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O último elo mortal
O último elo mortal
O último elo mortal
E-book1.184 páginas21 horas

O último elo mortal

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Sobre este e-book

O GLORIOSO ENCERRAMENTO DE UMA JORNADA ÉPICA.

O Império Annuriano está perdendo uma guerra em duas frentes – e não está claro quem o comanda.

Adare, no coração da tempestade, reivindica para si o título de imperador. No entanto, ela não pode conter os implacáveis urghuls sem apoio. A profetisa de Intarra, atormentada pelo que fez ao irmão Valyn, precisa de seu brilhante general, Ran il Tornja, mas a lâmina da traição paira rente e afiada sobre sua pele. Além disso, é praticamente impossível se antecipar às hábeis estratégias do milenar comandante, agora desmascarado como assassino do pai dela e remanescente de uma raça antiga, que tentou há muito destruir a humanidade.

Gwenna, Talal e Annick, os kettral remanescentes, precisam lidar com um desafio letal: voltar às Ilhas Qirins, onde foram treinados, e expurgar de lá um terrível mal que se instalou e está ceifando vidas.

Kaden, verdadeiro herdeiro do Trono de Pedra Bruta, enxerga na república uma maneira de salvar seu povo dividido. Mas ele enfrenta algo mais terrível do que a guerra ou mesmo il Tornja: deuses caprichosos caminham pela terra dentro de corpos humanos e precisam ser libertados antes que alguém mate seus hospedeiros – ou aquilo que se conhece como humanidade deixará de existir.
Tenso, vigoroso e imprevisível, "O último elo mortal" é o desfecho triunfante da trilogia que conquistou milhares de fãs em todo o mundo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento4 de dez. de 2019
ISBN9788542816396
O último elo mortal

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    O último elo mortal - Brian Staveley

    C A P Í T U L O  1


    Homens do tamanho de montanhas abriam caminho, imersos até a cintura, através dos oceanos do mundo. Lâminas polidas – cada uma longa o suficiente para arrasar cidades – refletiam a luz solar. Botas esmagavam delicados litorais, reduzindo­-os a escombros, obliterando cidades pesqueiras, criando crateras nos suaves e verdes campos de Sia e Kresh.

    É assim que o mundo acaba. Esse foi o primeiro pensamento de Kaden, olhando fixamente de cima para a destruição abaixo.

    Uma cidade, afinal, era apenas pedra; uma floresta, não mais do que madeira molhada de seiva. O que era o curso de um rio, senão um corte entalhado na terra? Aplique força suficiente e o próprio mundo irá se deformar. As formas dos espinhaços e dos vales não significavam nada. Traga força suficiente e você pode romper falésias, derrubar montanhas, rasgar a própria rocha e vê­-la espalhada pelas ondas. Traga fogo, e o mundo irá queimar. Traga água, e ele afundará sob o dilúvio. As velhas formas dos mares e das pedras poderiam ser transformadas pela água e pelo fogo, e aquelas outras formas, as linhas desesperadas, mesquinhas, com cuja existência homens e mulheres sonhavam através da terra para indicar seus reinos, seus pequenos impérios, aquelas, também, seriam aniquiladas com todo o resto, em um Armagedom de um piscar de olhos.

    Não. Esse foi o segundo pensamento de Kaden. Não é o mundo. É apenas um mapa.

    Um vasto mapa, verdadeiro, do tamanho de uma pequena pista de desfile, o mapa mais caro em todo o mundo, encomendado por uma vaidosa República Annuriana para sua câmara do conselho, mas, ainda assim, apenas um mapa. Legiões de artesãos haviam trabalhado dia e noite durante meses para completar o projeto; pedreiros para esculpir as montanhas e rochedos à beira­-mar, jardineiros a fim de cultivar a miríade de gramíneas e pequenas árvores perfeitas, engenheiros hidráulicos para guiar os rios em seus cursos, joalheiros a fim de cortar as safiras para os pequenos lagos nas montanhas, as geleiras de vidro e diamante.

    Ele se estendia por toda a extensão do corredor, por mais de sessenta metros de ponta a ponta. O granito das Montanhas dos Ossos viera das Montanhas dos Ossos, a pedra vermelha de Ancaz, de Ancaz. Bombas escondidas sob a superfície alimentavam os grandes rios de Vash e Eridroa – o Shirvian, o Vena, o Agavani e o Negro – juntamente com dezenas de riachos cujos nomes Kaden não sabia; esses fluíam entre as altas margens e ao redor de cangas de bois, sobre cataratas em miniatura e através de pântanos úmidos construídos de musgo verde e macio, finalmente desembocando nos mares e oceanos do pequeno mundo, oceanos que, por algum artifício inteligente, subiam e desciam de acordo com a órbita da lua.

    Podia­-se passear pelas passarelas acima, olhando para réplicas surpreendentes das grandes cidades: Olon e Sia, Dombâng e Bend. A própria Annur estendia­-se por um espaço do comprimento do braço de Kaden. Ele conseguia identificar as brilhantes facetas do Templo de Intarra; a grande avenida do Godsway, completa com diminutas estátuas; os minúsculos barcos de canal balançando, ancorados na bacia; as austeras paredes vermelhas do Palácio do Alvorecer; e, erguendo­-se como uma lança que ia além da passarela, tão alta que alguém poderia alcançar e tocar o topo da torre sem inclinar­-se, a Lança de Intarra.

    Assim como os homens e mulheres que ficavam sentados dia após dia em disputas mesquinhas acima dele, o mapa maciço era tão magnífico quanto insignificante. Até aquele momento, tivera uma única função: fazer com que aqueles sentados acima dele se sentissem como deuses. Para esse propósito, ele não mostrara nada mais do que um mundo de sonhos, um mundo não marcado por todos os seus fracassos.

    Não havia incêndios descontrolados assolando as florestas do norte. Não havia cidades queimadas ao sul. Ninguém havia transformado os campos gramados de Ghan em lamaçais ou bloqueado o porto desesperado de Keoh­-Kang. Pequenos soldados pintados indicavam a localização dos exércitos no campo. Homens minúsculos, que representavam as legiões traidoras de Adare e a própria Guarda Republicana do conselho, mais numerosa, pontilhavam o terreno, as espadas erguidas em posturas imóveis de desafio ou triunfo. Esses falsos homens estavam sempre em pé. Eles nunca sangravam. O mapa não mostrava qualquer vestígio da devastação e da destruição causadas pela guerra. Evidentemente Annur não possuía artesãos para esculpir a fome, ou o terror, ou a morte.

    Não precisamos de artesãos, pensou Kaden. Precisamos de soldados com botas pesadas para nos lembrar do que fizemos; para moer este nosso pequeno mundo até transformá­-lo em lama.

    A súbita, inesperada, inegável violência tornara o mapa mais preciso, mais verdadeiro, porém esses homens com espadas de aço não tinham vindo trazer a verdade para o mapa mais detalhado do mundo. Kaden desviou o olhar da destruição exposta abaixo para outro grupo de homens armados surgindo em toda a passarela. Aedolianos. Os homens responsáveis por proteger os governantes de Annur.

    Apesar de seu próprio treinamento, Kaden sentiu o estômago revirar­-se. Alguma coisa obviamente dera errado. Caso contrário, Maut Amut – o Primeiro Escudo da Guarda – não teria ordenado a seus homens que entrassem em uma reunião fechada do conselho. Isso não era um treinamento. Cada soldado carregava metade do próprio peso na armadura brilhante e todos exibiam as espadas desembainhadas enquanto se espalhavam pelos corredores gritando ordens, tomando posições no perímetro, guardando as portas para manter alguém do lado de fora… ou de dentro.

    Metade dos membros do conselho tentava ficar em pé, tropeçando nas vestes compridas, derramando vinho sobre a seda cuidadosamente cortada, gritando perguntas ou chorando de desespero. O restante permanecia sentado imóvel em suas cadeiras, os olhos arregalados, as bocas abertas, enquanto tentava entender a loucura que se desenrolava diante de seus olhos. Kaden os ignorou, mantendo seu olhar treinado nos aedolianos.

    Por trás desses homens portando aço, a lembrança de outros soldados encheu a mente de Kaden: aedolianos abrindo um perverso caminho através de Ashk’lan, assassinando os monges, perseguindo Kaden pelas montanhas. Ele passara meses após seu regresso ao Palácio do Alvorecer revendo os registros dos guardas restantes, vasculhando suas histórias pessoais atrás de qualquer indício de traição, de fidelidade a Adare ou a Ran il Tornja. Toda a guarda fora colocada em liberdade condicional, enquanto centenas de escribas investigavam milhares de histórias e, ao final, o conselho demitiu mais de uma centena deles, antes de readmitir o restante. Kaden lembrou a si mesmo daquelas medidas, mas sentia a tensão em seus ombros do mesmo jeito.

    Veja o mundo, disse a si mesmo, inspirando profundamente e, então, expirando, não o seu sonho do mundo.

    Duas dúzias de aedolianos marcharam sobre a passarela suspensa e, em seguida, cercaram a mesa do conselho.

    Kaden levantou­-se, descartando o próprio medo enquanto o fazia.

    – O que está acontecendo? – Apesar de seus receios, sua voz era firme.

    Maut Amut deu um passo à frente. O movimento furioso da entrada dos aedolianos havia terminado. Ondas rolavam até a costa do mapa, um pequeno tsunami. O sol entrava pelas claraboias acima, quente e silencioso, brincando com as armaduras dos soldados, fazendo suas lâminas desembainhadas cintilarem. Os membros do conselho repentinamente fizeram silêncio, congelados, como estátuas espalhadas nas passarelas, capturados nas diferentes posturas de seu próprio despreparo.

    – Um ataque, Primeiro Orador – Amut respondeu sombriamente, os olhos examinando as paredes, as portas –, dentro do próprio palácio.

    Kaden olhou ao redor da sala.

    – Quando?

    Amut balançou a cabeça.

    – Não estamos certos.

    – Quem?

    O Primeiro Escudo fez uma careta.

    – Alguém rápido. Perigoso.

    – Quão perigoso?

    – Perigoso o suficiente para penetrar no palácio, entrar despercebido na Lança de Intarra, subjugar três dos meus homens, três aedolianos, e, então, desaparecer.


    C A P Í T U L O  2


    Anoite era uma nação estrangeira.

    Adare hui’Malkeenian sempre havia se sentido dessa forma, como se o mundo se transformasse depois do pôr do sol. A sombra suprimia duras arestas, escondia formas, tornava estranhos os aposentos familiares à luz do sol. A escuridão desbotava a cor da seda mais brilhante. O luar tornava prateados água e vidro, deixava cintilantes e frias as substâncias básicas do dia. Mesmo as lâmpadas, como as duas que estavam sobre a mesa à sua frente agora, faziam com que o mundo mudasse e se contorcesse com o movimento da chama capturada. A noite trazia essa transformação inquietante aos espaços mais familiares, e esses cômodos frios, no alto da fortaleza de pedra próxima à fronteira de Aergad, não eram nada familiares. Adare vivera dentro deles quase um ano sem nunca se sentir bem­-vinda ou segura, mesmo durante o dia. A noite a transportava para um lugar ainda mais distante, um lugar duro, estranho e bárbaro.

    Os sons da noite também precisavam ser entendidos. O som de passos de manhã no corredor era normal – criados e funcionários do castelo fazendo seu trabalho. Após a meia­-noite, no entanto, esses mesmos passos pareciam furtivos. Um grito ao meio­-dia não passava de um grito; um grito à noite podia anunciar perigo, desastre. O pátio exterior embaixo da janela de Adare era um caos de atividade durante o dia, mas a essa hora tardia, com os portões há muito trancados, encontrava­-se geralmente silencioso, e, assim, quando ela ouviu o barulho de cascos nas pedras, as ordens curtas levadas pelo vento, largou seu selo de gabinete de forma abrupta, com cuidado para evitar que a tinta encharcasse as páginas, e então, com o coração martelando dentro de si, foi até a janela fechada.

    Um mensageiro à meia­-noite não era o mesmo que um mensageiro ao meio­-dia.

    Adare controlou o medo enquanto abria levemente as persianas e o ar frio do norte deslizou sobre sua pele suada. Um cavaleiro a essa hora poderia significar qualquer coisa – que os urghuls cruzavam o rio Negro, que os urghuls tinham cruzado o rio Negro, que os selvagens de Long Fist incendiavam outra cidade na fronteira, ou que o seu feiticeiro louco, Balendin, transformava o medo do povo de Adare em algum novo e abominável kenning. Um cavaleiro podia significar que ela estava perdendo. Podia significar que ela já havia perdido.

    Reflexivamente, ela olhou primeiro para o rio, o Haag, entalhando seu caminho para o sul logo abaixo dos altos muros da cidade. Adare podia ver os arcos de pedra da única ponte sobre a corrente, mas a noite escondia dela qualquer sinal das sentinelas colocadas lá. Ela respirou fundo, relaxou as mãos no batente. Percebeu que quase havia esperado encontrar os urghuls, a apenas seiscentos metros de distância e cruzando a ponte, prontos para sitiar a cidade.

    Porque você é uma tola, disse a si mesma sombriamente. Se Balendin e os urghuls tivessem aberto caminho pelas legiões de Ran il Tornja, ela ouviria mais do que alguns cavalos sobre as pedras. Em seguida, desviou sua atenção para o pátio abaixo.

    Aergad era uma cidade antiga, tão antiga quanto a própria Annur, e o castelo que ela tomara para si tinha sido a sede ancestral dos reis que governaram as Romsdals do sul muito antes do surgimento de seu império. Tanto o castelo quanto as muralhas da cidade aparentavam a idade que tinham. Embora os construtores tivessem feito bem o seu trabalho, não era necessário defender Aergad havia mais de um século e Adare podia ver lacunas nos topos das muralhas, espaços abertos onde o gelo havia aberto buracos na argamassa, atirando enormes blocos de pedra no rio lá embaixo. Ela ordenara os reparos nas muralhas, mas os pedreiros eram escassos, e il Tornja precisava deles ao leste, onde se encontrava há meses tentando impedir o avanço dos urghuls.

    O luar projetava as formas irregulares da parede sul sobre as pedras ásperas do pátio. O mensageiro estava desmontando nas sombras; Adare podia ver a forma dele, e a de seu cavalo, mas não seu rosto, seu uniforme. Tentou deduzir algo de sua postura, da posição dos ombros, qualquer coisa que pudesse avisá­-la da mensagem que o homem carregava.

    Um choro interrompeu o silêncio da noite, um choro de criança vindo do quarto atrás dela. Fazendo uma careta, Adare afastou­-se do pátio, para onde Sanlitun hui’Malkeenian, o segundo desse nome, retorcia­-se, inquieto em seu pequeno berço de madeira, perturbado pelo ruído dos cascos nas pedras ou pelo ar frio do norte que entrava pela janela aberta. Adare foi até ele rapidamente, esperando que o filho não tivesse de fato acordado, que ela pudesse acalmá­-lo com uma mão macia e algumas palavras, que ele voltasse a adormecer antes de ela precisar enfrentar quaisquer notícias que estavam por vir.

    – Shhh – ela sussurrou. – Está tudo bem, meu filhinho. Shh…

    Às vezes era fácil acalmá­-lo. Nas melhores noites, sussurrando palavras de conforto sem sentido para o filho que se contorcia, Adare sentia­-se como se outra pessoa estivesse falando, uma mulher mais velha, mais lenta, mais segura, alguma outra mãe que não entendia nada de política ou finanças, que se atrapalharia até mesmo com uma simples operação numérica, mas que sabia em seus ossos como acalmar uma criança com cólica. Na maioria das vezes, no entanto, sentia­-se perdida, perplexa com a maternidade, desesperada com seu amor pela criança e aterrorizada com sua incapacidade de acalmá­-la.

    Ela segurava o bebê perto de si, sussurrava repetidamente em seu ouvido, e o corpo dele ainda estremecia por algum tempo. Então, quando Adare pensava que a dor havia passado, quando se afastava para estudar seu rosto, o peito dele se erguia, os soluços forçavam sua pequena boca a se abrir, e as lágrimas corriam mais uma vez.

    O filho tinha os olhos dela. Olhar para eles, enquanto a criança chorava, era como olhar para um lago nas montanhas e encontrar brilhantes brasas cor de ouro avermelhado, ainda acesas abaixo da superfície da água. Adare se perguntou se seus próprios olhos aparentavam o mesmo quando chorava. Parecia que um longo tempo se passara desde que ela havia chorado.

    – Shh, meu filhinho – ela sussurrou, passando a parte de trás dos dedos suavemente sobre a face dele. – Está tudo bem.

    Sanlitun fez uma careta, esticando­-se contra os panos que o envolviam, gritou mais uma vez, e então ficou quieto.

    – Está tudo bem – ela sussurrou novamente.

    Somente quando voltou para a janela, quando olhou para fora mais uma vez e viu que o cavaleiro tinha se movido e estava sob a luz do luar, ela percebeu que se enganara. Não estava tudo bem. Talvez a criança tivesse sabido antes dela quem viera. Talvez não fosse o frio ou o vento que o tivesse acordado em absoluto, mas algum tipo de conhecimento infantil de que seu pai estava perto, seu pai, o Csestriim, o kenarang, general do império cada vez menor de Adare, o assassino do pai dela, possivelmente um inimigo mortal e um de seus únicos aliados. Ran il Tornja estava ali, caminhando a passos largos pelo pátio, deixando que um cavalariço conduzisse um cavalo que parecia meio morto. Ele olhou para cima em direção à sua janela, encontrou os olhos de Adare e a saudou, um movimento casual, quase desdenhoso.

    Essa súbita chegada teria sido bastante estranha durante o dia, mas não era dia. Já passava muito da meia­-noite. Adare fechou a janela, tentou acalmar seu súbito tremor, endireitou as costas e voltou­-se em direção à porta do quarto, deixando o rosto assumir uma expressão neutra antes que ele entrasse.

    ***

    – Você deveria mandar açoitar os homens no portão – il Tornja disse assim que fechou a porta atrás dele. – Ou mandar matá­-los. Eles se asseguraram de que eu era eu mesmo, mas deixaram meus guardas passarem sem dar sequer uma segunda olhada.

    Ele caiu sentado em uma cadeira de madeira, empurrou outra para longe com o calcanhar de uma bota, pôs os pés em cima dela e recostou­-se. A cavalgada noturna que quase matara seu cavalo não parecia ter cansado em nada o kenarang. Um pouco de lama tinha salpicado suas botas. O vento despenteara seu cabelo escuro, mas seu manto de montaria verde e o uniforme bem cortado estavam imaculados. Sua espada polida brilhava no cinto. As gemas incrustradas no punho da espada cintilavam com o brilho de mentiras. Adare olhou nos olhos dele.

    – Será que temos soldados sobrando para começar a executá­-los por pequenas infrações?

    Il Tornja ergueu as sobrancelhas.

    – Eu dificilmente classificaria um lapso na segurança do imperador como uma pequena infração. – Ele balançou a cabeça. – Você deveria colocar meus soldados no portão, não os Filhos da Chama.

    – Você precisa de seus homens para lutar contra os urghuls – Adare salientou –, a menos que pretenda lutar essa guerra sozinho. Os Filhos são guardiões capazes. Eles deixaram seus homens passarem porque o reconheceram. Eles confiam em você.

    – Sanlitun confiava em mim – ele observou. – Eu enfiei uma faca em suas costas.

    O fôlego de Adare parou em sua garganta como um gancho. Sua pele ardeu.

    Meu pai, ela lembrou a si mesma. Ele está falando de meu pai, não de meu filho. Il Tornja havia assassinado o imperador, mas não tinha motivo para fazer mal à criança, seu próprio filho. Ainda assim, o desejo de se virar na cadeira, de ver o bebê dormindo em segurança atrás dela, caiu sobre Adare tão fortemente como se um par de mãos a estivesse agarrando. Ela o empurrou para longe.

    – Sua coleira é mais curta do que quando você matou meu pai – ela respondeu, olhando nos olhos dele.

    Il Tornja sorriu e levantou a mão até a clavícula, como se testasse a corda de chama invisível que Nira colocara em volta de seu pescoço. Adare teria ficado bem mais aliviada se ainda pudesse enxergar a maldita coisa, mas um laço de fogo contorcendo­-se chamaria a atenção de muitos olhos e ela tinha problemas suficientes sem admitir que sua conselheira Mizran era uma feiticeira e seu kenarang, um assassino não confiável – e, além disso, um Csestriim. Nira insistira que o kenning ainda estava no lugar, e ela teria de se contentar com isso.

    – Uma coleira tão leve – observou il Tornja. – Às vezes me esqueço de que ela está aqui.

    – Você não se esquece de nada. Por que está aqui?

    – Além da oportunidade de ver meu imperador, meu filho, e a mãe do meu filho?

    – Sim. Além disso.

    – Você está menos sentimental do que me lembro.

    – Quando sentimentos alimentarem minhas tropas, vou averiguar o assunto. Por que você está aqui?

    Atrás dela, Sanlitun agitou­-se, inquieto, choramingando ao som da voz elevada da mãe. Il Tornja olhou por cima do ombro dela, estudando a criança com algo que poderia ter sido interesse ou divertimento.

    – Ele é saudável?

    Adare assentiu.

    – Ele teve uma tosse há duas semanas, aquele maldito vento vindo de Romsdals, mas está praticamente curado agora.

    – E você ainda o mantém com você, mesmo enquanto trabalha?

    Ela assentiu com a cabeça novamente. Preparada para se defender. Mais uma vez. Nove meses desde que chegara a Aergad, uma exilada em seu próprio império. Seis meses desde o nascimento de Sanlitun. Apenas seis meses, e ainda assim ela se sentia como se não dormisse há um ano, uma vida toda. Apesar do nome, Sanlitun não tinha nada da calma de seu avô, nada de sua quietude. Ou estava com fome, ou estava molhado, vomitando ou irritado, agarrando­-se a ela quando acordado, ou chutando­-a enquanto dormia.

    – Uma ama de leite – il Tornja começou.

    – Eu não preciso de uma ama de leite.

    – Deixar­-se ficar esgotada não faz bem a ninguém – ele disse lentamente. – Nem a você, nem ao nosso filho, e certamente não ao nosso império.

    Meu império.

    Ele balançou a cabeça, o sorriso mordaz.

    – Seu império.

    – As mulheres criam os próprios filhos o tempo todo. Seis crianças. Dez. Acho que posso cuidar de um único bebê.

    – Pastoras criam seis filhos. Mulheres de pescadores criam os filhos. Mulheres cujas preocupações não se estendem além de manter a lareira acesa e as ovelhas alimentadas. Você é o imperador de Annur, Adare. É uma profetisa. Estamos lutando uma guerra em duas frentes de batalha, e estamos perdendo. As mulheres de pescadores têm o luxo de cuidar dos próprios filhos. Você não. – Então il Tornja fez algo com o tom de sua voz, uma mudança no tom ou registro que, vindo de qualquer outra pessoa, poderia indicar um abrandamento. – Ele é meu filho também…

    – Não fale comigo – ela resmungou, sentando­-se na cadeira, colocando mais ar entre eles – sobre seus filhos. Sei muito bem como você cuidou deles no passado.

    Se Adare esperava abrir uma brecha na armadura de il Tornja, derrubar­-lhe a máscara, teria ficado decepcionada. Ele conferiu ao próprio rosto uma expressão com um sorriso arrependido e sacudiu a cabeça novamente.

    – Isso foi há muito tempo, Adare. Muitos milhares de anos. Foi um erro, que tenho trabalhado muito para corrigir. – Ele apontou para Sanlitun, com um esticar da palma da mão ao mesmo tempo paternal e impessoal. – Ele não ficará mais forte ou mais sábio se você o mimar. Pode, inclusive, não chegar a crescer, se você negligenciar tudo o mais.

    Não estou negligenciando tudo o mais – ela retrucou. – Você me vê dormir? Reclamar sobre bobagens sem fim? Estou em minha mesa todas as manhãs antes do amanhecer e, como pode ver, continuo aqui. – Adare apontou para os papéis. – Quando eu colocar o meu selo nesses tratados, nossos homens vão comer por mais uma temporada. E, quando eu acabar com esses, aqui está uma pilha de petições de Raalte para examinar. Eu vivo nesta sala, e, quando não me encontro aqui, estou com Lehav revisando nossa estratégia no sul, ou inspecionando as tropas, ou escrevendo cartas.

    – E, felizmente para todos nós – il Tornja acrescentou suavemente –, você tem o cérebro de seu pai. Mesmo privada de sono, mesmo segurando uma criança junto ao seio, você pensa melhor do que a maioria dos imperadores annurianos que conheci.

    Ela ignorou o elogio. O louvor de il Tornja parecia tão genuíno quanto o resto dele, e, como tal, era falso, ponderado até o último fio de cabelo, medido e analisado, distribuído apenas onde ele achava necessário, onde seria útil. O ponto da questão, o peso da declaração permanecia: ela estava fazendo seu trabalho.

    – Aí está. Vou criar Sanlitun e…

    O kenarang a interrompeu.

    – Não precisamos que você seja melhor do que a maioria de seus antepassados, Adare. – Ele fez uma pausa, olhando para ela com seu olhar de general. Não o seu verdadeiro olhar, graças a Intarra, não o olhar negro e insondável de contemplação Csestriim que ela tinha visto apenas uma vez acima do campo de batalha de Andt­-Kyl, mas o outro, o que ele, sem dúvida, estudara por gerações, um olhar duro, mas humano. – Precisamos que você seja melhor do que todos eles. Para isso, precisa de descanso. Você deve encarregar alguém do cuidado da criança, pelo menos ocasionalmente.

    – Farei o que precisa ser feito – Adare rosnou, a flor nauseante da dúvida florescendo dentro dela, mesmo enquanto falava.

    A verdade é que os últimos seis meses tinham sido os mais brutais de sua vida, os dias cheios de decisões impossíveis, as noites um tormento interminável dos gritos de Sanlitun, seu próprio manusear desajeitado dos cobertores, levando a criança para a própria cama, murmurando para ele, orando a Intarra e Bedisa que o filho pegasse no sono mais uma vez. Na maioria das vezes, ele pegava o mamilo, sugava avidamente por alguns instantes, e então a empurrava para longe e começava a berrar.

    Adare tinha servas, é claro, uma dúzia de mulheres sentadas do lado de fora de seu quarto que viriam correndo no momento em que ela as chamasse, os braços cheios de panos secos para o bebê ou roupa de cama limpa. Ela aceitava esse tipo de ajuda, mas enviar o filho para longe, treinando­-o para sugar o seio de outra mulher… isso ela não podia pedir a ele. Ou a si mesma. Mesmo quando queria chorar de exaustão, o caos da privação do sono transbordando em seu sangue, Adare olhava para a criança, a bochecha rechonchuda pressionada contra o seio inchado, e sabia, como sabia qualquer grande verdade sobre o mundo, que não podia enviá­-lo para longe dela.

    Ela tinha visto a mãe morrer, tossindo os pulmões em pedaços sobre a seda macia. Havia ficado ao lado do pai quando ele foi colocado em seu túmulo, as vestes imperiais escondendo­-lhe as feridas. Ela mesma matara um de seus irmãos, e estava presa em uma guerra desesperada, cruel, contra o outro. Sua família reduzia­-se àquela criança. Ela olhou para o berço onde o bebê dormia, observou seu pequeno peito subir e descer, então se virou para il Tornja.

    – Por que você está aqui? – ela perguntou pela terceira vez, a voz prestes a arrebentar de cansaço. – Duvido que tenha deixado a frente de batalha, a luta, para discutir os detalhes da minha capacidade como mãe.

    Il Tornja assentiu, juntou os dedos, estudou­-a por um momento, depois balançou a cabeça de novo.

    – Nós temos uma oportunidade – ele disse finalmente.

    Adare abriu as mãos.

    – Se eu não tenho tempo para criar meu filho, certamente não tenho tempo para seus malditos enigmas.

    – A república ofereceu­-se para conversar com você.

    Adare olhou­-o fixamente.

    – Meus homens interceptaram o mensageiro; o homem está esperando lá embaixo. Eu queria falar com você antes que o visse.

    Devagar, Adare disse a si mesma. Devagar. Ela estudou o rosto de il Tornja, mas não conseguiu enxergar nada lá.

    – Um mensageiro enviado para quem?

    – Para você.

    – E ainda assim os seus homens o interceptaram. Dificilmente um modelo de cooperação confiável.

    Il Tornja acenou com a mão, em sinal de desdém.

    – Interceptado. Retido. Escoltado. Eles o encontraram…

    – E o trouxeram até você – Adare terminou a frase, tentando manter a própria raiva sob controle –, em vez de trazê­-lo a mim. E o que é que seus homens fazem no sul? Os Filhos estão cuidando daquele local.

    – Olhar fixamente em uma direção é uma boa maneira de morrer, Adare. Embora eu não duvide da devoção dos Filhos tanto à sua deusa quanto à sua profetisa – ele inclinou a cabeça levemente em direção a ela –, aprendi há muito tempo a não depender de unidades fora do meu comando. Meus homens encontraram o mensageiro, vieram até mim, e, quando eu soube da mensagem, vim diretamente até você. – Ele balançou a cabeça. – Nem tudo é uma conspiração, Adare.

    – Você vai me perdoar o fato de isso não parecer verdade. – Ela se inclinou para trás na cadeira, passou as mãos pelos cabelos, forçou­-se a se concentrar no cerne da questão. – Certo. Um mensageiro. Da república.

    – Uma oferta de negociação. Para trazer a paz. Pelo que entendi, eles estão começando a entender que o governo do povo não está funcionando.

    – Como são perspicazes. Levaram apenas nove meses, a perda de dois atrepies, a morte de dezenas de milhares de pessoas e o espectro da fome generalizada para notar.

    – Eles querem você de volta. Um imperador no Trono de Pedra Bruta novamente. Desejam superar as divergências.

    Adare estreitou os olhos, forçou­-se a respirar de maneira uniforme, para pensar na situação antes de falar. Embora fosse tentador, muito tentador, era também impossível.

    – De maneira nenhuma – ela disse, sacudindo a cabeça. – De jeito nenhum 45 dos aristocratas mais ricos e corruptos de Annur irão desistir do recém­-descoberto poder. Mesmo que a cidade estivesse queimando em volta deles, mesmo que o palácio estivesse em chamas, eles não mudariam de atitude. Eles me odeiam demais.

    – Bem… – il Tornja falou com um encolher pesaroso de ombros. – Eles não querem desistir do poder. Não exatamente. Querem que você volte como uma espécie de títere, mas desejam continuar fazendo as leis, decidindo a política. Eles lhe mandam latir, você ladra obsequiosamente, esse tipo de coisa…

    Adare bateu a palma da mão sobre a mesa, com mais violência do que pretendia.

    Sanlitun se contorceu no berço, e ela fez uma pausa, esperando que sua respiração voltasse a ser lenta e superficial antes de continuar a falar.

    – As malditas políticas deles – ela sussurrou – estão destruindo Annur, estripando o império de dentro para fora. As políticas deles estão matando pessoas. E agora querem que eu seja cúmplice da merda deles?

    – Até onde entendo, eles querem que você seja mais do que cúmplice. Querem que você fique no alto da pilha e sorria.

    – Não farei isso – ela declarou, balançando a cabeça.

    Il Tornja levantou uma sobrancelha.

    – Houve um tempo, não tantos meses atrás, quando você pensou que poderia haver espaço para negociar com o conselho, quando você enviava mensageiros até eles.

    – Mensageiros que eles aprisionaram. Bons homens que podem estar mortos agora, pelo que sei. Eu costumava pensar que era possível superar as divergências. Não mais. É tarde demais.

    Il Tornja franziu a testa, como se estivesse provando uma comida levemente estragada.

    Tarde demais é uma frase que nunca deveria passar pelos lábios de um imperador.

    – Acho que é melhor que um imperador enfrente a verdade em vez de fugir dela.

    – Certamente! Enfrente as duras verdades! Basta fazer isso em particular. Você não quer plantar o medo no coração daqueles que a seguem.

    – Eu não seria capaz de plantar o medo em seu coração, mesmo se eu o semeasse com uma pá.

    – Não estou falando de mim.

    – Você é o único aqui.

    – Você precisa praticar a expressão em seu rosto, Adare – ele disse. – O tempo todo. – Ela abriu a boca para protestar, mas ele levantou as mãos, impedindo­-a. – Eu não vim aqui para brigar. Vim aqui porque essa é uma oportunidade.

    – Uma oportunidade de quê? De desistir de tudo pelo que estive lutando nos últimos nove meses? De permitir aos idiotas que destruam o que resta de Annur?

    – É Annur que estou tentando salvar – il Tornja falou, repentinamente sério. – Preciso que você volte. Para superar as divergências entre o império e a república. Eu não lhe pediria se não fosse necessário.

    Adare franziu a testa.

    – Você está perdendo – ela concluiu finalmente.

    O kenarang assentiu, então deu de ombros.

    – Mesmo um gênio tem limites. Meus exércitos estão se esvaindo, como a fumaça de ontem. Os urghuls são mais numerosos do que nós, eles lutam lado a lado com um feiticeiro de emoções, e são conduzidos por um deus.

    – Você ainda acredita que Long Fist é Meshkent – Adare falou, tentando pela centésima vez entender a ideia. Falhando pela centésima vez.

    – Estou mais convencido do que nunca.

    – Como você sabe? Explique.

    – Você não entenderia.

    Adare controlou­-se à observação.

    – Tente.

    O kenarang estendeu as mãos.

    – A… forma de seus ataques. O ritmo deles. – Ele se levantou, indo até o mapa. – Long Fist nos atacou aqui e aqui, exatamente ao mesmo tempo. Então, meio dia mais tarde, aqui, aqui e aqui. Durante todo esse tempo, outro grupo atacava a oeste, para chegar ao Vau de Irfeth exatamente quando o primeiro grupo havia recuado.

    Adare olhou para o mapa, para as várias posições que il Tornja indicara. Os eventos eram claros o suficiente, mas o padrão – se é que havia mesmo um padrão – não significava nada. O homem acenou com a mão de forma conciliadora.

    – A mente humana não foi feita para isso.

    Ela olhou para os rios e as montanhas, as florestas, as pequenas linhas que indicavam exércitos e posições, forçando­-se a encontrar algum padrão nos ataques.

    – Ele fez algo inteligente? – ela perguntou por fim.

    O general deu de ombros.

    – Não particularmente.

    Adare reprimiu um rosnado.

    – Então o quê?

    – Ele fez algo… inumano.

    – Os seres humanos são todos diferentes – Adare declarou, balançando a cabeça. – Não há uma linha de ataque humana. Uma centena de generais tomaria uma centena de decisões diferentes.

    – Não. Eles não tomariam. – Ele sorriu, um sorriso largo e brilhante. – Às vezes você se esquece, Adare, de que eu lutei contra milhares de generais humanos. Dois mil e oito, se quiser saber o número exato. Vocês gostam de pensar que são únicos, que cada homem e mulher é diferente dos anteriores, mas estão errados. Em todas essas batalhas, todas essas guerras, vi as mesmas coisas, outra e outra vez, o mesmo punhado de pequenos truques, o mesmo conjunto de estratagemas e táticas desajeitados utilizados outra e outra vez com pequenas e irrelevantes variações. Eu conheço o delineamento de um ataque humano, e esse não é um deles. Long Fist é Meshkent. Pode acreditar no que digo. Ele quer espalhar seu culto sangrento em Vash e Eridroa, e, muito embora seja difícil admiti­-lo, ele está ganhando.

    – Eu pensei que você havia dito que ele não era brilhante.

    – Long Fist não precisa ser, quando o exército dele supera o meu em vinte por um. Preciso de mais homens, Adare. Preciso dos Filhos da Chama. Além de uma frente de batalha segura ao sul. Pelo menos até que a guerra acabe. – Ele exibiu seu sorriso lupino.

    Adare examinou o general. O kenarang parecia faminto. Seus olhos estavam fixos nela, os lábios entreabertos apenas o suficiente para mostrar a sombra dos dentes. Ele parecia pronto para sorrir ou rosnar, pronto para morder. De todas as suas expressões humanas cuidadosamente cultivadas, essa era a mais fácil de acreditar. Debaixo de todos os gracejos casuais e fivelas brilhantes, Ran il Tornja era um predador, um assassino, o maior general que Annur já conhecera, e o rosto desse assassino espalhado sobre suas feições parecia certo, verdadeiro.

    Nada do que ele mostra a você é a verdade, Adare lembrou a si mesma.

    O general havia arrancado uma máscara, isso era tudo. A fome e a selvageria eram apenas mais uma face sob todas as outras, uma atuação melhor, mais sutil, na qual ela queria acreditar. Adare podia entender os atos brutais e a luta pelo poder. Ela podia controlá­-los. A verdade de il Tornja, no entanto, não era um simples grunhido animal. Era algo mais, algo mais antigo e pior, à espera sob todas aquelas faces, algo terrível e inumano, incompreensível como o espaço entre a luz das estrelas.

    O medo rastejou sobre sua pele, fazendo os finos pelos em seu braço levantarem­-se. Com esforço, ela suprimiu um tremor e forçou­-se a olhá­-lo nos olhos.

    – E quando isso acabar? – ela perguntou.

    – Quando Meshkent for derrotado e os urghuls forem rechaçados… – Ele exibiu um sorriso mais amplo, empurrando sua cadeira para trás até que ela estivesse equilibrada sobre duas pernas, entre a inclinação e a queda. – Bem, então poderemos avaliar… como devemos dizê­-lo? A viabilidade em longo prazo da experiência republicana…

    – E quando você diz avaliar – Adare disse categoricamente –, você quer dizer matar todos que não me querem de volta.

    – Bem… – ele estendeu as mãos. – Poderíamos matar alguns de cada vez até que os outros se lembrassem da glória dourada do Império Malkeeniano.

    Adare balançou a cabeça.

    – Parece errado. Os grandes imperadores de Annur, aqueles que presidiram um império pacífico, puniam a traição e recompensavam aqueles que permaneciam leais. Eu li as Crônicas. Agora você quer que eu feche os olhos à traição e à estupidez desse maldito conselho?

    O kenarang sorriu.

    – Eu estou nas Crônicas, Adare. Escrevi duas delas. Os grandes imperadores de Annur foram grandes porque fizeram o que era necessário fazer. O que quer que fosse preciso fazer. Claro, você estará colocando a própria vida em risco…

    Adare acenou com a mão, desdenhosamente. Ele estava bastante certo sobre os riscos. Seria fácil chegar a Annur, apresentar­-se ao conselho, e então ser levada imediatamente à sua própria execução. O pensamento fez suas palmas transpirarem, mas não havia razão para deter­-se nele. Ela havia visitado a frente de batalha, ido até aldeias logo depois dos ataques dos urghuls, visto os corpos mutilados; os cadáveres enfiados em estacas; os restos carbonizados de homens e mulheres e crianças, alguns ainda esparramados sobre altares improvisados, outros atirados em pilhas casuais – os restos horripilantes do que os urghuls chamavam de culto.

    Annur – imperial, republicano, isso pouco importava –, todo Annur estava oscilando à beira de um abismo de sangue, e ela era o imperador. Ela tomara esse título, exigira­-o, não para que pudesse se sentar sobre um trono desconfortável e receber a adulação de cortesãos, mas por acreditar que podia fazer um bom trabalho, um trabalho certamente melhor do que o homem que assassinara seu pai. Ela havia tomado o título porque achava que podia tornar a vida melhor para os milhões dentro do império, protegê­-los, trazer paz e prosperidade.

    E, até agora, ela havia falhado.

    Não importava que Kaden tivesse feito uma confusão ainda pior das coisas. Não importava que ela fosse o primeiro imperador em séculos a enfrentar uma invasão bárbara. Não importava que mesmo seu pai tivesse falhado em prever o caos que os envolvia. Adare tomara o título; era seu trabalho acertar as coisas, consertar as falhas que dividiam Annur. O conselho de Kaden poderia arrancar todos os seus membros se ela voltasse, mas também poderia não o fazer. Se Adare voltasse, havia uma chance – e a chance de salvar Annur, de salvar o povo de Annur, de fazer recuar os bárbaros, e restaurar um pouco de paz, de ordem, valia a possibilidade de ter sua própria cabeça dessangrada decorando uma estaca.

    – Há algo mais – il Tornja acrescentou. – Algo que você vai descobrir quando chegar à cidade. – Ele fez uma pausa. – Seu irmão fez um amigo.

    – Nós fazemos isso – respondeu Adare. – Humanos. Nós nos apegamos, desenvolvemos sentimentos pelas pessoas, esse tipo de coisa.

    – Se ele tivesse feito amizade com um humano, eu não estaria preocupado. O terceiro representante annuriano do conselho, o homem que atende pelo nome de Kiel, ele não é um homem. Ele é como eu.

    Adare olhou para ele, estupefata.

    – Kaden tem um Csestriim?

    Il Tornja riu.

    – Kiel não é um cavalo ou um cão de caça, Adare. Eu o conheço há milênios, e posso assegurar­-lhe, se alguém tem alguma pessoa, é Kiel que tem seu irmão, que possuiu a mente dele e envenenou sua vontade.

    – Por que você não me disse? – Adare retrucou.

    – Só agora percebi a verdade. Quando não reconheci o nome do terceiro delegado annuriano, pedi um quadro e uma descrição. Infelizmente, o tolo responsável enviou de volta um pergaminho lindamente desenhado a tinta mostrando a pessoa errada, um dos delegados Kreshkan, é claro. Só descobri o erro há pouco tempo.

    Adare se esforçou para entender a revelação. Il Tornja era uma arma, um instrumento de destruição. Ela lhe colocara uma coleira e o dominara, mas, ainda assim, temia que tivesse esquecido alguma coisa, que um dia daria um puxão na coleira apenas para descobrir que ela estava terrivelmente frouxa. Ao saber que havia outro Csestriim no mundo, um aliado do irmão dela, um sobre quem ela não tinha controle algum… seu estômago revirou.

    – Foi Kiel quem redigiu a Constituição republicana – ela observou.

    Il Tornja assentiu.

    – Ele nunca foi um apreciador de seu império. Na verdade, há centenas de anos ele trabalha para destruí­-lo. Cada golpe importante, cada trama contra o reinado malkeeniano, ele estava por trás deles.

    – Exceto pelo seu, é claro. Exceto pelo seu golpe quando matou meu pai.

    Ele sorriu.

    – Sim. Exceto por esse.

    Adare estudou­-o, esperando novamente enxergar algo naqueles olhos indecifráveis, ver o brilho de uma mentira ou a dura luz da verdade. Como de costume, havia muito a ser visto. Como de costume, ela não podia confiar em nada do que via.

    – Você está preocupado com o fato de Kaden saber quem você é – ela afirmou.

    – Tenho certeza de que Kaden sabe quem eu sou. Kiel disse a ele.

    Atrás dela, Sanlitun retorceu­-se no berço e gritou. Por um momento, Adare teve uma visão horrível dos urghuls invadindo a ponte, os pálidos homens a cavalo destruindo as paredes do castelo, entrando em seu quarto, agarrando a criança…

    Ela levantou­-se abruptamente, virou­-se para que il Tornja não visse seu rosto, e atravessou a sala até o berço. Observou o filho por um momento, observou­-o respirar, então o levantou suavemente nos braços. Quando teve certeza de que a expressão de seu rosto estava sob controle, voltou­-se para o kenarang.

    – Eu vou – ela declarou, cansada. – Tentarei superar as divergências. Não posso prometer mais do que isso.

    Il Tornja sorriu, os dentes brilhantes à luz da lâmpada.

    – Primeiro as superamos. Mais tarde, talvez, possamos encontrar soluções mais… permanentes.


    C A P Í T U L O  3


    ­-E les queriam você – disse Maut Amut. – Os atacantes queriam você.

    Kaden fez uma pausa em sua escalada, encostou­-se ao corrimão enquanto recuperava o fôlego e balançou a cabeça.

    – Você não pode ter certeza disso.

    Amut continuou subindo dois degraus de cada vez, indiferente ao peso reluzente do aço aedoliano. Alcançou o patamar seguinte antes de perceber que Kaden ficara para trás.

    – Minhas desculpas, Primeiro Orador – ele pediu, inclinando a cabeça. – Minha vergonha me torna impaciente.

    O guarda fixou os olhos na escada, colocou uma das mãos sobre o pomo da espada e esperou. Mesmo quando estava mais animado, o Primeiro Escudo da Guarda Aedoliana era um homem duro, marmóreo, todo feito de ângulos retos e decoro. Parado lá, imóvel, esperando Kaden recuperar sua força, ele parecia algo que fora esculpido, ou martelado na bigorna.

    Kaden balançou a cabeça novamente.

    – Você não precisa pedir desculpas por eu ter ficado fraco.

    Amut não se moveu.

    – A Lança de Intarra é uma subida difícil, mesmo para os homens duros.

    – São apenas trinta andares até meu gabinete – Kaden respondeu, forçando as pernas a se moverem mais uma vez. Ele subia quase todos os dias, mas sempre em um ritmo vagaroso. Cada vez mais vagaroso, ele agora percebeu, à medida que os meses se passavam. Amut, por outro lado, havia andado rápido desde que eles deixaram a sala do conselho, e os músculos das pernas de Kaden tinham começado a queimar por volta do décimo andar. Ele afastou da mente, por um momento, o fato desagradável de que planejava subir muito além do trigésimo andar da Lança.

    – Quando eu vivia entre os monges – ele disse, parando novamente quando chegou ao andar em que Amut estava –, uma subida como essa teria sido um descanso, uma pausa.

    – Você é o Primeiro Orador da República. Tem coisas mais importantes para fazer do que se esfalfar nas escadas.

    – Você é o Primeiro Escudo da Guarda Aedoliana – Kaden retrucou – e encontra tempo para subir essas escadas todas as manhãs. – Ele tinha visto o homem treinar algumas vezes, sempre bem antes do amanhecer, sempre com a armadura completa e um saco de areia sobre os ombros, subindo os degraus, o rosto uma máscara de determinação.

    – Eu subo as escadas todas as manhãs – Amut respondeu sombriamente – e, mesmo assim, falhei em meu dever.

    Kaden virou­-se das escadas acima a fim de olhar para o guarda. Sua voz soou dura.

    – Chega de sentir­-se envergonhado. Estou vivo. O conselho está seguro. Essa autorrepreensão é uma indulgência que não esclarecerá o que aconteceu aqui.

    Amut olhou para ele, cerrou os dentes e assentiu.

    – Como você quiser, Primeiro Orador.

    – Fale enquanto subimos – disse Kaden. Ainda precisavam subir quinze andares antes de chegarem ao gabinete. – Mais devagar, dessa vez. O que aconteceu aqui em cima?

    Com a mão ainda sobre a espada, Amut começou a subir novamente. Ele falou sem virar a cabeça, como se estivesse se dirigindo à escadaria vazia diante dele.

    – Alguém se infiltrou no palácio.

    – Isso não é difícil – observou Kaden. – Deve haver cerca de mil pessoas que atravessam os portões todos os dias, servos, mensageiros, comerciantes, carroceiros…

    – Então eles conseguiram chegar até a Lança.

    Kaden tentou resolver aquele quebra­-cabeça. Havia apenas uma entrada para a Lança de Intarra, uma entrada alta em forma de arco queimada ou esculpida ou extraída do vidro metálico não arranhável das paredes da torre. Aedolianos a vigiavam dia e noite.

    – Seus homens lá embaixo…

    – A Lança é quase uma fortaleza impenetrável. As questões imperiais… – Amut balançou a cabeça, e então se corrigiu. – As questões republicanas são tratadas aqui. Pessoas entram e saem. Meus homens na porta têm a tarefa de impedir as ameaças óbvias, mas não podem parar todos, não sem causar perturbações incalculáveis.

    Kaden assentiu, compreendendo o esboço do problema.

    A Lança de Intarra era antiga, mais velha do que a memória humana, ainda mais antiga do que os mais veneráveis registros Csestriim. Os arquitetos do Palácio do Alvorecer haviam construído sua fortaleza em torno dela sem saber quem construíra a torre em si, nem como, nem por quê. Kaden tinha lembranças remotas da infância, de sua irmã lendo um tomo após o outro explorando o mistério, códice após códice, cada um com uma teoria, um argumento, algo que pareciam evidências. Às vezes, Adare, Sanlitun finalmente dissera a ela, você deve aceitar que há limites para o conhecimento. É possível que nunca saibamos a verdadeira história da Lança.

    E o tempo todo, é claro, ele tinha sabido.

    – Eu contei a seu pai sobre a finalidade da Lança – Kiel tinha dito a Kaden meses antes, alguns dias depois que eles haviam recuperado o controle do Palácio do Alvorecer –, assim como vou lhe contar agora.

    Os dois – o Primeiro Orador da inexperiente República Annuriana e o historiador Csestriim imortal – estavam sentados de pernas cruzadas à sombra de um salgueiro­-de­-sangue, à beira de um pequeno lago no Jardim da Viúva. Uma brisa enrugava a superfície da água marrom­-esverdeada; a luz piscava nas pequenas ondas. Os ramos pendentes do salgueiro esparramavam sombras. Kaden esperou.

    – A torre é – o historiador continuou –, lá no seu topo, um altar, um espaço sagrado, um lugar onde este mundo toca o dos deuses.

    Kaden balançou a cabeça.

    – Eu já estive no topo da torre uma dúzia de vezes. Há ar, nuvens, nada mais.

    Kiel apontou para um inseto estreito caminhando na superfície da água. A água do lago fazia covinhas sob o escasso peso da criatura. O bicho contraía as pernas finas como cílios, deslizando das trevas à luz e, então, de volta às trevas.

    – Para o inseto andarilho – ele disse –, a água é inquebrável. Ele nunca vai perfurar a superfície. Nunca conhecerá a verdade.

    – Verdade?

    – Que há outro mundo, vasto, incompreensível, deslizando por baixo da superfície do mundo que ele conhece. Sua mente não foi construída para entender essa verdade. Profundidade não tem significado para ele. Molhado não significa nada. Na maioria das vezes, quando ele olha para a água, vê as árvores refletidas de volta, ou o sol, ou o céu. Ele não possui qualquer conhecimento sobre o peso da lagoa, a forma como ela pressiona aquilo que desliza por baixo daquela superfície.

    O inseto se moveu através do reflexo da Lança de Intarra.

    – O reflexo da torre não é a torre – Kiel continuou, e então se afastou do lago e do inseto sobre a água. Kaden seguiu seu olhar. Durante muito tempo, os dois estudaram o mistério brilhante no coração do Palácio do Alvorecer. – Essa torre também – Kiel disse finalmente, apontando para a lança brilhante ao sol, dividindo o céu acima deles – é apenas um reflexo.

    Kaden meneou a cabeça.

    – Um reflexo de quê?

    – Do mundo sob o nosso mundo. Ou acima dele. Ao lado dele. Preposições não foram construídas para carregar essa verdade. A linguagem é uma ferramenta, como um martelo ou um machado. Há tarefas para as quais ela é pouco adequada.

    Kaden voltou­-se para a água. O inseto nela havia desaparecido.

    – E os deuses podem passar sob a superfície dentro da torre?

    Kiel assentiu.

    – Nós aprendemos isso tarde demais na longa guerra contra o seu povo. Dois dos nossos guerreiros depararam com o ritual, mas, quando chegaram ao topo da torre, os deuses já tinham partido. Apenas as carcaças humanas permaneceram.

    – Os recipientes humanos dos jovens deuses – Kaden concluiu depois de um momento de reflexão.

    Kiel assentiu.

    – Como? – Kaden questionou.

    – O obviate. O ritual exigido por Ciena quando Triste colocou a faca no próprio peito.

    Kaden franziu a testa.

    – Como ele funciona?

    – Isso o meu povo foi incapaz de descobrir – o historiador respondeu. – Tudo que sabemos é que a torre é um portal, mas parece que apenas os deuses possuem as chaves.

    Um portal para os deuses, Kaden pensou sombriamente, enquanto subia as escadas atrás de Maut Amut, a própria respiração quente enroscando­-se em seu peito. Não havia nada que provasse que quem quer que tivesse invadido a Lança mais cedo naquele dia conhecesse a verdade. Por outro lado, não existia nada que provasse o contrário.

    Cuidadosa e deliberadamente, Kaden abandonou aquele padrão de pensamento. Ele podia ouvir Scial Nin falando, a voz calma e tranquila do velho abade: Considere a tarefa em mãos, Kaden. Quanto mais você tentar ver, menos vai notar.

    – Os atacantes podem ter se disfarçado como escravos ou ministros – Amut dizia. – Diplomatas visitantes, qualquer coisa…

    Fazia sentido. A maior parte da Lança encontrava­-se vazia – uma casca reluzente inquebrável –, mas os primeiros imperadores annurianos tinham construído dentro dessa casca, erguendo trinta andares de madeira – trinta andares dentro de uma torre que poderia ter acomodado dez vezes esse número –, antes de desistir, deixando os milhares de metros acima deles vazios e ressonantes. Os mais baixos daqueles níveis humanos foram entregues às questões mais triviais: gabinetes ministeriais e câmaras de audiência, uma grande sala de jantar circular com vista para todo o palácio. Três andares inteiros eram dedicados a suítes para dignitários visitantes, homens e mulheres que voltariam para casa e se orgulhariam das noites passadas na estrutura mais alta do mundo, uma torre certamente construída pelos deuses. E depois, claro, havia todo o aparato necessário de serviço e os cozinheiros, escravos e servos que tal serviço requeria.

    Talvez Amut tivesse minimizado a importância do caso – havia constante movimento dentro e fora da Lança, e não era possível os aedolianos revistarem todos em todos os andares. Os atacantes, no entanto, não estavam rondando as cozinhas. De alguma forma, eles tinham chegado até o trigésimo andar, um lugar que deveria ser seguro.

    – O que aconteceu no meu gabinete? – perguntou Kaden.

    A voz de Amut estava tensa quando ele respondeu.

    – Eles atacaram os três homens que coloquei de guarda lá.

    Kaden olhou para o Primeiro Escudo.

    – Eles os mataram?

    Amut sacudiu a cabeça bruscamente.

    – Incapacitaram. Eles estavam inconscientes, mas ilesos.

    – Quem – Kaden questionou, andando mais devagar nas escadas – conseguiria passar por três aedolianos em seu posto?

    – Não sei – respondeu Amut, a mandíbula rígida, como se tentasse evitar que as palavras saíssem de sua boca. – Isso é o que pretendo descobrir.

    – Estou começando a ver – disse Kaden, olhando para as escadas atrás deles – por que você acha que eles são perigosos.

    Quando eles finalmente chegaram ao gabinete, o local estava cheio de aedolianos. Kaden olhou pela porta. Os guardas pareciam fazer a limpeza, principalmente colocando códices de volta nas prateleiras, enrolando mapas, desenrolando o maciço tapete Si’ite.

    – É seguro? – Kaden perguntou.

    Ele percebeu que os ombros e as costas estavam tensos, como se esperasse a faca de algum assassino na base de seu pescoço, alguma armadilha fechando­-se em torno dos tornozelos. Kaden demorou um momento para aliviar a tensão.

    Veja o fato, e não o medo.

    O gabinete era o mesmo de sempre – um enorme cômodo semicircular, preenchendo metade do andar. A parede curva de vidro metálico oferecia uma vista incomparável de Annur e, em grande parte, Sanlitun não fizera nada para obscurecer essa vista. Estantes alinhavam­-se na parede interior e mesas enormes ocupavam o centro do espaço, mas, ao longo do arco suave daquela parede inquebrável, não havia quase nada: apenas uma mesa com duas cadeiras e um antigo tabuleiro de ko, um pedestal simples segurando um fóssil e um pinheiro­-negro anão em um vaso, o tronco murcho e retorcido.

    – Fiz meus homens inspecionarem o local dúzias de vezes – disse Amut, seguindo­-o para dentro do cômodo enquanto os aedolianos saíam silenciosamente em fila. – Inspecionei o local à procura de todas as armadilhas que conheço, então os cães ficaram aqui a tarde toda procurando por venenos. Verificamos cada gaveta, pergaminho e códice à procura de explosivos. – Ele balançou a cabeça. – Não há nada. Está limpo.

    – Limpo demais.

    Kaden voltou­-se ao ouvir a voz e encontrou Kiel em pé ao lado de uma estante afastada, correndo um dedo sobre a moldura de madeira.

    – Em sua busca por armadilhas, você eliminou qualquer sinal dos intrusos.

    Os dedos de Amut apertaram o pomo de sua espada.

    – Não havia sinal algum.

    – Eles foram bons. Mais do que bons.

    Kiel considerou o aedoliano por um momento, depois assentiu. Não havia preocupação em seu rosto, apenas curiosidade. Fora assim mesmo no Coração Morto, quando o historiador ainda era prisioneiro nas profundezas de pedra de uma fortaleza esquecida por homens loucos empenhados em exterminar os últimos membros de sua espécie. Kiel tinha aprendido a fingir emoção bem o suficiente, mas, na maioria das vezes, ele não se preocupava. As pessoas o consideravam um gênio excêntrico, mas Annur estava repleta de excêntricos e gênios.

    Kaden observou o historiador quando ele atravessou a sala, o passo marcado por uma ligeira claudicação, onde algo quebrado dentro dele havia cicatrizado de forma imperfeita. Kiel caminhava pelo mundo há milênios, mas seu rosto, sóbrio e com poucas rugas, poderia ter pertencido a um homem em sua quarta ou quinta década. Em algum momento, ele precisaria abandonar o conselho e o palácio, provavelmente teria de deixar Annur, antes que alguém percebesse que sua aparência nunca mudava, nunca envelhecia.

    Se não estivermos todos mortos antes que isso aconteça, Kaden emendou em silêncio.

    – Então, por que eles vieram? – perguntou o historiador.

    – Roubo – Amut respondeu. – Tem de ser.

    Kaden ergueu as sobrancelhas.

    – Há algo faltando?

    – Eu não saberia dizer, Primeiro Orador. Aedolianos são guardas. Ficamos do lado de fora da porta. Agora que temos a certeza de que o gabinete é seguro, eu esperava que você lançasse alguma luz sobre o que estava dentro. Há algo faltando?

    – Tudo bem – respondeu Kaden. Em seguida, foi até o meio da sala e virou­-se em um círculo lento. – Parece seguro o suficiente. Nada me matou ainda.

    – É o cômodo mais seguro do Palácio do Alvorecer agora – declarou Amut. – Eu apostaria minha vida nisso.

    Kaden balançou a cabeça.

    – E quão seguro – ele perguntou em voz baixa – é o Palácio do Alvorecer?

    ***

    Kaden se voltou para Kiel mais uma vez apenas quando Maut Amut deixou o quarto.

    – O que você acha?

    O Csestriim considerou a porta fechada feita de madeira de lenho­-de­-sangue.

    – Foi observando homens como esse aedoliano que aprendi o significado de sua palavra humana orgulho.

    – Eu me referi ao gabinete. Você acha que Amut estava certo? Que foi tudo algum tipo de roubo elaborado?

    O historiador balançou a cabeça.

    – É impossível dizer. Os guardas mexeram em tudo.

    Kaden assentiu. Ele visitava o gabinete quase todo dia, poderia, se pensasse por um momento, obter uma imagem razoável do cômodo semicircular, mas nunca havia se preocupado com um saama’an formal. As lombadas dos códices em sua memória eram nebulosas, o arranjo dos pergaminhos, imperfeito. Ainda assim, seria um lugar decente para começar se os aedolianos não tivessem estado nos aposentos durante a maior parte da manhã. Kaden considerou a imagem mental por alguns batimentos cardíacos, e então a deixou ir, concentrando­-se no cômodo em si.

    O sol estava se pondo, caindo abaixo do céu ocidental até ficar pendurado logo acima dos telhados de Annur. Ninguém se preocupara em acender as lâmpadas da sala ainda, mas havia bastante luz do dia para uma inspeção superficial. No entanto, em vez de verificar as mesas ou as prateleiras, Kaden foi até a parede com vista para a cidade, até uma pequena parte do chão de madeira de lenho­-de­-sangue que fora polida até ficar mais brilhante do que o resto. Não era difícil imaginar Sanlitun sentado ali, o último verdadeiro imperador de Annur, de pernas cruzadas da mesma maneira como os monges que o haviam treinado. Kaden libertou os próprios pensamentos, tentando deslizar para dentro da mente de seu pai assassinado.

    Annur era a maior cidade do maior império do mundo, lar de mais de dois milhões de homens, mulheres e crianças; suas casas e lojas, templos e tabernas, todos construídos lado a lado. Pessoas comiam e lutavam ali, amavam, mentiam e morriam – tudo isso a poucos passos de seus vizinhos, não mais do que uma parede de teca rachada entre a dor de uma mãe em trabalho de parto e os amantes em um abraço apaixonado. Após o vazio de Ashk’lan, o espaço e o silêncio, era tudo… demais, mesmo dentro do Palácio do Alvorecer. Kaden conseguia sentir o desejo de seu pai de distanciar­-se daquela onda de humanidade, de ficar acima dela, podia imaginar Sanlitun ignorando as pesadas cadeiras de madeira para sentar­-se no chão descoberto, os olhos fechados, cegos para a cidade que crescia e zumbia, além daquelas paredes claras, inquebráveis…

    Ele deixou o beshra’an partir.

    Talvez as coisas não fossem absolutamente assim. Talvez essa parte específica do chão tivesse sido gasta por outra coisa, algo irrelevante – um dos gatos cinzentos que rondavam o palácio, ou uma pequena mesa mudada mil vezes de lugar durante a limpeza. Kaden podia ver o pai sentado ali, imóvel e silencioso como um monge Shin empoleirado na plataforma de granito acima de Ashk’lan. Ele conseguia vê­-lo, mas nunca o tinha realmente visto. Sanlitun era uma sombra, uma forma obscura lançada sobre o presente pelas coisas que deixara para trás.

    Kaden deixou de lado as lembranças de seu pai e a visão da grande cidade que ele governara para analisar o quarto mais uma vez. Os aedolianos haviam sido meticulosos em sua busca, colocando os papéis soltos em pilhas sobre as mesas, retornando os códices para as prateleiras com as lombadas perfeitamente alinhadas. Os soldados, no entanto, não tinham a memória de Kiel ou Kaden. Ele suspirou enquanto ia até a mesa mais próxima, folheou algumas páginas e então as deixou cair.

    – Não tenho certeza se eu mantinha algo aqui que valesse a pena roubar – disse.

    – Havia páginas detalhando movimentos das tropas – Kiel opinou. – Listas de suprimentos.

    Kaden sacudiu a cabeça.

    – Há lugares mais fáceis para se achar esses papéis. Não há necessidade de infiltrar­-se na própria Lança. Não há necessidade de subjugar três aedolianos. – Ele parou, tentando entender a questão. – Isso foi algo diferente. Alguma coisa… a mais. – Kaden olhou para a pesada porta, quase 8 centímetros de madeira de lenho­-de­-sangue reforçada com ripas e guardas aedolianos do outro lado. Só um louco tentaria passar por isso. Um louco, ou alguém muito, muito determinado. – Foi il Tornja, não foi?

    – Temos relatos confiáveis da presença do kenarang de sua irmã ao norte, mas o seu alcance é longo.

    Kaden assentiu lentamente.

    – Ele conhecia esse gabinete. Já esteve aqui antes. Se precisasse de alguma coisa, saberia onde procurar, e ele conhece

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