verifica que são exatamente três horas da tarde. Lá embaixo, no vale, em uma velha fazenda abandonada, deixara arranchados seus comandados e saíra sozinho a pretexto de mapear os arredores. Sua intenção, porém, é outra. Busca ficar só para poder refletir, sem que o interrompam, com vistas a tomar uma importante decisão. Talvez a mais importante decisão da sua vida. 

    Joaquim José, embora proveniente de uma conceituada família de São José Del Rei, não era um homem de posses. Na vida já fizera de tudo. Entre outros ofícios, fora caixeiro-viajante e barbeiro, até resolver sentar praça no Regimento dos Dragões de Vila Rica. Também era protético dos bons; tendo origem aí a alcunha de Tiradentes pelo qual era mais conhecido.

    Oficial de valor, não demorou muito para que fosse incumbido de comandar o patrulhamento do Caminho Novo. Naquele tempo aquela era a via pela qual a riqueza arrancada às lavras de Minas Gerais era escoada no lombo de burros para o Cais dos Mineiros no Rio de Janeiro, onde era embarcada para Lisboa. Estes comboios eram uma tentação para os grupos de salteadores que infestavam aquelas paragens. Não poucas as vezes o Alferes Xavier tivera de entrar em confronto armado com estas quadrilhas, colocando em risco sua vida e a dos seus homens, para proteger o patrimônio e os interesses da Coroa. E apesar de tanta dedicação no cumprimento do dever, nas inúmeras vezes em que reclamou aos seus superiores uma promoção, um incremento, por mínimo que fosse, ao soldo miserável que lhe cabia, estes simplesmente faziam ouvidos moucos. Ou lhe vinham com cínicas evasivas.

    A verdade é que o Conselho Ultramarino entendia como inadmissível confiar posições superiores de comando a um Mazombo, um súdito de segunda categoria de Sua Majestade. E Tiradentes, como filho de Portugueses, era assim considerado. Em hipótese alguma se permitia que o poder das armas ficasse nas mãos de oficiais não nascidos na Corte. O Alferes Xavier vivia, portanto, um dilema: não se deixar corromper como a maioria dos seus companheiros de corporação, mantendo sua integridade moral, e ao mesmo tempo compactuar com os abusos perpetrados contra seus compatriotas pelas autoridades portuguesas.

    Incomodado com a situação, a cada dia que passava seu descontentamento tornava-se mais explícito. Razão pela qual não passou despercebido a certo cidadão de Vila Rica. No confessionário da suntuosa Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição, o padre José da Silva de Oliveira Rolim, homem polêmico, pregador irascível e de notável lábia, disse-lhe que o ouviria em nome de Deus, mas que também gostaria de lhe falar em nome dos seus pares Maçons. Pecados e penitências postos em segundo plano, o padre Rolim mencionou os nomes de alguns cidadãos que não eram de todo desconhecidos de Tiradentes. Pertenciam quase todos a famílias ilustres da Capitania, e por unanimidade haviam decidido estender a ele, o intrépido comandante da Ronda do Mato, a ímpar oportunidade de tornar-se membro da fraternidade que os congregava. Tiradentes, homem ambicioso, não pensou duas vezes para dizer que aceitava o convite.

    Iniciado na maçonaria, ele logo percebeu que aquelas sessões secretas, com seus rituais, escondiam outros objetivos além dos de cunho filantrópico e esotérico. Como ele, também aqueles homens estavam indignados e dispostos a não tolerar mais os desmandos da Corte, principalmente no que dizia respeito aos tributos extorsivos que os empurravam para o inferno da miséria. O padre Correia de Toledo, vigário de São José, era um dos mais exaltados. Colérico, como se estivesse a pregar no púlpito, costumava bradar:

    A Derrama, meus caríssimos irmãos, só cessará com derramamento de sangue!

    Arroubos patrióticos à parte, o certo é que, embora não o confessassem abertamente, todos tinham em jogo interesses pessoais. Sabia-se que a maioria deles estava afogada em dívidas e via na revolta uma forma de se livrar do incômodo que infernizava suas vidas.

    Agora, passado quase um ano desde aquele primeiro encontro, de cada um dos que conjuravam era cobrada uma posição definitiva em relação ao levante. Em reunião que teria lugar na Fazenda Cruzeiro de propriedade do Tenente-Coronel Francisco de Paula Freire de Andrade, seriam reafirmados o compromisso de adesão e a definição dos papéis de cada um dentro do movimento. O Alferes Xavier precisa, assim como seus companheiros, decidir se abraça a causa ou encolhe o rabo entre as pernas como um cão acovardado.

    Mas não é esse o motivo que o aflige. A preocupação que o leva a se isolar diz respeito aos detalhes operacionais, às minúcias de que depende o sucesso da sedição. É um homem disciplinado. Extremamente metódico. Um estrategista.

    "Libertas Quae Sera Tamen, pensa alto, consigo. Liberdade ainda que tardia. Não é esse o lema proposto por Alvarenga Peixoto e que nós, os que compartilhamos o sentimento de revolta, houvemos por bem aprovar? Mais que passa da hora de mostrar aos cães lebregos que cá não temos sangue de barata. E que ninguém se atreva a por em dúvida a minha capacidade, pois não sou definitivamente o tipo do homem que se vende ou que volta atrás nos seus propósitos".

    Intimamente Tiradentes orgulha-se de não ser como o Padre Rolim, dado ao tráfico de diamantes e negros; ou como Álvares Maciel, seu padrinho e iniciador na Maçonaria, que perdera tudo, até a dignidade, em mesas de jogo. Tinha firmeza de caráter. E princípios.

    Imersos ainda na profunda quietude e na total imobilidade das coisas em redor, na ausência de um sopro de brisa por mínimo que fosse ou do canto mavioso de um sabiá, independente do voo livre dos seus devaneios, seus sentidos exigem apuro. No tipo de trabalho que exerce tem que ter a visão privilegiada de um gavião penacho, a audição e o faro de um lobo guará, a intuição infalível e a esperteza de uma raposa. A diferença entre a vida e a morte depende totalmente destas qualidades.

    Todavia, cabe ao cavalo, orelhas alertas, acusar o iminente. O prestes a dar-se. A tocaia. O bote traiçoeiro. Destra, a mão firma-se no cabo do mosquete. A respiração suspensa ao limite do perceptível. Ele sabe o que pode esperar naquelas paragens.

    Um grito. De mulher pelo timbre agudo. Apunhalada? Violentada? Traída covardemente em seu amor? Talvez escuso ardil para uma emboscada, desconfia o Alferes. Os perigos e riscos da Rota do Quinto que ele mais que ninguém conhece. E se embrenha felino pelas ondas do capinzal alto.

    Adiante, uma clareira e no meio dela, ajoelhada, uma mulher negra já não tão jovem. Escrava fugida? Assustada com certeza. As mãos calejadas pelas árduas jornadas de labuta comprimem como se pudessem esmagar a bochecha intumescente. Sofre. Como se não fosse redundante dizê-lo.

    O Alferes descansa o cão da arma e se aproxima.

    Vamos lá, deixe-me ver isso!

    A mulher já condicionada a obedecer não ousa contrariá-lo.

    Joaquim José segura-a pelo queixo, examina de perto o caco podre, a lasca, a panela enegrecida. Nojo nenhum da podridão, apesar do hálito fétido.

    Pontadas agudas e latejantes fustigam a infeliz. Ato contínuo o Alferes saca do alforje de couro curtido os ferrinhos, as ferramentas – boticão, pinças, punções – que ele próprio moldou na forja do regimento em Vila Rica. E uma moringa de barro com a aguardente cheirosa produzida no alambique dos Oliveira, em Tijuco. Antes faz com que a mulher beba no gargalo uma, duas longas talagadas; em seguida lhe escancara a boca de grandes beiços roxos onde uma língua intumescida e esbranquiçada se contrai e tenta em vão se ocultar.

    Mãos firmes. Garras de aço fornido. Outro grito dilacerante rasga a textura calma da tarde. Bandos de pássaros que estiveram escondidos arribam assustados. O cavalo, que a tudo testemunha, apenas meneia a cabeça, desinteressado. Mais um grito. Este sufocado como se viesse de uma criatura que estivesse amordaçada ou a ponto de se afogar. E o jorro quente de urina empapa o vestido em trapos que foi da sinhá, e respinga nas botas negras de cano alto do providencial benfeitor.

    Na ponta do boticão, o troço malcheiroso – como um troféu de profundas e negras raízes. Sangue e pus a brotar do veio de borracha escura das gengivas e a escorrer pelos cantos da boca da negra. Lágrimas inundam-lhe os olhos.

    Finda a exaustiva peleja contra a dor, relaxam ambos. A negra, desdentada cospe e ri e chora. E diz para si mesma que aquele soldado é um homem bom, apesar de ser branco.

    Fique com Deus, minha senhora!, despede-se o militar antes que a mulher o agradeça. Adeus!

    Esporas reluzentes roçam as ilhargas do animal que já se afasta em leve trote. Gentil o Alferes ainda acena à distância. É um homem especial. Apesar de branco.

    Só quando alcançam o fundo do vale, cavalo e cavaleiro, sob a copa de uma robusta aroeira é que a negra sente no peito uma dor mil vezes pior do que aquela de que fora forra ainda há pouco. Sente que os Santos, os do outro lado, os que vieram consigo d’África, estão a sussurrar ao seu ouvido. Os Orixás dizem para que se apresse, para que corra. Que previna o Alferes de algo ruim que poderá em breve lhe acontecer. Os búzios e as conchas do seu colar lhe dirão o quê.

    Ô Xangô, meu pai!

    Esbaforida, sangra os dedos das mãos e dos pés escalando a pedra mais alta. Lá de cima pula, acena, se desespera. Esgoela-se. Berra em plenos pulmões. Inútil. Eco nenhum em toda aquela imensidão de cerrado. Cavalo e cavaleiro longe vão. Nuvens estáticas de prata agora os protegem do Sol. Marcham sem pressa para cumprir seu destino qualquer que ele seja.

    À negra restam a lástima e a frustração. No peito o pranto sufocado e a aflição decorrente da inutilidade da premonição. Pois dali ela vê perfeitamente imóvel, qual serpente traiçoeira, pendente de um dos galhos da velha aroeira, uma corda armada em perfeito laço que ali não estava ainda há pouco quando passou Tiradentes.

    II

    Arraial de Santana de Sebollas. No límpido céu fluminense uma Lua soberana desfila com seu séquito de estrelas. Na varanda da casa grande da fazenda que se debruça sobre a margem esquerda do rio escuro o alferes Xavier fuma circunspecto. Os tambores dos cativos, que cedo haviam dado uma demonstração de força, agora estão mudos. Os negros, ele supõe, se recolheram em seu sono povoado de pesadelos e banzo, a recuperar forças para a dura lida do

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