Suplemento Pernambuco #195: De onde venho
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Suplemento Pernambuco #195 - Jânio Santos
CARTA DOS EDITORES
De onde venho: a chamada de capa desta edição do Pernambuco sintetiza uma ideia que marca parte bastante visível da literatura brasileira de hoje - diz respeito a escritas que dialogam com conquistas sociais das últimas décadas, relacionadas ao acesso de pessoas não brancas à universidade e ao diálogo dessa configuração com a visão e as falas de outras gerações de suas famílias (que não conseguiram acessar o mesmo espaço). Isso se reflete em um trabalho ficcional calcado na dupla experiência da origem socialmente desfavorecida e do repertório intelectual adquirido. O texto da pesquisadora Luciana Araujo Marques, focado em autorias afrobrasileiras, pode funcionar como um arquivo do momento atual, em que escritoras e escritores são aproximados pelo diálogo com a história recente do país — ainda que não sejam resumidos a essa característica. A capa desta edição fala mais sobre como as últimas décadas contribuíram para que certas autorias, a partir de uma história comum, configurassem suas próprias liberdades estéticas e diferenças.
O texto de Luciana conversa tanto com o artigo do escritor e professor Mário Medeiros (Unicamp), que fala sobre a memória negra no Brasil e sua preservação, quanto com a entrevista do mês, do historiador Rafael Domingos Oliveira — uma discussão sobre como abordar textos autobiográficos relacionados à diáspora afro-atlântica. Assim, esses três conteúdos pautam, cada um a seu modo, as formas de ler e construir as narrativas — realistas ou fantasmagóricas (artísticas) — que compõem nossas culturas.
Dois textos trazem uma abordagem próxima das ciências sociais. O de Magna Inácio, publicado pela nossa parceria com a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), segue o jogo político em torno das eleições presidenciais no Brasil. Já o ensaio sobre os diários de Raymundo Faoro, autor de Os donos do poder, permite entrever a Porto Alegre dos anos 1940 e faz pensar como a literatura pode ter comparecido à obra do pensador.
Por fim, você lê nesta edição a primeira parte de um importante ensaio de Silviano Santiago sobre suas biografias de artista
(em contraste com o gênero biografia), três livros que compõem um subconjunto em sua obra: Em liberdade, Viagem ao México e Machado. A segunda parte será publicada na edição de junho do Pernambuco.
Uma ótima leitura a todas e a todos!
COLABORAM NESTA EDIÇÃO
André Botton, doutorando em Letras (PUC-RS); Bia Abramo, jornalista, autora de Aperto de mão; Felipe Benicio, doutor em Estudos Literários (UFAL) e professor, autor de do Caos &; Filipe Aca, designer e ilustrador; Laura Erber, poeta, autora de A retornada; Magna Inácio, cientista política e professora (UFMG); Marina Farias Rebelo, doutoranda em Literatura Brasileira (UnB); Paulo Augusto Franco de Alcântara, pós-doutorando em Antropologia (USP); Silviano Santiago, ensaísta, autor de Fisiologia da composição; Victor da Rosa, professor (UFOP), organizador de Natureza: A arte de plantar; Wander Melo Miranda, professor (UFMG), autor de Os olhos de Diadorim
EXPEDIENTE
Governo do Estado de Pernambuco
Governador
Paulo Henrique Saraiva Câmara
Vice-governadora
Luciana Barbosa de Oliveira Santos
Secretário da Casa Civil
José Francisco Cavalcanti Neto
Companhia editora de Pernambuco – CEPE
Presidente
Ricardo Leitão
Diretor de Produção e Edição
Ricardo Melo
Diretor Administrativo e Financeiro
Bráulio Meneses
Superintendente de produção editorial
Luiz Arrais
EDITOR
Schneider Carpeggiani
EDITOR ASSISTENTE
Igor Gomes
DIAGRAMAÇÃO E ARTE
Hana Luzia e Janio Santos
ESTAGIÁRIOS
Luis E. Jordán e Rafael Olinto
TRATAMENTO DE IMAGEM
Agelson Soares e Sebastião Corrêa
REVISÃO
Dudley Barbosa e Maria Helena Pôrto
colunistas
Diogo Guedes, Everardo Norões e José Castello
Supervisão de mídias digitais e UI/UX design
Rodolfo Galvão
UI/UX design
Edlamar Soares e Renato Costa
Produção gráfica
Júlio Gonçalves, Eliseu Souza, Márcio Roberto, Joselma Firmino e Sóstenes Fernandes
marketing E vendas
Bárbara Lima, Giselle Melo e Rafael Chagas
E-mail: marketing@cepe.com.br
Telefone: (81) 3183.2756
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A fuga da iguana, países à beira de…
Há sempre uma guerra não muito longe e uma notícia que nos tira o ar
Laura Erber
HANA LUZIA
Na imagem há uma iguana, parada ao sol. É de manhã ou talvez seja o fim do mundo, dá pra sentir o halo de calor emanando de cada rocha da paisagem árida. Subitamente a iguana é tocada pela ponta do focinho de uma cobra, e sai em disparada. Assim começa uma sequência de fuga desesperada numa velocidade fascinante. A iguana é incansável e as serpentes também não desistem. Surgem duas, três, quatro serpentes, vindo de todos os cantos velozmente mas, em ritmo constante, a iguana corre, salta, segue em frente, vai, vai, vai. Do desespero é que surge aquela energia de fuga. De dentro das pedras surgem mais serpentes em coreografia harmônica enrodilhando a iguana num mesmo nó assustador. Será mesmo o seu fim, morte por estrangulamento na certa.
As serpentes são hábeis mas a iguana é mais tenaz! Leve e ligeira feito um azougue ela de repente escapa por entre os corpos enredados, saltando para fora da argola mortífera, questão de segundos que a câmera lenta nos permite fruir e fruir. E corre, corre saltitando enquanto das rochas não param de brotar serpentes decididas a abocanhá-la, a iguana pula abismos, as cobras despencam, outras surgem do nada, parece um pesadelo, parece o Brasil, e assim torcemos para que no último segundo ele escape dos horrores sem fim, feito uma iguana leve na paisagem tórrida.
Escrevo de Budapeste. Aqui também temos nepotismo, clientelismo, favoritismo e falcatruas mil, tem até um bilionário, László Bige, conhecido como o rei do fertilizante. O país só conseguirá escapar da nefasta repetição do cenário político atual se a iguana conseguir sair em disparada, dar o seu salto vivificante. Caso contrário, o país entrará no quarto ciclo de Orbán.¹
Uma grande manifestação foi organizada no dia do feriado nacional mais importante para o país, a não muitos quilômetros da grande manifestação dos apoiadores do atual primeiro-ministro. Embora a coalizão que tenta eleger Márki-Zay abarque um espectro vastíssimo, que não exclui políticos da direita tradicional, o lema dos cartazes e o refrão da música que as caixas de som, aliás excelentes, emitiam era: Todo poder ao povo. Imagina… Imagina se alguém solta um jingle desses numa campanha brasileira! O país inteiro entra em surto anticomunista. Foi uma manifestação bela e, para quem cresceu no Rio de Janeiro, curiosamente tranquila. A polícia pouco presente, nenhum sinal de briga ou confronto. Em solidariedade aos ucranianos, muitos budapestinos portavam fitas de cetim azuis e amarelas amarradas no braço.
Ficamos o tempo todo parados às margens do Danúbio. Mais parados que a iguana do primeiro parágrafo. Explicaram-me que é assim mesmo, e é assim porque as manifestações pró-Orbán adotaram a performatividade de procissões e marchas, então a oposição resolveu fazer o contrário e manifestar-se parada. A continuidade entre as duas fica por conta das bandeiras nacionais, onipresentes. Disputa-se aqui ideias de nação: uma cleptocracia embebida no mito magiar e um país com vocação cosmopolita, cravado no coração da Europa Central, que deveria atender melhor às expectativas democráticas da União Europeia. Era isso que gritavam os cartazes naquela manifestação de pessoas paradas no mesmo lugar, de pé, firmes, com cartazes sobre o poder do povo que fariam qualquer marqueteiro brasileiro arrepiar carreira feito uma iguana louca.
Há uma guerra não muito longe. Mais de trezentos mil ucranianos, alguns deles de origem húngara, entraram no país desde o dia 24 de fevereiro. Orbán já disse que os ucranianos são bem-vindos, mas que pro pessoal não-branco e não-cristão o melhor é arrumar logo um jeito de voltar pra casa.
Há uma guerra midiatizada pertinho de nós. Engole nosso ar, penetra em nossos ouvidos, feito o chumbo derretido que Maria Mutema despeja nos ouvidos do marido no Grande Sertão. Há sempre uma guerra não muito longe e uma notícia que nos tira o ar. Há sempre algum tipo de guerra. São todas sinistras. Um ator esbofeteia outro no palco, depois chora, as pessoas se dividem entre apoio comovido e horror exaltado. Uma música vira a mais