Sétimo Passageiro
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Sétimo Passageiro - Paulo Henrique Nascimento
SÉTIMO
PASSAGEIRO
PAULO HENRIQUE NASCIMENTO
PAULO HENRIQUE NASCIMENTO
SÉTIMO
PASSAGEIRO
1º Edição
Paulo Henrique Nascimento Jesus
Goiânia
2015
Sétimo Passageiro
1º Edição – 2015
Foto de Capa: Maurício Brum
Foto do autor: Rodrigo Carvalho
Capa: Paulo Henrique Nascimento
Revisão de Texto: Manoela Cavalcante e Felipe Macedo
Impresso no Brasil
Goiânia
2015
Mapa Do Percurso
O Trajeto Percorrido ................................................................... 9
No Ponto De Partida ................................................................. 11
Da Janela Lateral....................................................................... 25
Assento Disponível ................................................................... 39
Em Frente Á Catraca ................................................................. 53
A Passagem ............................................................................... 61
Reencontro De Passageiros ....................................................... 89
Sozinho Na Plataforma ........................................................... 113
Na Próxima Parada ................................................................. 119
Mais Um Passageiro ............................................................... 123
Na Linha Do Tempo ............................................................... 145
Memórias Pelo Corredor ......................................................... 155
Perdido No Terminal............................................................... 165
Linhas Cruzadas ...................................................................... 177
Última Parada.......................................................................... 201
A Viagem Pelo Fogo ............................................................... 211
Desembarques Pelo Caminho ................................................. 231
Elucidações Passageiras .......................................................... 247
‘’Dedico esse livro a todos os passageiros que de alguma
maneira me ajudaram a construir essa história!’’
Paulo Henrique Nascimento
O Trajeto Percorrido
Com o passo apressado e o pensamento inquieto, segui pelo
meio da rua, receoso e angustiado. A agonia queria me furtar o
oxigênio e não me poupou de nenhuma sensação. A árvore
enraizada na terra batida; transparecia tão desperta, mas ainda
dormia; era somente a força de um vento gelado e sem coração,
que balançava os seus galhos, porém não abalava o seu tronco.
Os frutos caídos no chão seriam apanhados ou então pisoteados
pelo ser mais desatento, mas o seu espírito permaneceria ali.
O relógio marcava seis horas em mais um dia de domingo. A
jaqueta preta que eu vesti não foi o suficiente pra me proteger do
inimigo matinal. Foi preciso esfregar as mãos para produzir
calor e mesmo assim, continuei sentindo frio; e os pelos de meus
braços se arrepiavam em concordância. Da minha boca saia o
vapor de fumaça que eu soprava sobre as mãos e em seguida as
guardava no bolso da calça jeans.
Diante da esquina me encontrei com a avenida em subida
bastante acentuada, mas eu precisava descer e não quis seguir o
mesmo caminho. Eu era dono da minha própria história e
prisioneiro de minhas escolhas, porém gritava aos quatro cantos
a minha liberdade enganando a mim mesmo. Quase todos já
sabiam que a vida não era tão doce assim.
Cheguei ao ponto de partida, na casinha sucateada e coberta
de ferrugem, corroída pelas águas e frequentada diariamente
pela população. Ela me recebeu indiferente e não guardava mais
ninguém, porque fora destituída de sua função, justamente por
não ter mais um teto descente. Mas ainda restavam as colunas
9
rabiscadas com declarações de amor e o assento com a tinta
descascando as histórias ouvidas em silêncio.
Consultei o relógio e já eram seis e trinta e cinco. Esperava o
ônibus surgir por dentre as ruas e ordenava a sua chegada, mas
ele não me obedeceu. Os lábios desprotegidos ressecaram-se
devido á baixa temperatura e a friagem atordoava os meus
ouvidos. Não havia jeito. Eu tinha que suportar.
Três carros desceram pela rua e desapareceram logo após
terem cruzado a ponte; sem o seu rio e coberta pelo matagal.
Não havia como saber o destino dos carros, mas levantei várias
possibilidades como se eu estivesse na direção do veículo. Eu
não imaginava que era chegado o momento de ser conduzido
pela vida, logo eu que acreditava ser dela o motorista e
cobrador. Eu era um passageiro e tudo passava diante de mim.
O pensamento ecoava na cabeça e se espalhava pelo restante
do corpo. Aquele sonho estranho me deixou transtornado e a
minha alma só teria sossego, quando todas as satisfações fossem
esclarecidas. Havia se passado muito tempo, desde á ultima vez
que o vi com vida e pra não morrer de remorso eu precisava
revê-lo de qualquer maneira.
Eu pressentia que algo iria acontecer, mas não sabia com
precisão o que de fato ocorreria. Completamente vulnerável,
joguei com a própria sorte, tentaria outra vez, por mais difícil
que fosse reconhecer o orgulho que havia em mim. Eu seguiria
em frente até reencontrar aquele homem egoísta que um dia
chamei de papai... Bom, era assim que eu pensava...
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No Ponto De Partida
O surgimento de uma senhora interrompeu o meu momento
de divagação íntima. Ela descia a rua bem devagar e presumi a
sua idade; de no mínimo uns oitenta anos. A saia branca e a
blusa foral nos tons da cor azul buscavam a combinação com o
lenço preto desbotado em sua cabeça. Trazia presa á sua cintura
uma bolsa preta surrada que escondia uma recordação de um
tempo antigo, pois só poderia ser essa a explicação para que
usasse algo tão ultrapassado. Dei um leve sorriso, pois ‘’gosto
não se discute’’; já dizia a minha avó. As duas eram mesmo
semelhantes em quase tudo e tive a impressão de que as pessoas
mais velhas são todas iguais ou então somos nós que a vemos do
mesmo jeito sem levarmos em conta a sua trajetória.
Fiquei curioso pra saber o motivo que a levava a sair de casa
tão cedo; e a minha pergunta foi logo respondida quando me
atentei aos outros detalhes que trazia consigo na caminhada. De
cabeça baixa, ela demonstrava o passar de seu tempo e o
cansaço da vida, mas mesmo assim ela não se entregava e seguia
arrastando o seu carrinho velho pelo asfalto. A caixa de isopor
revestida de papel alumínio e fita adesiva; parecia bem segura
nos desencontros das cordas que impediam que caísse de um
lado para o outro.
Ela não vestia nenhum agasalho e não havia justificativa para
que não se sentisse incomodada com o frio, talvez já estivesse
acostumada e a sua pele áspera e enrugada já não se feria como
nos tempos de sua mocidade. Ela era experiente enquanto eu era
11
mais um desses jovens que esfrega as mãos uma na outra e em
seguida as coloca sobre as duas orelhas geladas, devido á
vulnerabilidade ao vento e a friagem. Nessas horas me fazia
falta um capuz. Eu tremia de frio e usava todas as artimanhas
que conhecia pra poder esquentar o meu corpo a todo custo e ela
permanecia indiferente sem se queixar de nada.
Ela encostou o seu carrinho e logo senti o cheiro dos
salgados. Sentou-se no banco sem se preocupar com a ferrugem
e o telhado descoberto; deslizou a sua mão sobre a coluna, como
se marcasse o seu território e tudo lhe parecia agradável e eu não
concordava com a sua atitude de maneira alguma.
- Bom dia!
- Bom dia pra senhora também!
Permanecemos em silêncio após os cumprimentos por boa
educação e obrigatoriedade. Da minha parte iria ser desse modo
até o fim, mas eu não contava com a sua pré-disposição em
conversar com pessoas estranhas.
- O ônibus já passou?
- Estou aqui, já faz alguns minutos, mas ele ainda não deu
sinal de vida.
- No fim de semana eles costumam demorar um pouco mais,
mas pelo horário, daqui a pouco deve passar. – olhou o terreno
baldio que estava do outro lado da avenida e fixou nele, toda a
sua atenção.
Não havia nada de interessante em um terreno coberto de
mato e invadido pelo lixo. Essa senhora era muito estranha.
- Qual é o seu nome?
- Me chamo Maurício e a senhora?
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- O meu nome é Maria, mas a verdadeira está no céu!
- A verdadeira?
- Sim. A mãe de todos nós, a Virgem Maria!
- Ah... Agora sim, eu entendi.
- Você está indo para o trabalho?
- Eu estou de folga. Na verdade eu vou á casa de meu pai.
- Você está certo. Tem mais é que aproveitar e sair um
pouco. Eu não vou visitar ninguém, porque tenho que trabalhar
pra pagar as minhas contas, se não morro de fome.
- Desculpe, mas a senhora já não tem mais idade para
trabalhar.
- Eu sou aposentada, mas o que recebo do governo, mal dá
para pagar os remédios que tomo para a pressão e diabetes.
- E os seus filhos, não te ajudam?
- Eu tenho oitenta e dois anos e trabalho vendendo salgados
no terminal para completar a renda.
- Mas e os seus filhos? Onde é que eles estão?
- Eu não sei por onde eles andam. Tive seis filhos e todos
eles foram embora e me deixaram sozinha. Eu sei que não fui a
melhor mãe do mundo, mas fui o que pude e mesmo assim eles
voaram – percebi a tristeza em suas palavras - Eu vou levando a
vida do jeito que dá, até que a morte venha e me leve para junto
de meus pais.
- E a senhora é casada?
- Eu sou viúva há dois anos, meu marido morreu de câncer de
próstata.
- Desculpe, eu não sabia.
- Desculpa por quê? Como é que você iria saber disso?
13
- E desde então, a senhora vive sozinha?
- Lá em casa hoje em dia, é Deus e eu e mais ninguém.
- Poxa! Eles são muito ingratos!
- Ah... Mas eu não tenho mágoa de nenhum deles, porque
não criei filhos pra mim. Eu os criei para o mundo e eles voaram
pra seguir com suas vidas e eu sigo com a minha.
- Tudo bem, mas a senhora cuidou deles quando eram
pequenos e agora que precisa de ajuda, o mínimo que eles
deveriam fazer é retribuir os anos de dedicação que a senhora
deu a cada um deles. É o que eu penso sobre isso.
- A gente colhe o que planta. – voltou os seus olhos para o
terreno e eu ainda não havia encontrado nada de extraordinário.
- A senhora acabou de dizer que foi uma boa mãe, então não
tem motivos para colher á ingratidão de seus filhos.
- Você está certo. Eu fui uma boa mãe, mas os meus filhos
colherão a ingratidão em suas crias, se isso for necessário.
- O que aqui se faz se paga aqui. – conclui a sua frase.
- Você viu meu cachorrinho?
- Que cachorro?
- Aquele ali do outro lado, no terreno vago. – apontou com os
olhos.
- Então era isso que a senhora estava olhando o tempo todo?
- O corpo dele já está inchado e cheio de moscas. – analisou -
Ele viveu comigo muitos anos! – suspirou em tristeza – A parte
ruim de ter criação dentro de casa é justamente o apego que a
gente desenvolve pelos bichinhos. Só que aí depois eles morrem
e tudo se acaba. Na semana passada o meu galo morreu e agora,
só tenho uma galinha sozinha ciscando no meio do quintal.
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- E foi á senhora que jogou o corpo dele ali?
- O senhor Antônio me disse que ele foi atropelado. Eu saio
para trabalhar bem cedo e quando voltei, ele já estava ali.
- É muito triste, ainda mais quando a gente se apega ao
animal. Quando eu era mais novo, tive vários cachorros, mas
depois que quatro deles morreram um atrás do outro eu acabei
por fim desistindo de criar qualquer animal dentro de casa.
- A vida é assim mesmo...
- Daqui a pouco ele vai começar a feder. Não é melhor a
senhora enterrá-lo?
- É melhor deixar que a natureza faça o seu trabalho.
- Ah, eu não daria conta, pois tenho pena do bicho.
- Você iria querer que as pessoas tivessem pena de você,
quando morresse?
- O que é que isso tem haver com o que estamos falando?
- Você acha que não tem nada haver?
- Claro que não. Uma coisa é o cachorro e outra coisa sou eu
que sou gente!
- Você é muito novo meu filho e ainda tem uma vida inteira
para aprender muitas coisas.
- Eu não entendi nada. O que a senhora quis dizer com isso?
- Você não entendeu, porque ainda não chegou a hora certa.
- A hora certa de quê? - Ela me deixou encucado e até pensei
que estivesse caducando, pois parecia não dizer mais coisa com
coisa ou seria eu que havia ficado louco; quando decidi
conversar sobre a morte do cachorro em um ponto de ônibus,
com uma senhora que eu nem conhecia?
- Vocês jovens, são muito ansiosos e querem saber de tudo!
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- Não são somente os jovens que possuem essa ansiedade.
Qualquer pessoa hoje em dia é ansiosa por natureza.
- No meu tempo as coisas não eram assim.
- Eu sei... A senhora não vai responder a minha pergunta?
- Não!
- Mas isso não é justo!
- E você acha que tem condições de medir a justiça?
- Como é que é? Ah pelo amor de Deus! Se não quer dizer,
tudo bem deixe pra lá. Eu também não quero mais saber disso.
Após a minha resposta, o silêncio pairou entre nós dois e eu
havia dado por encerrada a nossa conversa, mas ela depois de
alguns minutos calada, insistiu outra vez em um dedo de prosa.
- Você e seu pai, se dão bem?
- Sim nos damos bem. Qual é o motivo da pergunta?
- É apenas curiosidade de gente velha. Eu não sei se você
percebeu, mas eu sou uma velha!
- Se a senhora não tivesse falado, eu nem iria perceber.
- Isso é jeito de falar comigo?!
- Eu não disse nada demais. Ninguém sai perguntando essas
coisas, apenas por mera curiosidade.
- É... Realmente. – concordou.
- Esse ônibus está demorando muito e eu estou com tanta
pressa. – tentei mudar de assunto.
- A sua reação já comprova que as coisas não são como você
disse, tanto é que já está mudando a conversa. Você não gosta
de falar sobre isso, eu sei. O que te incomoda, meu filho?
- A senhora está enganada. Está tudo bem! É que eu não
gosto de ficar falando da minha vida pra qualquer pessoa.
16
- Eu não sou qualquer pessoa, mas se não quer dizer também
não vou insistir. Desculpe, se fui intrometida.
- Não precisa pedir desculpas.
- Você estuda?
- Eu já terminei a faculdade e agora só vivo pelo trabalho.
- Você é casado, tem filhos?
- Eu sou casado e não penso em ter filhos por agora. É muita
responsabilidade cuidar de uma criança!
- Ah, isso é verdade, os dias estão difíceis. Quando os meus
filhos eram pequenos, sempre aconselhei o estudo, para que eles
se tornassem alguém na vida, porque sem estudo, nós não somos
nada.
- É... Estudar é muito importante!
- Eu já estou velha e ainda preciso trabalhar. E no meu tempo
não existia a metade das oportunidades que existem hoje; muitas
coisas melhoraram enquanto outras pioraram.
- Hoje só não estuda quem realmente não quer, mesmo...
- Olhe pra mim! Eu levanto todos os dias de manhãzinha e
vou para o terminal vender os salgados e tenho que chegar cedo,
se não eles roubam o meu lugar.
- E já faz muito tempo que a senhora trabalha lá?
- Há quase dez anos e eu sinto que irei morrer trabalhando no
meio daquele mar de gente.
- Ah, então todos á conhecem!
- Sim, todos me conhecem, mas apenas me conhecem.
- Como assim?
- Ninguém me reconhece de verdade.
- Eu continuo sem entender.
17
- As pessoas sabem quem eu sou, mas não ligam para o que
acontece na minha vida.
- Eu entendo. A senhora se sente muito sozinha?
- Ás vezes eu sinto falta de alguém, mas logo passa. E quem
é que vai se importar com uma velha cheia de problemas como
eu? Quem gosta de velho é reumatismo! – gargalhou da
situação.
- É complicado!
- Escuta. Eu pego o ônibus todos os dias, mas nunca te vi por
aqui. Tem pouco tempo que mora aqui no bairro?
- Eu moro aqui há quase quatro anos, mas já faz um tempo
que não pego o ônibus coletivo nesse ponto.
- Você tem carro?
- Sim, mas ele resolveu estragar justo hoje e por isso vou ter
que ir de ônibus para á casa do meu pai.
- E ele mora muito longe daqui?
- É quase uma viagem para outra cidade. – brinquei com a
distância.
- Não é qualquer pessoa que anima sair de casa no final de
semana pra visitar os pais e ainda por cima de ônibus. Você
deve gostar muito dele. – contemplou – E você está certo. Tem
que honrar os seus pais enquanto eles estão vivos, porque depois
que morrerem, aí será tarde demais. Eles devem sentir muito
orgulho do filho que tem!
Fiquei sem graça com as suas palavras e sem resposta para
entregar. Aquela senhora parecia ter o dom de ler a mente das
pessoas e eu já estava bastante intrigado com tantas indiretas,
direcionadas, diretamente á minha história. Eu queria acreditar
18
que ela desconhecesse qualquer detalhe, mas estava difícil.
Constatei por conta própria que essas pessoas mais velhas
pegam as coisas no ar e soltam sem medo pela boca.
Ouvimos um som característico que interrompeu o nosso
interrogatório paralelo e com os nossos olhares na mesma
direção, não enxergamos nada, devido á neblina que ofuscou as
nossas vistas, mas sabíamos que ele estava perto e não tardaria
em chegar.
Outra vez, o som se fez ouvir mais alto, só que dessa vez
mais próximo de nós; fazendo barulho e soltando fumaça pelo
escapamento, ele vinha; o nosso ônibus. Levantei e abanei a
mão, em sinal de parada ao motorista, mas foi em vão. Ele
passou direto, porque estava lotado e não havia espaço para
mais ninguém lá dentro. Ele desceu a ladeira e repetiu o
caminho dos automóveis e por fim desapareceu de nosso
alcance quando cruzou a mesma ponte que separava os dois
bairros, deixando pra trás o rastro de fumaça preta na avenida e
em nós dois a sensação de ter ficado para depois. Não houve
outro jeito a não ser aguardar o próximo que viria logo em
seguida.
- Mas por que ele não parou?
- A senhora não viu que estava lotado?
- Estava lotado na frente, mas o fundo estava vazio. Mas esse
povo também pudera, fica amontoado perto da catraca e não sai
de jeito nenhum. Desse jeito eu irei chegar atrasada.
- As pessoas estão quase saindo pela janela e todas estão
exprimidas umas nas outras e a senhora ainda diz que caberia
19
mais gente? Se entrasse mais alguém ali iria faltar até o ar pra
respirar!
- Você deve está achando estranho, porque está acostumado a
andar de carro, mas a realidade de pobre é essa, meu filho!
- Eu já andei muito de ônibus e sei das dificuldades que
existem e isso pra mim não é nenhuma novidade.
- Eu acho que você escolheu o dia errado pra voltar ás
origens.
- Eu não quis voltar ‘’ás origens’’ e nem tive essa escolha. O
meu carro quebrou e já que estou aqui, não vou voltar pra casa.
- Você é animado!
- Todos os que estavam naquele ônibus são bem mais
animados do que eu.
- Quem é pobre tem que ser corajoso por natureza!
- A senhora é muito engraçada!
- Eu estou mentindo? Essa vida não é de Deus, meu filho!
- Eu não sei de nada...
- Então você não é pobre, porque qualquer pobre saberia
disso!
- A senhora fala umas coisas...
- Eu só falo o que é a verdade.
- Nem sempre...
- Ah, sossegue rapaz! – tentou me intimidar – E esse
motorista vai ver só comigo! – ameaçou sem munição aparente.
A neblina desapareceu e o relógio no pulso, entregava ás sete
horas da manhã acompanhada de um dia mais claro. Os pássaros
voavam e cantavam em agradecimento por mais um amanhecer.
Os cães que viviam nas ruas saíram dos becos, alongaram seus
20
corpos, sacudiram os pelos e abriam as mandíbulas, bocejando
como gente. Os gatos observavam tudo o que acontecia sem
prestar contas á ninguém. Eu observava cada detalhe e percebi
que já havia muito tempo que eu não me atentava para certas
coisas tão corriqueiras.
Dona Maria demonstrou que também observava os mesmos
acontecimentos triviais, mas permaneceu em silêncio sem soar o
alarme de tudo que chamara a sua atenção.
Escutamos novamente o som da chegada de mais um ônibus
e nos preparamos para o embarque e dessa vez, Dona Maria foi
quem se levantou primeiro e juntos fizemos o sinal ao motorista
que parou de portas abertas para nós dois.
Entrei sem olhar para trás, inseri o ticket, passei a catraca e
nem me dei conta de que ela não estava mais comigo. Ela
caminhou em direção á porta do meio para subir com o seu
carrinho e então me chamou com um tom de voz imperativa,
mas ao mesmo tempo amável e doce:
- Ande depressa rapaz! O que você está esperando para vir
me ajudar a subir com esse carrinho?
Estava tão desatento que não cogitei a obrigação em ajuda-la,
mas também não questionei. Meio envergonhado, tratei de
ajudar sem demora porque seria bem melhor não contrariar, pois
o seu gênio se parecia muito com o da minha mãe e se eu
demorasse mais um pouco, talvez ela fosse capaz de me dar uma
surra ali mesmo. Eu não iria pagar pra ver.
- Vamos depressa! O motorista não tem todo o tempo do
mundo! – alertou – Obrigado! – retornou a porta principal e
rodou a catraca. - Que Deus lhe abençoe!
21
- De nada! – retruquei.
O ônibus estava praticamente vazio e mesmo assim ela
sentou-se ao meu lado. Acho que ela deve ter gostado de mim,
porque não havia outro motivo para ficar assim tão perto.
Apesar de ser muito curiosa e autoritária, era uma velha
guerreira e sua força vital deixaria qualquer pessoa admirada e
abismada com a sua audácia peculiar. Por um momento me foi
possível supor o motivo dos seus filhos terem ido embora...
- Você precisa ser mais esperto, pois a vida não espera pelos
desatentos e também não te aguarda no ponto certo. Se você não
corre atrás, então, ela te deixa para trás!
- A senhora se parece com a minha avó, o tempo todo dando
conselhos e mais conselhos. Como pode parecer tanto!
- Eu tenho a idade pra ser a sua avó e você sabe que tem que
me respeitar em tudo