Caminhando
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Caminhando - Ailton Rodrigues De Araújo
A LUFADA
O despertar
E
ram por volta de 20 horas. Recostado em um poste sobre a calçada, via do outro lado da rua descortinar-se a praça principal com floridos jardins e belas luminárias centenárias que abrandavam o escuro da noite. Os carros em movimento incessante misturavam as luzes dos faróis com o reflexo colorido do neon no chão molhado, num vaivém como se deliciando do chiado dos pneus na água do asfalto. Transeuntes encolhidos em agasalhos passavam apressados em todos os sentidos numa azáfama infernal como se um tivesse de chegar rápido ao lugar de onde o outro saiu, ou nem soubessem aonde ir. O cume dos prédios se perdia no negro do céu, de onde uma preguiçosa chuva fina agora caía igual a flocos de neve refletida pela iluminação. O colorido sombrio das placas publicitárias fosforescentes que restaram de pé dava um ar de normalidade em meio a tanta desorganização, mas as pessoas ainda carregavam no semblante o pavor que fora aquela inesperada tempestade que trouxe cedo a noite deixando todos acuados diante de tamanha desordem.
Eu, uma criança, descalça, a roupa molhada pela chuva que salpicava o rosto escorrendo até o chão, ligava-me fisicamente àquela realidade.
Assistia a tudo como se por encanto acabasse de despertar no meio de um temporal, de surgir, como se tivesse fechado os olhos por um instante e ao abri-los me visse transformado em outra pessoa diante de um cenário desolador. Era como se estivesse ali pela primeira vez, num local estranho sem nada compreender, olhando os passantes trombando descuidadamente uns nos outros e as crianças seguras nos pais, enquanto eu permanecia imóvel como se nunca tivesse aprendido a andar.
Pouco tempo depois, não se via mais ninguém, a praça estava deserta e gelada ecoando o zunido intermitente do vento que contorcia a copa das árvores misturando as folhas arrancadas com a chuva que se desfazia num manto esbranquiçado. À meia-luz, as gravuras e estatuetas, incrustadas nas paredes pretas de fuligem dos edifícios mais antigos, pareciam ganhar vida; com muito medo e sem saber o que fazer ou que rumo tomar, eu me vi girando em torno de mim mesmo igual a um pião até cair sem domínio.
Debaixo da marquise
Vivia misturado a outros meninos como se fôssemos uma família. Nena, como se fosse uma irmã mais velha, levava-me em suas andanças para ajudar a comover os corações enquanto esmolava de porta em porta ou pedindo a algum transeunte. Acompanhando-a inocentemente, chupando um bico já desgastado, eu carregava, deixando cair aqui e ali, um pedaço de pano que servia de aconchego. À medida que fui crescendo, tudo foi dificultando, e os companheiros de infortúnio já não tinham comigo a mesma tolerância de antes não fosse a interferência da Nena, constantemente, algum deles me queria surrar.
Os meninos se espalhavam durante o dia à procura de sobrevivência e à noite se reuniam à procura de proteção, mas também era a hora da partilha, de prestar contas do que arrecadaram. Bill, com outros mais velhos, liderava o grupo, mantendo os demais submissos, aplicando como lhe convinha o castigo. Quando drogados, o sexo era praticado com voracidade e violência, como se fosse a última vez, extravasando com fúria toda revolta contida em cada um. Ao deitar para dormir, os mais velhos agasalhavam-se melhor, e me parecia natural, porém, naquela última noite chuvosa e fria, um deles arrancou o agasalho de Nena aproveitando-se de sua fragilidade; colérica, ela puxou o meu, empurrando-me após resmungar e me dar alguns tapas como se fosse minha a culpa por tudo. As lamúrias e a insistência em recuperar a coberta irritaram Bill, que, aporrinhado com aquela choradeira, levantou para me espancar até saciar a ira, colocando-me em pé de igualdade com os demais do grupo, dizendo que eu estava bem desenvolvido e não precisava mais de atenção, e em breve iria sexualmente possuir-me. Choramingando, recostei-me em Nena, esperançoso por alguma reconciliação, mais uma vez ela me enxotou para longe, não queria contrariar as decisões de Bill, o que me fazia entender que não era afeto que existia entre nós. Sem conseguir dormir, com frio, dor, desprezo e medo do Bill, não esperei o dia clarear e saí sorrateiramente para perambular pela cidade sem saber aonde ir.
Desnorteado, agora na praça, com tanto empurra-empurra de centenas de pedestres assustados com a tempestade, é que consegui acordar e despertar para outra realidade.
Permaneci no chão vasculhando minhas memórias sem que aflorasse qualquer ligação com alguém, a não ser aquele grupo de meninos com quem nem me lembro como fui conviver. Buscava loucamente avivar as mais remotas recordações, mas só via um imenso vazio, o pavor e o desespero me sufocavam, encurralando-me numa torturante solidão. Desequilibrado emocionalmente, os músculos se contraíam involuntariamente sem harmonia entre mente e corpo.
Naquele momento ali na fria calçada, imaginei-me transformado em uma bola invisível suspensa no ar protegido de tudo e de todos.
Pânico e fuga
A praça estava tenebrosa, abandonada e tomada pela neblina, levantei-me e saí sem direção à procura de algum abrigo. Esgueirando-me aqui e ali, evitando cruzar com algum possível transeunte, enveredava por ermas vielas que levavam a lugar nenhum. Nos cruzamentos, parava para um breve descanso enquanto decidia o caminho a tomar, mas, sentindo-me vulnerável e desorientado, via que o melhor era continuar mesmo sem direção. Com a noite avançando madrugada adentro, foi igual mergulhar num abismo; várias vezes ensaiei correr com o intuito de fazer o tempo passar mais rápido ou vencer a escuridão. Dominado pelo cansaço e com frio, parei em um beco, onde me sentei a alguns metros de um poste de luz. Protegido pela neblina que ofuscava a iluminação, fiquei vigilante, tendo de um lado o poste e do outro o breu da noite. Sem vencer o sono, adormecia e acordava com ruídos ocasionais e os pesadelos que faziam misturar sonho e realidade. Despertei frustrado, com as pernas dormentes e geladas, sem conseguir ficar de pé, preso ali naquele beco sujo. Arrastando-me pelo chão, choramingava de horror alucinando não mais conseguir andar.
Depois de restabelecido parti novamente sem rumo, ainda inseguro naquela manhã sombria, em meio à densa neblina que me levava a mudar rapidamente de direção a cada vez que surgia súbito o vulto de alguém. Desorientado, era impulsionado a avançar mais rápido, indo apressado por uma rua para entrar em outra; achava estar sendo perseguido sem trégua, sem entender se estava fugindo ou procurando algo que nem eu sabia o que era, ou, quem sabe, por mim mesmo, enquanto a fadiga e a fome me sufocavam.
Ao entardecer, em um lote vazio, afastado das residências, encontrei refúgio em um cemitério de veículos, onde me escondi. Embrenhei-me naquele monturo coberto por trepadeiras e outras plantas que se espremiam entranhadas naquelas latas-velhas onde passei aquela longa noite.
O local estava esquecido, e o silêncio da manhã só foi interrompido pelo respingar da umidade acumulada nas folhas das ramagens. Bem protegido, optei por permanecer quieto. O dia estava claro com a neblina dispersa, mas saindo me exporia ao olhar de todos. Por outro lado, era atormentado pela fome e pensamentos que me levavam a uma grande inquietação. A lembrança dos meninos e daquela tempestade na praça me fazia sentir calafrio de medo.
Faminto, entendendo que não poderia continuar ali parado, decidi ir adiante; ao anoitecer, sob uma fina garoa saí, o frio àquela hora era ainda mais intenso, mas raramente se via alguma pessoa. Buscando as calçadas mais iluminadas continuei, mas percebi que andava em círculos, os caminhos só me levavam de volta ao centro, que eu queria evitar. Por mais que andasse, me escondesse, mudasse de percurso, nada acontecia, até ser abordado por uma patrulha policial. Ameacei correr, mas o susto não me permitiu nenhuma ação, e esse gesto de desespero e nervosismo fez com que os policiais suspeitassem de mim. Após algumas perguntas e insinuações sobre minhas intenções, sem ouvirem nenhuma resposta, fui jogado com rudeza na mala da viatura. Caindo de costas e imóvel, com o corpo dolorido e enrijecido, sem ação, não conseguia concatenar os pensamentos. Atarantado, fixei o olhar no teto do veículo à procura de um ponto qualquer, tentando assim equilibrar-me, já que os braços e as pernas não me obedeciam, tesos de horror.
No momento em que fui abordado, reconheci o cabo Tonhão, o terror dos meninos de rua, um policial sádico e degenerado; até Bill, que era destemido, fugia apavorado de sua presença. Quando ele capturava alguns dos meninos, nem todos voltavam a conviver com o grupo, sem deixar rastro, desapareciam! Agora temia pelo que me poderia acontecer.
Ao ouvir o som abafado da tampa do porta-malas fechando, senti uma breve confusão mental entre o medo e a curiosidade de toda criança – andar de carro pela primeira vez! A viatura começou a se locomover bem devagar, vasculhando cuidadosamente o quarteirão, provavelmente para alcançar outros que pudessem estar comigo em uma trapaça. Sem nada descobrir, saiu em disparada, sirene ligada, lembrando uma perseguição, acelerando e freando bruscamente, arremessando-me naquelas laterais de aço igual a um tonel, para novamente acelerar a toda potência, jogando o veículo para a esquerda e para a direita procurando evitar buracos e outros obstáculos do asfalto. Sem ter onde me segurar era jogado de um lado a outro, desgovernado, desorientado, sentindo ser surrado impiedosamente – e, antes de avaliar a intensidade de um encontrão com a lateral do veículo, vinha outra curva em seguida. Indefeso, com dor generalizada no corpo e na cabeça, tudo rodava sob um infernal barulho de latas. Ao parar, alguém ordenou que me tirassem dali. Surraram-me com cassetete, sem se importar com minha fragilidade, depois me empurraram em uma ribanceira e rolei até parar enredado no matagal. Um dos policiais enfatizava:
— Hoje este não fala mais — rindo sarcasticamente.
Longe da cidade, com uma perna que parecia estar quebrada de tanta dor, permaneci imóvel e entregue à sorte. Ouvi o carro partir. O frio naquela vegetação molhada fazia agravar mais ainda minha condição, mas me senti aliviado por ter-me livrado deles e estar novamente sozinho. Ferido na alma não pude ver mais nada, adormeci, ou desmaiei, não sei dizer ao certo, e só voltei a mim quando despontava um novo dia.
Amanheceu sem chuva, o sol ressurgia com toda força, expulsando a névoa fria. Parado na mesma posição durante toda a noite, exposto a tantos maus-tratos, o corpo parecia continuar letárgico como se me tivesse livrado dele, igual imaginei lá na praça, uma bola invisível suspensa no ar. Os olhos doíam parecendo inchados, eu abria e fechava as pálpebras tentando em vão eliminar o incômodo. Movimentei a língua, o maxilar e