Conselhos Tutelares: histórias, paisagens e movimentos na "Terra de Ninguém"
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Conselhos Tutelares - ELCIR FORNACIARI
PRODUZINDO CAMINHOS
[…] que tipo de saber vocês querem desqualificar no momento em que vocês dizem: ‘é uma ciência’? Que sujeito falante, que sujeito de experiência ou de saber vocês querem ‘menorizar’ quando dizem: ‘eu que formulo este discurso, enuncio um discurso científico e sou cientista’? Qual vanguarda teórico-política vocês querem entronizar para separá-la de todas as numerosas, circundantes e descontínuas formas de saber?
(MICHEL FOUCAULT)
Esta obra, intitulada Conselhos Tutelares: histórias, paisagens e movimentos na ‘Terra de Ninguém’
, é baseada na dissertação de mestrado de mesmo título, defendida e aprovada no ano de 2003, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Centro de Estudos Gerais da Universidade Federal Fluminense (UFF), estado do Rio de Janeiro. Por ser uma produção de um movimento histórico, possui, em seu conteúdo, basicamente a mesma composição da produção original do período em que foi escrita. Acrescentamos alguns conceitos e definições, retiramos, reformulamos ou condensamos alguns parágrafos que, por vezes, tornavam-se repetitivos ao longo do texto, como também alteramos algumas palavras, tempos verbais para melhor compreensão. Ela busca narrar a história dos processos de implantação dos Conselhos Tutelares no município de Cariacica, Terra de Moxuara
, no estado do Espírito Santo. Doravante, será chamada de livro-dissertação.
Previsto pela Lei n° 8.069, de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), o Conselho Tutelar é definido, no art. 131, como [...] órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças e dos adolescentes
(BRASIL, 1990, p. 59). Na época, tal lei previa, no art. 132, que […] Em cada município haverá, no mínimo, um Conselho Tutelar composto de cinco membros, escolhidos pela comunidade local para mandato de três anos, permitida uma recondução
(BRASIL, 1990, p. 59).
O motivo de esta obra estar voltada para os Conselhos Tutelares de Cariacica deveu-se, sem dúvida, à nossa participação, por aproximadamente quatro anos (de meados de 1997 a meados de 2001), em um projeto de extensão universitário intitulado Projeto de Extensão Intervenção Junto aos Conselhos Tutelares de Cariacica (ES)
que tinha como objetivo criar um espaço de escuta e fala
para os conselheiros tutelares, para as crianças e adolescentes, para seus pais ou responsáveis, e também possibilitar aos alunos/extensionistas o contato com a experiência clínica de cunho psicanalítico.
Esse projeto foi solicitado pelo Juizado da Vara da Infância e da Juventude do Município de Cariacica à Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Apesar de achar estranho o pedido ter vindo do Juizado e não dos próprios Conselhos Tutelares, não pudemos entender, naquele momento, todo um jogo de relações de saber e poder de que se travava. O fato de nos utilizarmos de uma certa leitura e de um olhar clínico individualizante da Psicanálise, centralizado no complexo de Édipo, na falta, por vezes dificultava a visibilização dessas relações. Em alguns momentos, nossas práticas, centradas na
criança, no
adolescente, na
família, no
conselheiro, acabavam por produzir e reforçar processos de individualização e intimização dos problemas
que chegavam a tais conselhos. Assim,
Com essa ‘tirania da intimidade’, qualquer angústia do cotidiano, qualquer sentimento de mal-estar existencial, são imediatamente remetidos ao território ‘da falta’, onde os especialistas ‘psi’ estão vigilantes e atentos para resgatar suas vítimas (COIMBRA, 1995, p. 36).
Num momento histórico em que o neoliberalismo ganhava cada vez mais força, produzindo o desmanche das referências fixas e cujo lema para a sobrevivência era o adapta-te ou devoro-te
, em alguns momentos nos sentíamos trabalhando para o sistema, adaptando as crianças que chegavam ao Conselho Tutelar à escola, e a família, dita desestruturada
, aos moldes das famílias burguesas, tudo em prol da harmonia social, em que o psicologismo fornecia subsídios e legitimação científica
à tecnologia da adaptação, visto que […] há sempre um ‘a mais’ a corrigir, um a menos a tratar
(COSTA, 1989, p. 15). Assim,
[…] através da tutela terapêutica o corpo, o sexo e as relações afetivas entre os membros da família […] passam a ser usados, de modo sistemático e calculado, como meio de manutenção e reprodução da ordem social […]. Todavia, a ação deste tipo de tutela vai mais além. Recupera os efeitos imprevistos desta manipulação, ocultando-lhes […] o caráter político-social (COSTA, 1989, p. 16).
Naquele momento, acreditávamos que poderíamos contribuir para resolver os problemas individuais
, suas faltas simbólicas e imaginárias
, por meio da ferramenta Psicanálise. Entretanto, notávamos que havia um outro tipo de falta
da qual ela não dava conta: a falta real. Para aquelas crianças, adolescentes e famílias, geralmente pauperizadas, que chegavam aos Conselhos Tutelares, faltava comida, moradia, emprego, educação, saúde, ou seja, condições de vida dignas. Essa falta real não era produto de um complexo de Édipo bem ou mal resolvido
, mas de um processo político, econômico, social, produzido historicamente, que privilegia alguns setores da sociedade, uma minoria, em detrimento de uma maioria pauperizada.
Às vezes, sentíamos um misto de angústia de comodismo – por atendermos entre quatro paredes, enquanto, fora delas, a vida parecia ser asfixiada por estratégias de exploração e controles sociais, nos quais também éramos pegos – e mesmo de inquietação, e que com o tempo, pudemos perceber esses sentimentos como produções de alguns atravessamentos que se davam.
Os atravessamentos¹ são os inúmeros vetores que atuam produzindo formas de agir, pensar e existir das pessoas, dos grupos e das quais, por vezes, não temos visibilidade (BAREMBLITT, 1996). São re(produzidos) pela mídia, pela religião, pela educação, pela cultura, pelo capitalismo, dentre outros..., produzindo subjetividades, que ora se conformam ora resistem a eles.
Esses atravessamentos, por vezes, eram diferentes e conflituosos, tais como os referenciais da Psicanálise e da Análise Institucional Francesa – sendo esta uma outra corrente de cunho socioanalítico e eminentemente político contestador das práticas políticas e sociais instituídas, […] não se propondo a uma análise ‘psicológica’
(RODRIGUES; SOUZA, 1991, p. 27) – e também da prática vivida nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
As CEBs eram, e ainda são, em algumas localidades do Brasil e de outros países da América Latina, uma face da Igreja Católica que colocava em análise o contexto político, o contexto social e o contexto econômico, produtores de grandes desigualdades, exclusões e misérias, além do próprio funcionamento dela. Tais conflitos propiciaram uma maior visibilidade daquilo que nossas práticas poderiam produzir, das relações de saber e poder, e dos jogos de forças de que se travavam entre os Conselhos Tutelares, o Juizado e diversos outros atores políticos presentes no município de Cariacica e até mesmo fora dele.
Com os atravessamentos da Análise Institucional, do pensamento de Gilles Deleuze, Félix Guattari e Michel Foucault, dentre outros que trabalham numa perspectiva eminentemente política, notamos de maneira mais clara o caráter tutelar das práticas do Juizado diante dos Conselhos Tutelares, ocupados por pessoas simples e humildes, de pouca escolaridade, como a maioria da população de Cariacica, no sentido de ter alguém que estivesse treinando, tutelando e, ao mesmo tempo, fiscalizando o trabalho deles: os extensionistas do projeto; esses eram possuidores de um saber, com aval universitário, sobre como orientar, como atender, como detectar problemas nas
crianças, nos
adolescentes, nas
famílias, na
escola.
Ao enfatizar o caráter tutelar das práticas do Juizado, não queremos lhe atribuir uma essência tutelar
, mas colocar em relevo que esses órgãos, assim como os Conselhos Tutelares, faces da Psicologia, das escolas, e até mesmo de cada um de nós, são atravessados por formas de agir, pensar, que muitas vezes acabam produzindo práticas de tutela, cujos efeitos podem ser a dependência, o comodismo, a impotência, como também atos de resistência, de rebeldia, de questionamento diante delas.
Entretanto, embora a solicitação à UFES tenha partido do Juizado, os conselheiros tutelares acolheram o projeto de extensão universitário, visto que, naquele momento, sentiam-se muito sozinhos e os Conselhos Tutelares encontravam inúmeras dificuldades para poder funcionar no cumprimento de suas atribuições previstas pelo ECA.
Mesmo participando do cotidiano de apenas um Conselho Tutelar, ficávamos sabendo, nas reuniões de supervisão do projeto de extensão, das dificuldades pelas quais os outros três também passavam objetivando garantir os direitos das crianças e dos adolescentes no município de Cariacica. Dentre as dificuldades estava a falta de equipamentos/móveis, a inexistência de telefone para atender às denúncias de violações dos direitos – havia Conselhos que atendiam às chamadas/denúncias por meio dos telefones chamados de orelhões
–, ausência de carro e até de vales-transportes para averiguá-las.
O aluguel, atrasado há aproximadamente três anos, colocava-os em risco de serem despejados por ação judicial. Havia também ameaças de morte, feitas por pessoas ligadas ao governo local e a grupos de extermínio e, também, um total descaso de tal governo para com os Conselhos, deixando seus conselheiros sem receber pelo exercício de sua função durante um ano, não dando a eles as mínimas condições de atuação, que estavam descritas no art. 134 do ECA.
Durante esse período de acompanhamento da realidade dos Conselhos Tutelares de Cariacica, notamos que, por mais que tivessem suas condições de funcionamento a cada dia mais precarizadas, eles teimavam em se manter abertos, atendendo à população que ali chegava em busca de ajuda e informações que viessem a contribuir para a resolução de problemas e conflitos vividos por ela, como também que visassem à garantia dos direitos das crianças e adolescentes que, na maioria das vezes, não eram cumpridos pelo governo local.
A princípio, nos primeiros esboços da obra de dissertação de mestrado, devido às dificuldades de funcionamento, pensamos em focalizar nossos esforços colocando em análise os Conselhos Tutelares como órgãos autônomos
, conforme previsto no art. 131 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas, em que aspectos da autonomia focalizaríamos nossa atenção? As dificuldades para delimitar os objetivos, devido à amplitude da temática, acabaram por contribuir para que nos apegássemos a uma das partes que pretendíamos discorrer sob a forma de um capítulo, que era narrar um pouco da história da implantação dos Conselhos Tutelares em Cariacica; tema inédito na época. Aquilo que era para ser um capítulo tornou-se uma dissertação, agora transformada em livro-dissertação.
Com os focos da atenção voltados para a história da implantação dos Conselhos Tutelares em Cariacica, fizemos uma nova leitura da pesquisa bibliográfica que já havíamos realizado a respeito do município e também de parte daquela que envolvia a temática da autonomia desses órgãos, pois nos fornecia subsídios para a nova temática; resultando em uma experiência muito interessante que nos fez descobrir livros dentro de um mesmo livro.
Vasculhando algumas fontes bibliográficas², voltadas mais para a realidade de Cariacica, pudemos observar que o processo de implantação era uma página quase apagada na história do município. Através de contatos com algumas lideranças e atores do processo, conseguimos encontrar vestígios que traziam algumas informações, através do resumo de atividades realizadas pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente do município de Cariacica – ES (no período de novembro de 1990 até abril de 1993), de reportagens de jornais, de boletins informativos, que frequentemente faziam denúncias diante do descaso do governo local para com os Conselhos e outros acontecimentos ocorridos cronologicamente, mas, o como foi
, os bastidores do movimento, não era exposto. Foi por meio dessas fontes, dos vestígios e de conversas com conselheiros e ex-conselheiros tutelares, num primeiro momento, nos primeiros esboços da pesquisa, que conseguimos situar o processo de implantação num contexto histórico, início da década de 90, do século XX; período marcado por práticas de poderes políticos populistas e centralizadores por parte do governo municipal.
Paradoxalmente, naquele contexto histórico, também eram produzidos inúmeros pequenos movimentos populares que se constituíam em importantes instrumentos de transformação política e social, como também de resistência às práticas citadas no final parágrafo anterior.
Foi, então, que começamos a nos dar conta de que esses Conselhos Tutelares, apesar de todas as dificuldades, carregavam consigo algo que incomodava o poder político local. O que seria? A partir daí, vieram-nos algumas questões: como foi o processo de implantação desses Conselhos Tutelares no município de Cariacica? Quais foram as principais dificuldades encontradas na época? Como eram as práticas do poder político local diante de tal processo? Quais foram os principais atores? Quais eram seus desejos? Com a curiosidade aguçada, começamos a investigar como foi o processo de implantação e a contar sua história.
À medida que fomos adentrando pela história da implantação dos Conselhos Tutelares no município, que em muitos momentos era tida como concessão do poder político local, nós pudemos perceber que os fatos pareciam apontar para outra direção. É que
[…] os fatos humanos são raros, não estão na plenitude da razão, há um vazio em torno deles para outros fatos que o nosso saber nem imagina; pois o que é poderia ser diferente; os fatos humanos são arbitrários […], não são óbvios, no entanto parecem tão evidentes aos olhos […] que […] sequer os percebem (VEYNE, 1998, p. 239-240).
A história que contamos nesta obra não é uma história estática e imutável. Ela é produzida pelos mais diversos seres humanos, pois não é somente coisa do passado
e, sim, uma infinidade de experiências vividas e que podem ser contadas; por isso denuncia muitas tramas político-sociais ainda atuais.
É uma história que vai e vem como as ondas do mar. Ela exorciza a linearidade, o desenvolvimento, a evolução e o progresso, esse obscuro sinaleiro
(BAUDELAIRE, apud BERMAN, 1988, p. 135) que orienta navegantes perdidos em um outro tipo de concepção de história. Ela é concebida como um campo de forças em luta, onde discursos, práticas e saberes estão permanentemente se (re)produzindo e se confrontando, forjando formas de agir e pensar como também a emergência de um certo modo de funcionamento que pode se tornar hegemônico ou não. Assim, [...] é preciso saber reconhecer os acontecimentos da história, seus abalos, suas surpresas, as vacilantes vitórias, as derrotas mal digeridas, que dão conta dos atavismos e das hereditariedades [...]
(FOUCAULT, 2002, p. 19).
Ao propor contar a história do movimento de implantação dos Conselhos Tutelares em Cariacica, apontamos também jogos de forças e de lutas que […] passam dos bastidores para o teatro […]
(FOUCAULT, 2002, p. 24) e aos quais procuramos dar visibilidade.
A história que contamos é também uma história de resistência.
[…] Resistência que tanto pode ser difusa – como na irreverência do humor anônimo que percorre as ruas, nos ditos populares, nos grafites espalhados pelos muros das cidades – quanto localizada em ações coletivas ou grupais. Não nos referimos às ações deliberadas de resistência […], mas a práticas dotadas de uma lógica que as transforma em atos de resistência (CHAUÍ, 1986, p. 63).
Nesse sentido, podemos falar que são pequenas ações, pequenos movimentos, pequenas estratégias que algumas vezes são tidas até mesmo como artes de criança
.
Uma outra forma de resistir poderia estar muito bem contida no ditado popular: água mole em pedra dura, tanto bate até que fura
; a resistência como ato de insistência, persistência.
De acordo com Roque (2003, p. 24), a resistência […] não se define [somente] por aquilo a que, ou contra o que, se resiste; mas diz respeito à afirmação de um modo de existência. Trata de uma (re)existência, já que na atualidade, só a vida é capaz de resistir
.
Tal forma de concepção de resistência tem ressonâncias com o pensamento de Guattari e Rolnik (1999) à medida que, para eles, uma das formas de fugir e lutar contra o modo de vida capitalista dominante é pela criação de novos modos de agir, pensar, existir, que passam pela produção de novas subjetividades. Segundo esses autores, "[...] a produção de subjetividade constitui matéria-prima de toda e qualquer produção" (p. 28, itálico dos autores). Nesse caso, qualquer movimento que fuja à serialização e à uniformização, características do modo de vida capitalista, passa pela produção de outras formas de subjetividades/existências constituindo-se em formas de resistência, que também podem ser chamadas pelos autores de revoluções moleculares
.
Com base nessas formas de conceber a história e os processos de resistência, é principalmente em torno de um movimento, o de implantação dos Conselhos Tutelares de Cariacica, que situamos este livro-dissertação, contamos suas histórias, analisamos como, muitas vezes, transformaram-se em ato de resistência às práticas populistas e centralizadoras do governo local e como, em outros momentos, apresentaram práticas não tão singulares e/ou criativas; práticas até conservadoras.
Para contar essa história, navegamos
no tempo e no espaço, conhecendo lugares, paisagens e pessoas. Por meio da literatura, viajamos
por alguns estados, países e cidades, até mesmo estrangeiras, como Paris e São Petersburgo, conhecendo alguns de seus movimentos populares que produziram conselhos como forma de gestão popular. Visitamos centros culturais e históricos, assim como bibliotecas. Munidos da curiosidade do pesquisador, bisbilhotamos livros e documentos, fazendo a pesquisa bibliográfica concomitantemente à elaboração da, então, dissertação, visando trazer um pouco da história das políticas da infância e da juventude no Brasil, dos conselhos em geral, da produção da instituição do ECA, da história política no município de Cariacica,