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As diabruras de Orfeu - cantorias sem fim
As diabruras de Orfeu - cantorias sem fim
As diabruras de Orfeu - cantorias sem fim
E-book453 páginas5 horas

As diabruras de Orfeu - cantorias sem fim

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Sobre este e-book

Nas palavras de Ricardo Cravo Albin, prefaciador do livro: "Ao chegar ao final de uma leitura prazerosa, sou inclinado a concluir que o leitor tem em mãos singular privilégio. Adquirir um livro que vale por dois, ambos estimulantes e bem nutridos. Isso porque Paulo Martins enriqueceu a estrutura do livro com dois segmentos, que se desnudam com clareza e charme. O primeiro faz pontificar suas memórias pessoais, incluindo o abrir dos olhos para a música e para os problemas sociopolíticos de um país cruelmente desigual e injusto. Todo um longo segmento se mescla entre prisões e torturas impostas ao nosso participante de luta, e a apetência, nunca negada, ao exercício da boemia, do fruir as noitadas, do apego aos companheiros de copos, de ideias e… de música. O segundo livro, ou a segunda parte desta unidade de opulência temática, crispa-se nos ensaios históricos e/ou acadêmicos. Aqui o autor dá a conhecer uma larga cultura musical e histórica, privilegiando o mito do Orfeu helênico, numa contraface, quero crer, da obsessão anunciada desde o começo do texto: o querer ser compositor. Mas sendo, sim, a partir da magia da aproximação das palavras com as notas musicais."
IdiomaPortuguês
Data de lançamento19 de abr. de 2022
ISBN9786589884118
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    As diabruras de Orfeu - cantorias sem fim - Paulo Martins

    Sumário

    PREFÁCIO

    PRIMEIRO MOVIMENTO - Allegro ma non troppo

    A vida por uma canção

    SEGUNDO MOVIMENTO - Staccato

    A dança de Orfeu e Eurídice

    TERCEIRO MOVIMENTO- Andante Cantabile

    A rebeldia do silêncio

    QUARTO MOVIMENTO - Allegro Grazioso

    Em busca da canção mais bela

    QUINTO MOVIMENTO - Allegro Finale

    Não deixe o samba morrer

    Prefácio

    Ricardo Cravo Albin

    Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin

    Na minha já alargada vida de historiador e dicionarista da música do Brasil, e muito especialmente quando se faceiam seus confrontos estéticos, fui instado pelo dever (e satisfação, devo logo asseverar) a ler centenas de livros, ensaios e teses acadêmicas.

    Este livro de Paulo Martins, As Diabruras de Orfeu, me surpreendeu por várias razões, inclusive pelo título já que as diabruras do mito grego são amáveis e amorosas, talvez nunca diabruras. Diabruras mesmo poderiam ser atribuídas a intensa sequência memorialística do autor, cuja vida se faz repleta de ações e de vivências que reluzem, como sua corajosa participação na luta contra a ditadura. Ressalto de imediato que o livro logo surpreende por ser muito bem escrito: não fosse Paulo também romancista, portanto profissional da arte de manusear palavras. O autor também esgrime, e deposita aos pés do leitor, alentada cultura musical e literária, em especial a helênica, a dos mitos, a das assombrações, a do épico da música e da morte, da vida e do amor. De fato, a lira de Orfeu representa um símbolo que é a tese posta de pé ao longo de quase a totalidade do livro, ou seja, a música de Orfeu simboliza a paixão obsessiva de Paulo em se fazer músico, compositor, arregimentador de partituras. Não importa como, mas certamente lhe molesta a fatalidade de não cumprir o destino almejado. Razão por que ele abre seu livro com passei a vida perguntando-me por que razão não me tornei compositor... e até hoje continuo a me fazer a mesma pergunta, como se um demônio torto morasse dentro da minha alma e de instante a instante me atiçasse com seu tridente em brasa, ao tempo em que cantasse uma melodia harmoniosa. Se não é um demônio, talvez seja um anjo. Mas continuo a me exigir a condição de compositor como se a vida estivesse apenas começando. Logo depois, Paulo abre mais ainda seu coração ao propor outra frase lapidar e inquietante ao leitor: digamos que eu seja um tipo de compositor sem obra musical. Componho escrevendo o que eu chamo de ficções musicais, nas quais as imagens que eu crio estão sempre a se converterem em música e meus personagens a evocarem os compositores que lhes fascinam... ninguém vai dizer que escutou meu canto, no entanto ele existe, nem que seja num formato etéreo, que nem todos podem captar.

    Aliás, devo logo testemunhar aqui que esse tipo de confissão do autor, a que devo chamar com mais precisão de obsessão, me é familiar. Razão da imediata simpatia (e sintonia) com Paulo Martins.

    Acode-me agorinha mesmo, para ilustrar o que digo, a lembrança de um encontro que promovi em minha casa, lá pelos anos ١٩٧٠-٧١, com as presenças de João Gilberto e João Ubaldo Ribeiro. Ambos baianos, ambos geniais, ambos ansiosos − quase vulcânicos − embora disfarçados em pessoas que aparentavam uma calma tão intrigante que até parecia pura preguiça. A reunião foi solicitada a mim pelo segundo João, o Ubaldo, que queria fazer umas letras para o primeiro João musicar.

    Ubaldo começou a conversa sem titubear: Ô João, acho que você anda privilegiando letras muito minimalistas. Esse seu baião Bim Bom, ou mesmo o Hobalalá, não têm sequer dois versos. Eu adoraria ser compositor. Minha paixão pela música, você sabe, é do tamanho exato de toda a Bossa Nova. Por isso, tenho esboçadas aqui, nesta pastinha de papelão, umas cinco letras para lhe apresentar. E não é só porque você musicou há pouco a letra do Jorge Amado pro filme Mandacaru Vermelho do Nelson Pereira dos Santos. Não é por causa disso, não. Nem me bate qualquer inveja do nosso grande Amado. O que me move é mesmo minha sedução e fixação pela música. Acho que o ideal para mim seria ser o Vinícius. Ao que João Gilberto, depois de pedir ao Ubaldo as letras, sacadas da algibeira pelo romancista com quase compulsão, comentou em tom que beirava a ironia: mas Ubaldo, essas letras estão quilométricas. Cada uma me parece mais um conto, se confrontada com as minhas. Olha, você devia mostrar essas peças para o Claudio Santoro ou Mignone transformarem em árias de óperas. Ubaldo fechou a cara, tragou sofregamente o copo de uísque quase cheio e pontificou: João, você vá à merda, que fazer letras para ópera não pode interessar a um boêmio irreverente da Ilha de Itaparica. E ali mesmo, naquele exato momento em que pressenti o suspiro ubaldiano pela morte de um possível letrista da MPB, assisti também ao triunfo de João Gilberto esnobando um já quase mito da literatura. E proclamando a superioridade de sua música.

    Paulo Martins, por seu turno, vai mais longe que a tentativa malsucedida de João Ubaldo. Ele, de fato, alimenta ao longo de todo o livro uma irrefreável obsessão. Tal como afianço ao começo desses comentários, envelopados em admiração pela fidelidade ao sentimento raro de um honesto processo obsessivo. A tal ponto me comove esse tipo de procedimento, que evoco Nelson Rodrigues quando cunhou no histórico depoimento para a posteridade no Museu da Imagem e do Som a frase para a qual bati palmas, saindo de minha necessária circunspecção de diretor do museu e entrevistador: Só os obsessivos e os chatos constroem para a posteridade. Digo e proclamo!. Declino aqui que atribuo apenas a mim o epíteto um tanto iconoclástico de chato, por também perseguir com insistência e certa ferocidade os fazimentos de coisas e mais coisas a não acabar, em vida tão atribulada. Já o adjetivo mais amável obsessivo, por certo, atribuo ao autor deste livro. Que disserta inúmeras vezes sobre as proximidades orgânicas entre literatura e música: "de fato, quando o escritor está escrevendo um conto ou uma peça literária qualquer é como se estivesse compondo uma canção, uma sinfonia. As palavras, queiramos ou não, são verdadeiras notas musicais e compõem frases literárias ou formas de sons encadeados."

    Ao chegar ao final de leitura prazerosa, sou inclinado a concluir que o leitor tem em mãos singular privilégio. Adquirir um livro que vale por dois, ambos estimulantes e bem nutridos. Isso porque o Paulo Martins enriqueceu a estrutura do livro com dois segmentos, que se desnudam com clareza e charme. O primeiro faz pontificar suas memórias pessoais, incluindo o abrir dos olhos para o mundo no interior da Bahia quando seu espírito é capturado pela magia da música. Muitíssimo propiciada pela Era do Rádio, ainda em pleno vigor entre os anos 40, 50 e até 60. A seguir, o rito memorialístico se abastece largamente dos pós-quinze anos de idade do autor, a descobrir os problemas sociopolíticos de um país cruelmente desigual e injusto. E aí chegam a inquietação do desabrochar dos sonhos cidadãos, a necessidade de compartilhar as ideias e as ações de bravura de sua geração, insultada pela asfixia da falta de liberdade.

    Todo um longo segmento se mescla entre prisões e torturas impostas ao nosso participante de luta (armada ou não), e a apetência, nunca negada, ao exercício da boemia, do fruir as noitadas, do apego aos companheiros de copos, de ideias e... de música. A quem não falta uma curiosíssima paixão pela obra-prima da canção francesa Ne me quitte pas, do rapsodo quase medieval Jacques Brel. Na fértil imaginação do autor, uma, quem sabe (dedução minha) reencarnação idealizada do Orfeu helênico.

    O segundo livro, ou a segunda parte desta unidade de opulência temática, crispa-se nos ensaios históricos e/ou acadêmicos. Aqui o autor dá a conhecer larga cultura musical e histórica, privilegiando o mito do Orfeu helênico, numa contraface, quero crer, da obsessão anunciada desde o começo do texto: o querer ser compositor. Mas sendo, sim, a partir da magia da aproximação das palavras com as notas musicais. Razão por que ele enfatiza que todo texto bem escrito sugere música, ou se quisermos adotar uma teoria de Gilles Deleuze, pode ser transformado em música: Literatura não é música, por se tratar de outra linguagem, mas ao mesmo tempo não pode se separar dela. Se é assim, tenho que admitir, que minha inclinação pela música não foi de todo frustrada em minha vida inteira..." Esta preliminar faz lembrar a Martins, o personagem Adrian Leverkühn, do Doutor Fausto de Thomas Mann. O gênio que superou a si mesmo ao ápice do conhecimento musical, e que se preocupava com a dependência entre letras e músicas e a ela se submetia. "...tanto que em sua defesa se reportava ao próprio Beethoven... é de se supor que esta visão fosse o entendimento de Thomas Mann, ele próprio conhecedor de música, pianista e perseguidor de perfeccionismo, uma tradição na histórica música alemã." A Nona Sinfonia de Beethoven, segundo ele, é o mais perfeito exemplo da quase simbiose entre letra e música.

    A música foi composta em cima do poema de Schiller Ode à Alegria. Na mesma direção, Jacques Brel teria feito uma versão de L’homme de la Mancha "em que consegue, principalmente na canção La quête, uma síntese magistral da obra de Cervantes. Outro exemplo dessa interação seria também a nossa Geni e o Zepelim, de Chico Buarque, que buscou no conto Bola de Sebo, de Guy de Maupassant, o argumento básico de sua fascinante história. Chico já havia musicado o poema Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, com sintonia tão estreita com a letra, que dá a impressão de que esta (a letra do poema) fosse também do jovem Chico, então com apenas 20 anos."

    Nosso autor propõe o ápice do seu livro, como era mesmo de se esperar, ao dissecar com cuidados cirúrgicos os antecedentes e as sequências históricas do mito de Orfeu. Embrenha-se no helenismo de milhares de anos antes de Cristo e faz consolidar o mito nos planos posteriores que culminam no século XX, com as peças de teatro: a primeira de Jean Cocteau, ambientada em Paris, no pós-guerra de uma Europa dizimada e sombria. A segunda, a de Vinicius de Moraes, um triunfo localizando Orfeu dez anos depois. Tendo como pano de fundo o morro carioca, a população negra, pobre e... feliz. Canônica também porque Orfeu não mais maneja a lira, mas o violão embebido pela sensualidade da batida do samba em ritmo de Bossa Nova, da disputa amorosa e, sobretudo, do carnaval − esta milagrosa conjunção de classes sociais que só o Brasil pode oferecer a um mundo soturno e nevoento.

    O mito de Orfeu está presente a cada tempo na vida de todos... trazendo-nos encantamento e alegria, mas também tristeza e dor. Só que redimidas pela beleza da música que sai da sua lira. Martins foi buscar o belo poema A Orfeu do português Miguel Torga, onde a beleza extasia e comove:

    "Das tuas mãos divinas de Poeta

    Herdei a lira que não sei tanger;

    Por eleição ou maldição secreta

    Tenho uma grade para me prender.

    Cercam-me as cordas, tensas de emoção

    Versos de ferro onde me rasgo inteiro.

    Mas do fundo da alma e da prisão,

    Obrigado, meu Deus e carcereiro."

    A acurada investigação literária que Martins conduz ao livro tem um de seus melhores momentos na transcrição da figura de Eurídice, magnificamente sentida no poema de R. M. Rilke "Orfeu, Eurídice, Hermes:

    Ia guiada pela mão do Deus

    O passo tolhido pelas longas vestes fúnebres,

    ncerta, branda, sem pressa.

    Ia dentro de si, como suprema esperança

    E não pensava no homem que ia à frente,

    nem no caminho escalonado rumo aos vivos.

    Estava em si. E o estar morta

    dava-lhe plenitude.

    Como um fruto de doçura e treva,

    estava plena em sua grande morte,

    tão nova que nada entendia."

    Os Orfeus, transfigurados em tenores pelas óperas de Gluck, e logo depois de Offenbach, quedam-se em silêncio ante o único Orfeu macio e belo, com sobrenome, com cor, com violão. O negro Orfeu da Conceição, criado magistralmente por Vinicius, que se exercitava e clamava por Eurídice ao dedilhar o violão; ora choroso, ora ritmado, mas sempre sensual. Em outro texto de culminante beleza, valendo-se de um soneto, Vinicius parece ter encontrado aquilo que Martins chama de mito correlato de Orfeu, sintetizado nos versos... uma mulher que é feita de música, luar e sentimento.

    E conclui o autor, pondo um ponto final necessariamente arrebatado à sua tese... Mulher feita de música! Eis a metáfora perfeita! É como se uma dependesse da outra, pois se poderia também dizer: música feita de mulher.

    PRIMEIRO MOVIMENTO

    ALLEGRO MA NON TROPPO

    A vida por uma canção

    Caminhando e cantando

    E seguindo a canção

    Somos todos iguais

    Braços dados ou não

    Nas escolas, nas ruas

    Campos, construções

    Caminhando e cantando

    E seguindo a canção

    Geraldo Vandré

    Para não dizer que não falei de flores

    UM

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    Passei a vida perguntando-me por que razão eu não me tornei compositor. Minha paixão pela música sempre foi tão intensa que, aparentemente, não existiriam explicações satisfatórias para que isto não tivesse acontecido. É inegável que em todas as minhas tentativas de abraçar a carreira musical aconteceram incidentes que, de alguma forma, a interromperam temporariamente. Não posso afirmar que eles tenham sido determinantes, mas o fato é que meus esforços não culminaram no sucesso almejado. O curioso é que, mesmo que reconhecesse as explicações possíveis para esse desvio desventuroso em meu projeto de vida – se é que se trata realmente disso – continuo a me fazer a mesma pergunta, como se um demônio torto morasse dentro de minha alma e de instante a instante me cutucasse com seu tridente em brasa, ao tempo em que cantasse uma melodia harmoniosa. Se não é um demônio, talvez seja um anjo. Mas continuo a me exigir a condição de compositor como se a vida estivesse apenas começando.

    Ora, mas quantas e quantas pessoas pelo mundo afora não estão se fazendo a mesma pergunta e buscando suas próprias respostas? O fato é que, se tudo tivesse ocorrido como imaginei e planejei, eu seria hoje um compositor em plena atividade com uma obra – quem sabe lá – vasta e conhecida. Mas não quero me deplorar. Não tenho sequer o direito de afirmar que tudo deu errado. Alguma coisa deu certo, ao menos em determinados momentos, quando consegui alimentar e enriquecer minha paixão pela música a ponto de fazê-la manifestar-se em outras atividades como na literatura. Se não alcancei a condição de compositor, também não fiquei distante dela. Digamos que eu seja um tipo de compositor sem obra musical − pelo menos especificamente musical. Componho escrevendo o que eu chamo de ficções musicais, nas quais as imagens que crio estão sempre a se converterem em música e meus personagens a evocarem os compositores que lhes fascinam, a discorrerem sobre suas obras e a cantarem suas canções como se vivessem no mundo da música. Ninguém vai dizer que escutou meu canto; no entanto ele existe, nem que seja num formato etéreo, que nem todos são capazes de captar. Os escritores são assim: metamorfoseiam-se em personagens de seus textos e depois ficam entrando e saindo da esfera da realidade como um pêndulo. Até que seus textos se tornem chamas vivas da realidade e seus sonhos aflorem como música.

    Deixando de lado as divagações, entro em minha história falando de seus aspectos objetivos, dos fatos que interferiram em seu curso e entorpeceram minha sonhada carreira musical. Refiro-me àqueles episódios contingentes, diante dos quais não temos nenhuma ingerência, e por isso não somos capazes de evitar. Acontecem e pronto. Só nos resta sacodir a poeira e dar a volta por cima, como já propugnava num samba imortal o compositor Paulo Vanzolini. E mesmo retomando nosso curso, nem sempre conseguimos alcançar o fim desejado, pois o destino novamente nos atropela. E voltamos a perguntar: Por que, afinal, algo deu errado?

    Relembro meus episódios de insucesso musical, sem esquecer que eles também foram temperados com momentos de imenso prazer e sucesso em outros terrenos. Vêm-me à tona, por enquanto, sete historietas:

    Na adolescência, eu tinha um grupo de amigos apaixonados por música, e nos encontrávamos todas as semanas para farrear e cantar. Ninguém sabia tocar um instrumento, mas isso não importava. O essencial era soltar a voz, às vezes varando a noite. O repertório era variado, pois não só ouvíamos muita música nas rádios, como éramos municiados por dois novos instrumentos de divulgação musical introduzidos naquela época: o toca-discos moderno, substituto da rudimentar vitrola, e o serviço de alto-falante da cidade, que trazia à tona toda novidade do mercado fonográfico. Além disso, aprendíamos uns com os outros, pois tínhamos o hábito de emprestar e trocar discos, principalmente long-plays, que tinham surgido pouco tempo antes. Disso decorreu nosso apego àqueles bolachões pretos que guardavam de forma mágica toda a beleza do mundo.

    Nesse tempo os bares tinham reservado uma discreta sala interna que se acessava por uma porta vai e vem típica dos saloons dos filmes de faroeste. Ali se instalavam aqueles que não queriam ser vistos bebendo. Era nesses reservados que nos reuníamos para prolongadas cantorias, que nos lavavam a alma e, muitas vezes, o corpo com banhos de cerveja e outras bebidas mais baratas quando a grana não dava para as primeiras.

    Cantávamos de tudo, não só as canções consagradas no mundo musical, como as de baixo nível estético, e modismos açucarados que hoje seriam lembrados como piadas de mau gosto. É que não tínhamos ainda capacidade de discernir o que era bom do que era ruim. Mas, apesar do vale tudo, o que predominava em nossas escolhas era a música romântica, em especial os sambas-canções da época, cuja variante brega, sustentada principalmente por Nelson Gonçalves, nos dava muito prazer. Tínhamos uma predileção especial por essa vertente porque vivíamos a fase da descoberta da mulher e do sexo, e nossa iniciação só era possível frequentando o famoso mangue, as ruas onde se concentravam as casas de prostituição, triunfante reduto da música brega.

    Havia poucos músicos na cidade e farrear com um deles era glorioso. Ficávamos com uma terrível inveja, fazendo promessas irrefreáveis de um dia vir a tocar tão bem quanto eles. Fora dos nossos costumeiros saraus, tínhamos que nos contentar com as orquestras contratadas para tocar no clube social da cidade, nas festas datadas, como carnaval, debutante, primavera, réveillon etc. Isto também era uma glória. E completando a gama de incentivos musicais que caía do céu sobre nós, havia ainda as aulas de música no colégio. Eram duas disciplinas: solfejo e canto orfeônico. Como eu tirava boas notas nas duas, conseguia médias elevadas, ficando sempre entre os primeiros alunos da classe. Foi nas aulas de solfejo que dei os primeiros passos no aprendizado da linguagem musical com sua parafernália de símbolos, fusos, colcheias, semicolcheias e outros sinais. Nas aulas de canto orfeônico aprimorei meu jeito de cantar e aprendi os hinos pátrios, assim como algumas cançonetas que não nos chegavam pelos canais costumeiros. Tudo isso somado fortaleceu meu sonho de dedicar-me à música, de tornar-me compositor. Aprender a tocar um instrumento musical, porém, era uma condição prévia para sua realização.

    Vem dessa época minha introdução à chamada música clássica. Eu a descobri através de uma coleção especial que minha irmã havia ganhado e que eu escutava com deslumbramento. Aprendi a cantarolar as linhas melódicas de composições famosas, que iam de Bach a Wagner, de Beethoven a Mozart, de Debussy a Stravinsky; apaixonei-me pelas aberturas e intermezzos das óperas italianas e alemãs; e encantei-me com as composições para piano de diversos autores, sendo o nome culminante Chopin.

    Poderia ter aprendido a tocar violão com um daqueles mestres da cidade que não cobravam tão caro. Mas eu queria ir mais longe, alcançar o clássico, quem sabe tornar-me regente no futuro. O melhor caminho era o piano.

    Quando nos mudamos de moradia, ganhamos duas belas vizinhas, e uma delas ministrava aulas particulares de piano. Parecia que tudo caminhava a meu favor. Surgia ali a oportunidade de aprender a tocar o instrumento alavancador de minha carreira. Eu já tinha alguma renda, oriunda de cursos particulares de matemática que ministrava, e, além disso, a professora me fez um preço acessível. Cheguei a tomar seis ou sete aulas, que sempre duravam mais do que o tempo combinado, pois ela se entusiasmara com meu interesse e minha dedicação e se esmerava comigo. Com três aulas já tinha aprendido algumas escalas cromáticas. Enfim, ali deveria ter começado a minha carreira de músico, patrocinando minha iniciação técnica e teórica. Pelo menos era a minha intenção.

    Naquele tempo, as moças tinham quase que a obrigação de tocar piano, pois esse era um dos dotes mais importantes da formação feminina. Todo casal burguês que se prezava tinha uma filha que tocava, e isso era motivo de orgulho para a família. Ninguém ouvia falar de um rapaz que tocasse piano. Acordeom, flauta ou violão, tudo bem, mas piano era quase exclusividade das moças. Eu era um intruso naquele ambiente. E o problema maior é que o ciumento pai da professora, quando soube que havia um rapaz na turma, exigiu-lhe que me dispensasse. Fui obrigado a abandonar os estudos. Fiquei deprimido e sem ação. Era a primeira ruína moral de minha vida.

    Meu sonho musical, em começo de florescimento, retornava à estaca zero.

    Um ano depois, mudei-me da Bahia para Belo Horizonte, a fim de ingressar na universidade. Minha vida tornou-se muito mais dura, pois era obrigado a trabalhar para sobreviver e custear meus estudos, já que meu pai não tinha condições de me manter em outra cidade. A ideia de estudar música ficou um tanto congelada. E eu já havia feito 17 anos.

    Passado algum tempo, fiz amizade com um músico profissional, antigo regente do Conservatório de Música de São João del Rei. Era oito anos mais velho que eu, tocava piano muito bem e tinha a vantagem de ser boêmio. Fazíamos farras memoráveis, trocando ideias sobre os grandes compositores clássicos, cantarolando melodias famosas, árias de óperas e outras composições. Às vezes, ia à sua casa e ele ficava tocando horas seguidas para mim. Eu o olhava morto de inveja. Um dia, reparando em meu olhar desolado, prometeu-me ensinar a tocar. Começou convidando-me para ingressar em um coral do qual se tornara regente, composto somente de jovens idealistas apaixonados por música. Chamava-se Weber, o mesmo nome de um compositor alemão que eu ainda não conhecia bem. Já a entidade à qual me integrei chamava-se Coral Palestrina.

    Participar dessa nova atividade reacendeu vivamente meus velhos sonhos. Primeiro, fui introduzido à música sacra, que eu desconhecia quase que totalmente. Weber descobriu que eu tinha voz de barítono, ou pelo menos de meio barítono, e começou a me treinar. Mesmo sem tocar nenhum instrumento, eu poderia por esse caminho me tornar músico, pois o coral era um trampolim para a composição. Existiria som mais perfeito do que a voz humana? Então, minha voz, devidamente educada, seria o instrumento musical que me faltava, se o aprendizado de piano por acaso não desse certo.

    Aprendi a cantar diversas missas, nacionais e estrangeiras, e tudo fazia crer que dali em diante meu sonho tomaria um novo rumo. O ponto alto do Coral era a Missa Pastoril para a Noite de Natal, do Padre José Maurício, a primeira e mais importante de nosso portfólio, e uma das poucas que chegamos a apresentar publicamente.

    O problema, na época, é que eu desenvolvia diversas outras atividades, inclusive uma intensa atuação política no Partido Comunista Brasileiro, no qual tinha ingressado a convite do próprio Weber que era membro antigo. Meu tempo era bastante disputado entre o trabalho de sobrevivência, a música, a política, a preparação para o vestibular e a literatura, a mais recente das paix]oes. Foi nesse emaranhado de atividades que, de repente, fui atropelado pela conjuntura política, em consequência do golpe militar de 1964. A perseguição de que eu já vinha sendo vítima desde 1961, com duas prisões nas costas, me impediu de continuar com uma vida normal. Tive que deixar Belo Horizonte às pressas e nunca mais voltei lá. Nem jamais voltei a ouvir falar do Coral Palestrina.

    Após meu estágio mineiro, passei um ano no exílio; morei algum tempo no Rio e, finalmente, depois de uma desastrosa prisão política, hibernei em São Paulo como revolucionário profissional. Eram tempos difíceis, de enfrentamento armado, ações tresloucadas, perseguições, fugas e recuos estratégicos. Envolvi-me de corpo e alma na atividade política de resistência à ditadura, posicionamento sagrado dos jovens rebeldes e idealistas de minha geração. Em nenhum momento, no entanto, a música deixou de me acompanhar, trazendo alívio para minha vida, cujas escolhas levavam a sofrimentos muito duros. O velho sonho musical resistia em silêncio e, de vez em quando, me aprisionava nas madrugadas sombrias, como um justiceiro que jamais perdoa.

    Nos estertores das atividades revolucionárias, depois de perdas enormes, fui obrigado a me refugiar o mais longe que pude. Caso contrário, seria novamente preso, ou, mais provavelmente, morto. Com o apoio de um parente próximo, fui morar numa cidadezinha pacata no sudoeste baiano, onde era difícil me encontrarem. Eu já havia completado 27 anos de idade.

    No clube social da cidade, onde passei a desenvolver atividades profissionais, fiz as primeiras amizades. Um dos novos amigos chamava-se Aderbal Duarte, dono da banda Os Águias, que tocava nas festas do clube. Por seu intermédio, liguei-me aos demais músicos e a outras pessoas que transitavam em torno da canção popular, entre elas um estudante de engenharia e compositor diletante, que vinha sempre à cidade se apresentar nos dias de festa. Chamava-se Ailton Sena, e fazia grande sucesso junto aos jovens com suas canções melosas de amores não correspondidos e lágrimas furtivas. Outro foi Joacy Ribeiro, estudante secundarista e filho de um rico fazendeiro, que também se dedicava à música. Passei a viver em um círculo essencialmente musical.

    Por força da convivência com aqueles novos amigos, a atividade musical foi ganhando novo espaço em minha vida. Fazíamos frequentes farras e as cantorias ressuscitavam um passado que se estendia até a minha infância. Foi quando me perguntei se não estava na hora de abraçar de uma vez a canção popular.

    Meu sonho de aprender a tocar um instrumento mantinha-se aceso, apesar de várias tentativas frustradas. Durante o período de clandestinidade, tentara algumas vezes estudar violão, mas as constantes fugas e imersões nos esconderijos da luta não me permitiram levar adiante os treinamentos necessários. Naquele momento, sentia recrudescer todas as velhas motivações. Tudo conspirava a meu favor: a presença de bons violeiros, o clima festivo e a relativa segurança em que passara a viver.

    A canção popular havia se tornado uma importante expressão das lutas de nosso povo. O samba, fenômeno maior de nossa musicalidade, desde os anos pré-64 podia ser traduzido como uma forma de resistência cultural. O movimento da bossa nova imprimira uma nova identidade musical ao país e alçara alguns compositores à cadeia dos grandes ícones da nossa cultura, levando-a a patamares jamais alcançados. Nosso prestígio musical crescera no mundo inteiro. A canção popular confrontava o poder discricionário. Foi nesse clima que adquiri meu primeiro violão, disposto a ingressar no rol dos que compunham e usavam a música como forma de luta e resistência. E rapidamente consegui acompanhar as principais canções que cantava.

    Em pouco tempo passei a compor algumas toadas, em parceria com meus amigos Joacy e Sena, que me auxiliaram no aprendizado do instrumento. Só

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