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Sétimo Passageiro
Sétimo Passageiro
Sétimo Passageiro
E-book640 páginas4 horas

Sétimo Passageiro

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Sobre este e-book

Chegará o dia do acerto de contas e pela janela lateral veremos as recordações de um adulto em eterna infância Nos pontos de embarque o homem procura pelo sua semente perdida. Nos terminais descobriremos verdades e mexeremos em feridas que nunca cicatrizaram no peito. Os passageiros no decorrer da jornada darão respostas em confissões observadas em silêncio. As linhas se cruzarão com a ajuda do destino em uma só viagem e pai e filho descobrirão no outro um reflexo de si próprio. O pai que não aprendeu a ser papai entra em confronto com o filho que não aprendeu a ser um menino. E talvez para aquele que não teve amor, muitas vezes persiste a dificuldade para repassar esse sentimento ao próximo. Será que não resta nenhuma faísca guardada dentro da alma, acorrentada pelo orgulho e o egoismo humano? Será que ainda existe uma chance para esses dois? A única maneira de descobrir o desfecho dessa trama é embarcando nessa viagem sem ter pressa de chegar ao seu destino. Compre a sua passagem, ultrapasse a catraca, procure um banco e sente-se! Eu sei que tudo isso seria uma grande loucura se não acontecesse dentro de um ônibus e por isso desejo a todos os passageiros uma ótima viagem!
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de dez. de 2017
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    Pré-visualização do livro

    Sétimo Passageiro - Paulo Henrique Nascimento

    SÉTIMO

    PASSAGEIRO

    PAULO HENRIQUE NASCIMENTO

    PAULO HENRIQUE NASCIMENTO

    SÉTIMO

    PASSAGEIRO

    1º Edição

    Paulo Henrique Nascimento Jesus

    Goiânia

    2015

    Sétimo Passageiro

    1º Edição – 2015

    Foto de Capa: Maurício Brum

    Foto do autor: Rodrigo Carvalho

    Capa: Paulo Henrique Nascimento

    Revisão de Texto: Manoela Cavalcante e Felipe Macedo

    Impresso no Brasil

    Goiânia

    2015

    Mapa Do Percurso

    O Trajeto Percorrido ................................................................... 9

    No Ponto De Partida ................................................................. 11

    Da Janela Lateral....................................................................... 25

    Assento Disponível ................................................................... 39

    Em Frente Á Catraca ................................................................. 53

    A Passagem ............................................................................... 61

    Reencontro De Passageiros ....................................................... 89

    Sozinho Na Plataforma ........................................................... 113

    Na Próxima Parada ................................................................. 119

    Mais Um Passageiro ............................................................... 123

    Na Linha Do Tempo ............................................................... 145

    Memórias Pelo Corredor ......................................................... 155

    Perdido No Terminal............................................................... 165

    Linhas Cruzadas ...................................................................... 177

    Última Parada.......................................................................... 201

    A Viagem Pelo Fogo ............................................................... 211

    Desembarques Pelo Caminho ................................................. 231

    Elucidações Passageiras .......................................................... 247

    ‘’Dedico esse livro a todos os passageiros que de alguma

    maneira me ajudaram a construir essa história!’’

    Paulo Henrique Nascimento

    O Trajeto Percorrido

    Com o passo apressado e o pensamento inquieto, segui pelo

    meio da rua, receoso e angustiado. A agonia queria me furtar o

    oxigênio e não me poupou de nenhuma sensação. A árvore

    enraizada na terra batida; transparecia tão desperta, mas ainda

    dormia; era somente a força de um vento gelado e sem coração,

    que balançava os seus galhos, porém não abalava o seu tronco.

    Os frutos caídos no chão seriam apanhados ou então pisoteados

    pelo ser mais desatento, mas o seu espírito permaneceria ali.

    O relógio marcava seis horas em mais um dia de domingo. A

    jaqueta preta que eu vesti não foi o suficiente pra me proteger do

    inimigo matinal. Foi preciso esfregar as mãos para produzir

    calor e mesmo assim, continuei sentindo frio; e os pelos de meus

    braços se arrepiavam em concordância. Da minha boca saia o

    vapor de fumaça que eu soprava sobre as mãos e em seguida as

    guardava no bolso da calça jeans.

    Diante da esquina me encontrei com a avenida em subida

    bastante acentuada, mas eu precisava descer e não quis seguir o

    mesmo caminho. Eu era dono da minha própria história e

    prisioneiro de minhas escolhas, porém gritava aos quatro cantos

    a minha liberdade enganando a mim mesmo. Quase todos já

    sabiam que a vida não era tão doce assim.

    Cheguei ao ponto de partida, na casinha sucateada e coberta

    de ferrugem, corroída pelas águas e frequentada diariamente

    pela população. Ela me recebeu indiferente e não guardava mais

    ninguém, porque fora destituída de sua função, justamente por

    não ter mais um teto descente. Mas ainda restavam as colunas

    9

    rabiscadas com declarações de amor e o assento com a tinta

    descascando as histórias ouvidas em silêncio.

    Consultei o relógio e já eram seis e trinta e cinco. Esperava o

    ônibus surgir por dentre as ruas e ordenava a sua chegada, mas

    ele não me obedeceu. Os lábios desprotegidos ressecaram-se

    devido á baixa temperatura e a friagem atordoava os meus

    ouvidos. Não havia jeito. Eu tinha que suportar.

    Três carros desceram pela rua e desapareceram logo após

    terem cruzado a ponte; sem o seu rio e coberta pelo matagal.

    Não havia como saber o destino dos carros, mas levantei várias

    possibilidades como se eu estivesse na direção do veículo. Eu

    não imaginava que era chegado o momento de ser conduzido

    pela vida, logo eu que acreditava ser dela o motorista e

    cobrador. Eu era um passageiro e tudo passava diante de mim.

    O pensamento ecoava na cabeça e se espalhava pelo restante

    do corpo. Aquele sonho estranho me deixou transtornado e a

    minha alma só teria sossego, quando todas as satisfações fossem

    esclarecidas. Havia se passado muito tempo, desde á ultima vez

    que o vi com vida e pra não morrer de remorso eu precisava

    revê-lo de qualquer maneira.

    Eu pressentia que algo iria acontecer, mas não sabia com

    precisão o que de fato ocorreria. Completamente vulnerável,

    joguei com a própria sorte, tentaria outra vez, por mais difícil

    que fosse reconhecer o orgulho que havia em mim. Eu seguiria

    em frente até reencontrar aquele homem egoísta que um dia

    chamei de papai... Bom, era assim que eu pensava...

    10

    No Ponto De Partida

    O surgimento de uma senhora interrompeu o meu momento

    de divagação íntima. Ela descia a rua bem devagar e presumi a

    sua idade; de no mínimo uns oitenta anos. A saia branca e a

    blusa foral nos tons da cor azul buscavam a combinação com o

    lenço preto desbotado em sua cabeça. Trazia presa á sua cintura

    uma bolsa preta surrada que escondia uma recordação de um

    tempo antigo, pois só poderia ser essa a explicação para que

    usasse algo tão ultrapassado. Dei um leve sorriso, pois ‘’gosto

    não se discute’’; já dizia a minha avó. As duas eram mesmo

    semelhantes em quase tudo e tive a impressão de que as pessoas

    mais velhas são todas iguais ou então somos nós que a vemos do

    mesmo jeito sem levarmos em conta a sua trajetória.

    Fiquei curioso pra saber o motivo que a levava a sair de casa

    tão cedo; e a minha pergunta foi logo respondida quando me

    atentei aos outros detalhes que trazia consigo na caminhada. De

    cabeça baixa, ela demonstrava o passar de seu tempo e o

    cansaço da vida, mas mesmo assim ela não se entregava e seguia

    arrastando o seu carrinho velho pelo asfalto. A caixa de isopor

    revestida de papel alumínio e fita adesiva; parecia bem segura

    nos desencontros das cordas que impediam que caísse de um

    lado para o outro.

    Ela não vestia nenhum agasalho e não havia justificativa para

    que não se sentisse incomodada com o frio, talvez já estivesse

    acostumada e a sua pele áspera e enrugada já não se feria como

    nos tempos de sua mocidade. Ela era experiente enquanto eu era

    11

    mais um desses jovens que esfrega as mãos uma na outra e em

    seguida as coloca sobre as duas orelhas geladas, devido á

    vulnerabilidade ao vento e a friagem. Nessas horas me fazia

    falta um capuz. Eu tremia de frio e usava todas as artimanhas

    que conhecia pra poder esquentar o meu corpo a todo custo e ela

    permanecia indiferente sem se queixar de nada.

    Ela encostou o seu carrinho e logo senti o cheiro dos

    salgados. Sentou-se no banco sem se preocupar com a ferrugem

    e o telhado descoberto; deslizou a sua mão sobre a coluna, como

    se marcasse o seu território e tudo lhe parecia agradável e eu não

    concordava com a sua atitude de maneira alguma.

    - Bom dia!

    - Bom dia pra senhora também!

    Permanecemos em silêncio após os cumprimentos por boa

    educação e obrigatoriedade. Da minha parte iria ser desse modo

    até o fim, mas eu não contava com a sua pré-disposição em

    conversar com pessoas estranhas.

    - O ônibus já passou?

    - Estou aqui, já faz alguns minutos, mas ele ainda não deu

    sinal de vida.

    - No fim de semana eles costumam demorar um pouco mais,

    mas pelo horário, daqui a pouco deve passar. – olhou o terreno

    baldio que estava do outro lado da avenida e fixou nele, toda a

    sua atenção.

    Não havia nada de interessante em um terreno coberto de

    mato e invadido pelo lixo. Essa senhora era muito estranha.

    - Qual é o seu nome?

    - Me chamo Maurício e a senhora?

    12

    - O meu nome é Maria, mas a verdadeira está no céu!

    - A verdadeira?

    - Sim. A mãe de todos nós, a Virgem Maria!

    - Ah... Agora sim, eu entendi.

    - Você está indo para o trabalho?

    - Eu estou de folga. Na verdade eu vou á casa de meu pai.

    - Você está certo. Tem mais é que aproveitar e sair um

    pouco. Eu não vou visitar ninguém, porque tenho que trabalhar

    pra pagar as minhas contas, se não morro de fome.

    - Desculpe, mas a senhora já não tem mais idade para

    trabalhar.

    - Eu sou aposentada, mas o que recebo do governo, mal dá

    para pagar os remédios que tomo para a pressão e diabetes.

    - E os seus filhos, não te ajudam?

    - Eu tenho oitenta e dois anos e trabalho vendendo salgados

    no terminal para completar a renda.

    - Mas e os seus filhos? Onde é que eles estão?

    - Eu não sei por onde eles andam. Tive seis filhos e todos

    eles foram embora e me deixaram sozinha. Eu sei que não fui a

    melhor mãe do mundo, mas fui o que pude e mesmo assim eles

    voaram – percebi a tristeza em suas palavras - Eu vou levando a

    vida do jeito que dá, até que a morte venha e me leve para junto

    de meus pais.

    - E a senhora é casada?

    - Eu sou viúva há dois anos, meu marido morreu de câncer de

    próstata.

    - Desculpe, eu não sabia.

    - Desculpa por quê? Como é que você iria saber disso?

    13

    - E desde então, a senhora vive sozinha?

    - Lá em casa hoje em dia, é Deus e eu e mais ninguém.

    - Poxa! Eles são muito ingratos!

    - Ah... Mas eu não tenho mágoa de nenhum deles, porque

    não criei filhos pra mim. Eu os criei para o mundo e eles voaram

    pra seguir com suas vidas e eu sigo com a minha.

    - Tudo bem, mas a senhora cuidou deles quando eram

    pequenos e agora que precisa de ajuda, o mínimo que eles

    deveriam fazer é retribuir os anos de dedicação que a senhora

    deu a cada um deles. É o que eu penso sobre isso.

    - A gente colhe o que planta. – voltou os seus olhos para o

    terreno e eu ainda não havia encontrado nada de extraordinário.

    - A senhora acabou de dizer que foi uma boa mãe, então não

    tem motivos para colher á ingratidão de seus filhos.

    - Você está certo. Eu fui uma boa mãe, mas os meus filhos

    colherão a ingratidão em suas crias, se isso for necessário.

    - O que aqui se faz se paga aqui. – conclui a sua frase.

    - Você viu meu cachorrinho?

    - Que cachorro?

    - Aquele ali do outro lado, no terreno vago. – apontou com os

    olhos.

    - Então era isso que a senhora estava olhando o tempo todo?

    - O corpo dele já está inchado e cheio de moscas. – analisou -

    Ele viveu comigo muitos anos! – suspirou em tristeza – A parte

    ruim de ter criação dentro de casa é justamente o apego que a

    gente desenvolve pelos bichinhos. Só que aí depois eles morrem

    e tudo se acaba. Na semana passada o meu galo morreu e agora,

    só tenho uma galinha sozinha ciscando no meio do quintal.

    14

    - E foi á senhora que jogou o corpo dele ali?

    - O senhor Antônio me disse que ele foi atropelado. Eu saio

    para trabalhar bem cedo e quando voltei, ele já estava ali.

    - É muito triste, ainda mais quando a gente se apega ao

    animal. Quando eu era mais novo, tive vários cachorros, mas

    depois que quatro deles morreram um atrás do outro eu acabei

    por fim desistindo de criar qualquer animal dentro de casa.

    - A vida é assim mesmo...

    - Daqui a pouco ele vai começar a feder. Não é melhor a

    senhora enterrá-lo?

    - É melhor deixar que a natureza faça o seu trabalho.

    - Ah, eu não daria conta, pois tenho pena do bicho.

    - Você iria querer que as pessoas tivessem pena de você,

    quando morresse?

    - O que é que isso tem haver com o que estamos falando?

    - Você acha que não tem nada haver?

    - Claro que não. Uma coisa é o cachorro e outra coisa sou eu

    que sou gente!

    - Você é muito novo meu filho e ainda tem uma vida inteira

    para aprender muitas coisas.

    - Eu não entendi nada. O que a senhora quis dizer com isso?

    - Você não entendeu, porque ainda não chegou a hora certa.

    - A hora certa de quê? - Ela me deixou encucado e até pensei

    que estivesse caducando, pois parecia não dizer mais coisa com

    coisa ou seria eu que havia ficado louco; quando decidi

    conversar sobre a morte do cachorro em um ponto de ônibus,

    com uma senhora que eu nem conhecia?

    - Vocês jovens, são muito ansiosos e querem saber de tudo!

    15

    - Não são somente os jovens que possuem essa ansiedade.

    Qualquer pessoa hoje em dia é ansiosa por natureza.

    - No meu tempo as coisas não eram assim.

    - Eu sei... A senhora não vai responder a minha pergunta?

    - Não!

    - Mas isso não é justo!

    - E você acha que tem condições de medir a justiça?

    - Como é que é? Ah pelo amor de Deus! Se não quer dizer,

    tudo bem deixe pra lá. Eu também não quero mais saber disso.

    Após a minha resposta, o silêncio pairou entre nós dois e eu

    havia dado por encerrada a nossa conversa, mas ela depois de

    alguns minutos calada, insistiu outra vez em um dedo de prosa.

    - Você e seu pai, se dão bem?

    - Sim nos damos bem. Qual é o motivo da pergunta?

    - É apenas curiosidade de gente velha. Eu não sei se você

    percebeu, mas eu sou uma velha!

    - Se a senhora não tivesse falado, eu nem iria perceber.

    - Isso é jeito de falar comigo?!

    - Eu não disse nada demais. Ninguém sai perguntando essas

    coisas, apenas por mera curiosidade.

    - É... Realmente. – concordou.

    - Esse ônibus está demorando muito e eu estou com tanta

    pressa. – tentei mudar de assunto.

    - A sua reação já comprova que as coisas não são como você

    disse, tanto é que já está mudando a conversa. Você não gosta

    de falar sobre isso, eu sei. O que te incomoda, meu filho?

    - A senhora está enganada. Está tudo bem! É que eu não

    gosto de ficar falando da minha vida pra qualquer pessoa.

    16

    - Eu não sou qualquer pessoa, mas se não quer dizer também

    não vou insistir. Desculpe, se fui intrometida.

    - Não precisa pedir desculpas.

    - Você estuda?

    - Eu já terminei a faculdade e agora só vivo pelo trabalho.

    - Você é casado, tem filhos?

    - Eu sou casado e não penso em ter filhos por agora. É muita

    responsabilidade cuidar de uma criança!

    - Ah, isso é verdade, os dias estão difíceis. Quando os meus

    filhos eram pequenos, sempre aconselhei o estudo, para que eles

    se tornassem alguém na vida, porque sem estudo, nós não somos

    nada.

    - É... Estudar é muito importante!

    - Eu já estou velha e ainda preciso trabalhar. E no meu tempo

    não existia a metade das oportunidades que existem hoje; muitas

    coisas melhoraram enquanto outras pioraram.

    - Hoje só não estuda quem realmente não quer, mesmo...

    - Olhe pra mim! Eu levanto todos os dias de manhãzinha e

    vou para o terminal vender os salgados e tenho que chegar cedo,

    se não eles roubam o meu lugar.

    - E já faz muito tempo que a senhora trabalha lá?

    - Há quase dez anos e eu sinto que irei morrer trabalhando no

    meio daquele mar de gente.

    - Ah, então todos á conhecem!

    - Sim, todos me conhecem, mas apenas me conhecem.

    - Como assim?

    - Ninguém me reconhece de verdade.

    - Eu continuo sem entender.

    17

    - As pessoas sabem quem eu sou, mas não ligam para o que

    acontece na minha vida.

    - Eu entendo. A senhora se sente muito sozinha?

    - Ás vezes eu sinto falta de alguém, mas logo passa. E quem

    é que vai se importar com uma velha cheia de problemas como

    eu? Quem gosta de velho é reumatismo! – gargalhou da

    situação.

    - É complicado!

    - Escuta. Eu pego o ônibus todos os dias, mas nunca te vi por

    aqui. Tem pouco tempo que mora aqui no bairro?

    - Eu moro aqui há quase quatro anos, mas já faz um tempo

    que não pego o ônibus coletivo nesse ponto.

    - Você tem carro?

    - Sim, mas ele resolveu estragar justo hoje e por isso vou ter

    que ir de ônibus para á casa do meu pai.

    - E ele mora muito longe daqui?

    - É quase uma viagem para outra cidade. – brinquei com a

    distância.

    - Não é qualquer pessoa que anima sair de casa no final de

    semana pra visitar os pais e ainda por cima de ônibus. Você

    deve gostar muito dele. – contemplou – E você está certo. Tem

    que honrar os seus pais enquanto eles estão vivos, porque depois

    que morrerem, aí será tarde demais. Eles devem sentir muito

    orgulho do filho que tem!

    Fiquei sem graça com as suas palavras e sem resposta para

    entregar. Aquela senhora parecia ter o dom de ler a mente das

    pessoas e eu já estava bastante intrigado com tantas indiretas,

    direcionadas, diretamente á minha história. Eu queria acreditar

    18

    que ela desconhecesse qualquer detalhe, mas estava difícil.

    Constatei por conta própria que essas pessoas mais velhas

    pegam as coisas no ar e soltam sem medo pela boca.

    Ouvimos um som característico que interrompeu o nosso

    interrogatório paralelo e com os nossos olhares na mesma

    direção, não enxergamos nada, devido á neblina que ofuscou as

    nossas vistas, mas sabíamos que ele estava perto e não tardaria

    em chegar.

    Outra vez, o som se fez ouvir mais alto, só que dessa vez

    mais próximo de nós; fazendo barulho e soltando fumaça pelo

    escapamento, ele vinha; o nosso ônibus. Levantei e abanei a

    mão, em sinal de parada ao motorista, mas foi em vão. Ele

    passou direto, porque estava lotado e não havia espaço para

    mais ninguém lá dentro. Ele desceu a ladeira e repetiu o

    caminho dos automóveis e por fim desapareceu de nosso

    alcance quando cruzou a mesma ponte que separava os dois

    bairros, deixando pra trás o rastro de fumaça preta na avenida e

    em nós dois a sensação de ter ficado para depois. Não houve

    outro jeito a não ser aguardar o próximo que viria logo em

    seguida.

    - Mas por que ele não parou?

    - A senhora não viu que estava lotado?

    - Estava lotado na frente, mas o fundo estava vazio. Mas esse

    povo também pudera, fica amontoado perto da catraca e não sai

    de jeito nenhum. Desse jeito eu irei chegar atrasada.

    - As pessoas estão quase saindo pela janela e todas estão

    exprimidas umas nas outras e a senhora ainda diz que caberia

    19

    mais gente? Se entrasse mais alguém ali iria faltar até o ar pra

    respirar!

    - Você deve está achando estranho, porque está acostumado a

    andar de carro, mas a realidade de pobre é essa, meu filho!

    - Eu já andei muito de ônibus e sei das dificuldades que

    existem e isso pra mim não é nenhuma novidade.

    - Eu acho que você escolheu o dia errado pra voltar ás

    origens.

    - Eu não quis voltar ‘’ás origens’’ e nem tive essa escolha. O

    meu carro quebrou e já que estou aqui, não vou voltar pra casa.

    - Você é animado!

    - Todos os que estavam naquele ônibus são bem mais

    animados do que eu.

    - Quem é pobre tem que ser corajoso por natureza!

    - A senhora é muito engraçada!

    - Eu estou mentindo? Essa vida não é de Deus, meu filho!

    - Eu não sei de nada...

    - Então você não é pobre, porque qualquer pobre saberia

    disso!

    - A senhora fala umas coisas...

    - Eu só falo o que é a verdade.

    - Nem sempre...

    - Ah, sossegue rapaz! – tentou me intimidar – E esse

    motorista vai ver só comigo! – ameaçou sem munição aparente.

    A neblina desapareceu e o relógio no pulso, entregava ás sete

    horas da manhã acompanhada de um dia mais claro. Os pássaros

    voavam e cantavam em agradecimento por mais um amanhecer.

    Os cães que viviam nas ruas saíram dos becos, alongaram seus

    20

    corpos, sacudiram os pelos e abriam as mandíbulas, bocejando

    como gente. Os gatos observavam tudo o que acontecia sem

    prestar contas á ninguém. Eu observava cada detalhe e percebi

    que já havia muito tempo que eu não me atentava para certas

    coisas tão corriqueiras.

    Dona Maria demonstrou que também observava os mesmos

    acontecimentos triviais, mas permaneceu em silêncio sem soar o

    alarme de tudo que chamara a sua atenção.

    Escutamos novamente o som da chegada de mais um ônibus

    e nos preparamos para o embarque e dessa vez, Dona Maria foi

    quem se levantou primeiro e juntos fizemos o sinal ao motorista

    que parou de portas abertas para nós dois.

    Entrei sem olhar para trás, inseri o ticket, passei a catraca e

    nem me dei conta de que ela não estava mais comigo. Ela

    caminhou em direção á porta do meio para subir com o seu

    carrinho e então me chamou com um tom de voz imperativa,

    mas ao mesmo tempo amável e doce:

    - Ande depressa rapaz! O que você está esperando para vir

    me ajudar a subir com esse carrinho?

    Estava tão desatento que não cogitei a obrigação em ajuda-la,

    mas também não questionei. Meio envergonhado, tratei de

    ajudar sem demora porque seria bem melhor não contrariar, pois

    o seu gênio se parecia muito com o da minha mãe e se eu

    demorasse mais um pouco, talvez ela fosse capaz de me dar uma

    surra ali mesmo. Eu não iria pagar pra ver.

    - Vamos depressa! O motorista não tem todo o tempo do

    mundo! – alertou – Obrigado! – retornou a porta principal e

    rodou a catraca. - Que Deus lhe abençoe!

    21

    - De nada! – retruquei.

    O ônibus estava praticamente vazio e mesmo assim ela

    sentou-se ao meu lado. Acho que ela deve ter gostado de mim,

    porque não havia outro motivo para ficar assim tão perto.

    Apesar de ser muito curiosa e autoritária, era uma velha

    guerreira e sua força vital deixaria qualquer pessoa admirada e

    abismada com a sua audácia peculiar. Por um momento me foi

    possível supor o motivo dos seus filhos terem ido embora...

    - Você precisa ser mais esperto, pois a vida não espera pelos

    desatentos e também não te aguarda no ponto certo. Se você não

    corre atrás, então, ela te deixa para trás!

    - A senhora se parece com a minha avó, o tempo todo dando

    conselhos e mais conselhos. Como pode parecer tanto!

    - Eu tenho a idade pra ser a sua avó e você sabe que tem que

    me respeitar em tudo

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