Doidos por discernimento: Doze sermões em torno de 1 Reis 3
De Tiago Cavaco
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Sobre este e-book
Reconhecido como alguém dotado de sabedoria extraordinária, Salomão, rei de Israel, produziu lições inestimáveis sobre como lidar com as alegrias e tensões inerentes à vida. Uma delas, descrita em 1Reis 3, serve de base para Doidos por discernimento, de Tiago Cavaco. Como, quando e por que devemos pedir discernimento a Deus? Em que medida Salomão nos indica o tipo de postura esperada de alguém que confia em Deus? Quais são as consequências quando pedimos a Deus a capacidade de discernir?
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Doidos por discernimento - Tiago Cavaco
1
Encontrar Deus no sono para viver acordado
Dá, pois, ao teu servo coração compreensivo para julgar a teu povo, para que prudentemente discirna entre o bem e o mal; pois quem poderia julgar a este grande povo?
1Reis 3.9
Talvez pior do que pensar mal é pensar que se pensa bem. Para ser bem-sucedida a experiência sincera de ouvirmos as palavras de alguém, interessa sempre sabermos duvidar das nossas. Só quando hesitamos em relação à nossa suposta inteligência podemos eventualmente alcançar alguma e, assim, progredir sendo úteis a nós mesmos e aos outros. Esta também é a lição de anos de aconselhamento pastoral e da leitura do exemplo clássico de sabedoria bíblica de Salomão. Há pouco tempo a Igreja da Lapa estudou precisamente o terceiro capítulo do primeiro livro dos Reis para, atraídos pela inteligência magnética da história, avaliarmos e aprofundarmos o discernimento de cada um na comunidade. O que este livro também faz é adaptar essa série de mensagens além do formato de sermão.
Como entrada do relato bíblico na proverbial inteligência de Salomão, que todo o capítulo 3 de 1Reis ilustra, o verso 9 destaca-se. E destaca-se porque é um pedido. A pessoa inteligente que Salomão quer ser começa por atestar-se não na presunção mas no pedido. Salomão em oração clama: Dá, pois, ao teu servo coração compreensivo para julgar a teu povo, para que prudentemente discirna entre o bem e o mal; pois quem poderia julgar a este grande povo?
. Há muito neste requerimento, mas o fato de ele ser uma vontade por ter algo que reconhece não ter deveria captar a nossa atenção.
No entanto, antes de irmos ao conteúdo propriamente dito da oração de Salomão, interessa assinalar que, na experiência comunitária da Igreja da Lapa, o nosso interesse por discernimento tinha sido espicaçado pela leitura recente do livro dos Atos dos Apóstolos. Logo no seu explosivo início, no capítulo 2, quando o Espírito Santo é derramado no dia de Pentecostes, tinha-nos impressionado o fato de todo aquele acontecimento único também ter sido tomado como uma bebedeira coletiva. Não fosse o fato de o apóstolo Pedro se ter levantado e, de Bíblia aberta, interpretado aquela circunstância extraordinária, tudo se resumiria a uma extraordinária borracheira. A Bíblia ensina, portanto, que é fácil um milagre ser tomado como uma miséria.
O discernimento é exatamente a flagrante oportunidade de evitar que um milagre seja tomado como uma miséria, ou uma miséria seja tomada como um milagre. Esse mesmo discernimento não existe sem uma Bíblia aberta. A nossa obsessão pelas Escrituras também se confirma no arrojo desta tese: sem um acesso a Deus, através da leitura da sua revelação escrita, ficamos abandonados à nossa capacidade de conhecimento que, se formos sinceros, é capaz de compreender tudo ao contrário. Sem a intervenção sobrenatural de Deus, o maior triunfo pode ser tomado como uma tragédia. No fundo, isto funciona como uma verdadeira teoria do conhecimento — uma visão epistemológica. Por isso, se quisermos arriscar uma definição filosoficamente mais robusta, assumiríamos que somos, por natureza, epistemologicamente deficientes.
Em linguagem mais teológica, assumir uma deficiência epistemológica de raiz corresponde também a assumir que, enquanto protestantes, somos mais da Revelação Especial do que da Revelação Natural. Estes são conceitos largos e com séculos de história e debate, mas, em benefício da simplificação, diríamos que a Revelação Especial corresponde ao fato de Deus revelar-se especialmente na sua Palavra — a Bíblia. Claro que não negamos que Deus também se revela naquilo que criou, no Universo à nossa volta — a Revelação Natural. Para indicarmos um texto do Velho e do Novo Testamento, encontramos, por exemplo, no Salmo 8 e em Romanos 1 sinais de que a natureza é também uma espécie de livro divino, onde verdades estão em exposição para qualquer pessoa atenta.
Mas a verdade é que, se a tradição católica romana tem um carinho especial pela Revelação Natural, nós, enquanto protestantes, não negamos a nossa preferência pela Especial, e daí o nosso bibliocentrismo (há quem nos alcunhe depreciativamente como praticantes de biblicismo — para mim é um elogio). Por vezes, basta um versículo para um evangélico apostar nele a sua vida inteira. Se a nossa obsessão pelas Escrituras é um pretexto para nos catalogarem de simplistas, a verdade é que a aposta na nossa capacidade de compreender o que está à nossa volta não nos parece um simplismo menor. Em termos práticos, ser mais da Revelação Especial implica ter como mais seguro o que em comunidade concluímos acerca da Bíblia, do que qualquer outra compreensão, seja ela bem-intencionadamente mais dependente de conhecimentos tidos por científicos, seja até interpretações de sinais divinos extraordinários. Acima de uma grande ciência ou de um grande carisma, confiamos na Bíblia.
No caso que é o alvo deste livro, Salomão, ele é dado como exemplo precisamente porque não confiou na sua capacidade natural de compreender. Salomão, que nas páginas da Bíblia também nos impressiona pela sua ciência e carisma, confia noutras qualidades. Quem confia na sua compreensão natural, tende a precisar da ajuda de Deus para pouco. Salomão não é na Bíblia um grande pensador porque pensou que o seu pensamento era um bom ponto de partida. É o oposto: a autodesconfiança oferece-lhe a leitura mais lúcida acerca de si mesmo, que é