A colheita da prova e a escolha da tese probatória na perspectiva do processo oral: um diálogo entre os princípios da efetividade e da tempestividade
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A colheita da prova e a escolha da tese probatória na perspectiva do processo oral - Débora Minuzzi
1. ASPECTOS PROCESSUAIS E CONSTITUCIONAIS DA EFETIVIDADE E DA TEMPESTIVIDADE
1.1. A FUNÇÃO JURISDICIONAL NO DIREITO BRASILEIRO
Há marcadamente dois momentos normativos distintos, com mudanças significativas, no exercício da função jurisdicional do direito brasileiro: o Código de Processo Civil de 1973 e a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Partindo-se do Código de Processo Civil de 1973, momento no qual a função jurisdicional se limita apenas a declarar a lei ao caso, chegar-se-á à Constituição Federal de 1988, em que a função jurisdicional passou a estar espelhada na realização dos cânones constitucionais.
O direito processual civil brasileiro, com a promulgação do Código de Processo Civil de 1973, cujas raízes não deixam de ser romano-canônicas, limitou-se a valorizar a instrumentalidade do processo em consonância com a ideia de que jurisdição é a declaração da vontade da lei por meio do binômio certeza e segurança, de modo que o processo acabou sendo concebido como produtor de certeza, certeza que por sua vez é criação da lei
.¹
Se a jurisdição do processo cognitivo de raízes romano-canônicas tem feição declaratória, limitando-se apenas a um acertamento das relações jurídicas conflituosas
, o CPC de 1973, marcado principalmente pela influência sofrida do processo romano-canônico, também não foi diferente, restando a função jurisdicional no direito processual brasileiro adstrita a uma mera declaração da lei. Tem-se, assim, o processo como instrumento de acertamento da relação processual, nos limites da lei
.²
Nessa linha, foram vários os conceitos de jurisdição formulados pela doutrina clássica.
Giuseppe Chiovenda³ diz que a jurisdição é exclusivamente uma função do Estado, isto é, uma função da soberania do Estado
. A demanda deve ser proposta a um órgão do Estado revestido de jurisdição, tendo a atividade jurisdicional um caráter de substituição, porque substitui uma atividade pública por uma atividade alheia
. Em outras palavras, é uma atividade pública exercida em lugar de outrem
.
Quando o juiz afirma ser existente o direito de alguém, examinando a norma como vontade abstrata de lei
e os fatos que transformam em concreta a vontade da lei
, age mediante substituição da atividade alheia pela própria
.⁴
Nas palavras de Giuseppe Chiovenda:⁵
Pode definir-se a jurisdição como a função do Estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares ou de outros órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torná-la, praticamente, efetiva.
Para o autor, tem-se que as funções da soberania – Legislativo, Judiciário e Administrativo - são distintas. A tarefa de ditar normas reguladoras da atividade dos cidadãos e dos órgãos públicos é legislativa, enquanto a atuação da lei no caso concreto é função judicial. O juiz realiza o direito, fazendo valer a vontade abstrata da lei, diferentemente do administrador que age em conformidade com a lei
, considerando-a como norma de sua própria conduta
. A administração julga a sua própria atividade, e a jurisdição julga atividade alheia.⁶
Na doutrina de Giuseppe Chiovenda, portanto, a função jurisdicional nada mais é que a própria declaração (atuação) da vontade concreta da lei.
Por outro lado, Francesco Carnelutti⁷ diz que jurisdição nada mais é que a composição da lide. Por lide entende-se conflito de interesses determinado pela pretensão de alguém e pela resistência de outrem sobre o mesmo bem. Então, jurisdição pressupõe lide, porque o Estado exerce a função jurisdicional, quando resolve todo e qualquer conflito, aplicando o direito ao caso concreto, mediante sentença declarativa.⁸
Na doutrina brasileira, este é o posicionamento de Celso Neves:⁹
Se a lide é reflexo processual do conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida, a sua solução, no processo, tem natureza declaratória, porque atinente ao que, antes, ocorreu, seja no plano dos fatos, seja do direito sobre eles incidente, de que resulta a sua precomposição jurídica.
Nesse sentido, José Frederico Marques¹⁰ sustenta que, para haver jurisdição, é necessário que haja conflito de interesses entre as partes envolvidas no litígio. Nesse caso, a pretensão de alguém que alega ser titular de um direito e a resistência de outrem quanto esse direito está na base do litígio, formando-se o processo
. Por isso, que o conceito de jurisdição toma por base a existência prévia de uma situação conflituosa.
Chama-se de jurisdição, a função de julgar a lide ou pretensão, dando a cada um o que é seu
, função atribuída ao Judiciário, que está ao lado da legislação e da administração. O direito objetivo, contudo, deve sempre ser aplicado no conflito por meio de um terceiro imparcial, órgão ou autoridade estatal, fazendo valer a vontade concreta da lei. Portanto o Poder Judiciário, por intermédio do juiz, tem a função de resolver os conflitos, estando vinculado somente aos preceitos legais.¹¹
Para José Frederico Marques,¹² a jurisdição é uma atividade jurisdicional exercida em substituição a de outros
, mas não da mesma natureza que a substituída porque o juiz, por meio da atividade processual, age como terceiro imparcial. Nas suas palavras:
Na legislação, os interesses em conflito são compostos e regulados através de relações jurídicas e normas de conduta. Na jurisdição, esse conflito está qualificado por uma pretensão resistida ou insatisfeita, sobre a qual deve recair o pronunciamento do órgão estatal, mediante a atividade processual, substituindo-se esse órgão, como terceiro imparcial, aos titulares dos interesses em contenda.
Para a doutrina de Francesco Carnelutti, adotada no Brasil, dentre outros, por Celso Neves e José Frederico Marques, a função jurisdicional também se restringe apenas à aplicação ou à declaração da lei ao caso.
Já, Enrico Tullio Liebman¹³ sustenta que a jurisdição está diametralmente ligada ao direito de ação, porque somente haverá jurisdição, quando o juiz emitir o ato jurisdicional por excelência
, disciplinando determinada situação jurídica mediante a atuação da vontade da lei. Em síntese, o Estado realiza o exercício da atividade jurisdicional por meio da emissão de atos que têm um conteúdo concreto
.
Cândido Rangel Dinamarco,¹⁴ representante brasileiro desse posicionamento, ensina que, por meio da atividade jurisdicional, proteção outorgada mediante o exercício da jurisdição
, o Estado cumpre a função de solucionar as controvérsias entre as partes com base nos critérios de justiça
, conferindo, dessa forma, a um sujeito uma situação mais favorável que aquela em que antes se encontrava
.
Pela função jurisdicional, na teoria formulada por Enrico Tullio Liebman, adotada no Brasil, dentre outros, por Cândido Rangel Dinamarco, tem-se a atuação da vontade da lei ao caso.
Um dos primeiros a romper esse marco - de que o exercício da função jurisdicional é a declaração da vontade concreta da lei - foi Ovídio Araújo Baptista da Silva.¹⁵ Diz o autor - ao analisar o sistema processual brasileiro tendo por base o CPC de 1973 - que o sistema nacional ainda está enraizado na concepção de que o exercício da função jurisdicional é uma atividade meramente declaratória
, e se limita a revelar a vontade da lei
.
Deve-se ter presente, portanto, como bem lançado por Ovídio Araújo Baptista da Silva,¹⁶ que a função jurisdicional deve ser vista como atividade complementar da função legislativa, sendo este, e justamente este, o aspecto mais importante que está envolto do conceito de jurisdição.
Não é por outro motivo que Elaine Harzheim Macedo¹⁷ sustenta que o paradigma exaurido do processo declarativo
não se adapta mais aos anseios da pós-modernidade. Trata-se, pois, de exigências do processo do terceiro milênio, considerando um modelo de Estado Democrático de Direito, que a jurisdição esteja atrelada aos princípios basilares do direito.
Não há como sustentar que o direito seja entendido somente em seus produtores
: o legislador e a lei, a administração pública e o ato administrativo, o juiz e o provimento judicial
.¹⁸ É necessário, pois, que ele seja abrangido por valores e princípios constitucionais, compatíveis com a sociedade.¹⁹
E foi exatamente por isso que um novo momento normativo da função jurisdicional nasceu no direito brasileiro com a Constituição da República Federativa de 1988, consagrando, dessa forma, um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
O princípio da separação dos poderes, princípio legitimador do Estado Democrático de Direito, não pode ser empecilho ao Judiciário na construção e reconstrução do direito ao caso concreto.²⁰ É tarefa, pois, de todos os poderes constituídos – Executivo, Legislativo e Judiciário – a concretização do direito material, estando a sua real efetivação no plano concreto condicionada à conjunção do ato administrativo, do ato legislativo e do ato judicial.²¹
Em verdade, os juízes, pelo exercício da atividade jurisdicional, não podem cumprir apenas a função de dizer o direito, como se fossem a boca da lei
. É exatamente por isso que a eles deve ser confiada a tarefa de criar o direito nas controvérsias. Significa dizer que o magistrado deve construir junto com as partes a solução que mais se adapta à realidade concreta apresentada, levando-se em conta os princípios basilares do direito. Sua tarefa não pode se resumir apenas na declaração do direito, mas, sim, na própria criação deste.
Não há como aceitar que o direito seja produto apenas do Poder Legislativo, tendo o Poder Judiciário apenas a função de declará-lo, sob pena de flagrante desrespeito ao jurisdicionado, destinatário maior do ordenamento jurídico e do próprio Estado
. Na resolução do caso concreto, o operador do direito se torna corresponsável pelo resultado produzido
.²²
Essa preocupação, a qual busca definir jurisdição como dever-poder do juiz em trabalhar com a lei e com os cânones constitucionais de forma a conferir maior efetividade ao direito material tutelado, vai ao encontro dos ensinamentos de Elaine Harzheim Macedo.²³ São suas palavras:
Assim, se, no passado, perante os sistemas moderno-iluministas, a lei era produto de órgãos legislativos que detinham a titularidade do direito (justificando, de certa forma, essa identidade entre o direito e a lei), hoje, no sistema atual, tais órgãos detêm, também, a titularidade da intenção política, o que, perante essa realidade, impõe como exigência a devida adequação da atividade jurisdicional, responsável, em última análise, pela aplicação da lei aos conflitos de interesses, passando a jurisdição a exercer um verdadeiro contraponto, que há de se fundar no jurídico, em relação ao caráter predominantemente político da lei. Ora, se a lei já não oferece a totalidade do material com o qual a jurisdição há de ser trabalhada, a questão está exatamente na busca de outros referenciais, o que explica esse movimento antes mencionado, que só se justifica se inspirado pelos valores fundamentais da ordem jurídica, do direito, da realização do Estado identificado com os fins sociais.
Mas é impossível deixar de pensar na jurisdição, como função do Poder Judiciário de compor os conflitos com a realização prática do bem da vida pretendido, sem analisar como a entrega da prestação jurisdicional deve ser realizada pelo Estado.²⁴ Com isso se quer dizer que o Estado deve proporcionar que a realização do direito na resolução de cada caso concreto se dê de maneira eficiente e, ao mesmo tempo, tempestiva.
Portanto hoje se exige do Estado que a jurisdição seja exercida dentro de um prazo razoável
e de forma adequada ou eficiente, evitando-se, assim, prejuízos às partes.²⁵ Essas são as condições mínimas que o Estado deve oferecer às partes na composição dos conflitos. Dessa forma, e somente dessa maneira, ter-se-á a realização da função jurisdicional na realidade da vida.
1.2. PRINCÍPIO DA EFETIVIDADE
1.2.1. ORIGENS
O direito fundamental à tutela efetiva é preocupação constante não só no Brasil. Por isso, antes de se analisar o princípio constitucional da efetividade no ordenamento jurídico brasileiro, será demonstrada, ainda que brevemente, a sua origem na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Constituição da República de Portugal e na Constituição da Espanha.
Pois bem, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 8º, garante o direito a recurso efetivo. Diz o dispositivo que toda a pessoa tem direito a recurso efetivo para as jurisdições nacionais competentes contra os atos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei
.
Observa-se, então, que não basta apenas a criação de órgão jurisdicional que aprecie o ato atentatório ao direito fundamental. A declaração, de forma expressa, utilizada com o vocábulo recurso efetivo
, além da possibilidade de análise do ato atentatório ao direito fundamental, impõe que o Poder Judiciário imparcial de cada país tenha condições e legitimidade de resguardar de maneira efetiva os direitos.
No ordenamento jurídico de Portugal, o constituinte português, após a reforma de 1997, incluiu no título do artigo 20º da Constituição da República de Portugal o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. Abaixo, o inteiro teor do dispositivo mencionado:²⁶
Artigo 20.º: Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva
1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios econômicos.
2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídica, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
3. A lei define e assegura a adequada proteção do segredo de justiça.
4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.
Este artigo - 20º da Constituição de Portugal - define o que é tutela jurisdicional efetiva. A efetividade da tutela jurisdicional depende de que a todos seja assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos
; à informação e consulta jurídica, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade
; a adequada proteção do segredo de justiça
; a uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo
; procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos
. Preenchidos esses requisitos, tem-se processo efetivo.
A tutela não será efetiva, caso o processo não compreenda todos os requisitos ali mencionados. Esse, portanto, é o padrão de tutela jurisdicional efetiva estabelecida no ordenamento jurídico de Portugal. Pela leitura do artigo em comento, fica claro que o legislador português delimitou expressamente o que é processo efetivo.
No ordenamento jurídico da Espanha, o legislador espanhol aprovou, em 7 de janeiro de 2000, a reforma do Poder Judiciário, inspirada na necessidade social de uma justiça civil nova, caracterizada precisamente pela efetividade,
na qual ficou estabelecido expressamente o princípio da efetividade. Para o constituinte espanhol, essa reforma judicial significou plenitude das garantias processuais, resposta judicial mais eficaz e com maior capacidade de transformação real dos fatos
.²⁷
Na Constituição espanhola, portanto, o princípio da efetividade está expresso no artigo 24, inc. I, que assim dispõe: Todas as pessoas têm direito a obter a tutela efetiva dos juízes e tribunais no exercício de seus direitos e interesses legítimos sem que, em nenhum caso, possa produzir-se sem defesa
(tradução nossa).²⁸
Portanto observa-se que vários ordenamentos jurídicos já trazem de forma expressa o dever de prestação da tutela jurisdicional efetiva.
Essa situação, no entanto, não se dá da mesma forma no ordenamento jurídico brasileiro. Isso, porque a CF/88 não traz de forma expressa o princípio da efetividade. Seria ele, então, mais um dos princípios que compõe de forma implícita o devido processo legal?
O devido processo legal está disciplinado no inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federativa da República do Brasil. Diz o dispositivo que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal
.
Mas o que se entende por devido processo legal?
A expressão devido processo legal
foi importada do direito anglo-saxão. A dificuldade dessa importação reside na integração do direito anglo-saxão ao sistema jurídico da família da common law, que, por possuir os precedentes judiciais como fonte de direito, gerou sérias dificuldades na tradução literal – do inglês para o português – da expressão legal
. É que o Brasil integra o sistema jurídico da família civil law, que tem a lei como fonte de direito e não os precedentes judiciais, não se identificando com o sentido do conceito da expressão legal
.²⁹
Como refere Fredie Didier Júnior,³⁰ esta observação é importante
, porque o processo há de estar em conformidade com o direito como um todo, e não apenas em consonância com a lei
.
Devido processo legal pode ser compreendido, pois, como garantia de concretização dos direitos fundamentais nas relações processuais. Em outras palavras, garantia de natureza fundamental
para a aplicação dos princípios constitucionais disciplinados na Carta Magna.³¹
Vale lembrar, como bem lançado por Humberto Ávila,³² que o devido processo legal também possui a função de criar os elementos necessários à promoção do ideal de protetividade (função integrativa).
Como sua função não se resume a efetivação apenas dos princípios constitucionais expressos, conclui-se que o princípio constitucional da efetividade faz parte de forma implícita da cláusula do devido processo legal.
Esse, inclusive, é o posicionamento de Fredie Didier Júnior.³³ Para o autor, o devido processo legal permite a mobilidade e a abertura do sistema jurídico
, podendo, em razão disso, serem dele extraídos outros direitos fundamentais, ainda que não compreendidos expressamente na Carta Magna. Do devido processo legal, portanto, se extrai o princípio da efetividade
.
Ademais, o §2º do artigo 5º da CF/88 permite a incorporação no ordenamento pátrio de direitos e garantias, ainda que não expressos na Constituição Federal. Diz o dispositivo que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime