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Justiça:  uma análise do livro V da Ethica Nicomachea de Aristóteles
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E-book187 páginas2 horas

Justiça: uma análise do livro V da Ethica Nicomachea de Aristóteles

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Sobre este e-book

Este livro propõe-se a analisar o livro V da Ethica Nicomachea (EN) de Aristóteles, especialmente a conceituação que o filósofo desenvolve para a virtude da justiça, com todos os seus desdobramentos. Com efeito, o livro V, dedicado com exclusividade por Aristóteles à investigação sobre o justo, denota a centralidade dessa virtude em particular para a filosofia moral do autor. Apesar de alguns comentadores terem se debruçado sobre a ideia de justiça em Aristóteles, trata-se de um tema por vezes negligenciado. Talvez isso se deva ao fato de o texto, de difícil compreensão, assemelhar-se mais a um compilado de ideias inacabadas, nem sempre postas harmonicamente, apresentando, por isso mesmo, diversos pontos controvertidos. Diante de tais dificuldades, o intuito do presente trabalho é destrinchar o significado da virtude da justiça para Aristóteles, seja a partir da leitura direta do livro V da EN, seja a partir da investigação bibliográfica das principais obras de literatura secundária, levantando-se, assim, além dos conceitos básicos inerentes à justiça, os principais pontos de obscuridade do texto aristotélico e também de disputa entre os estudiosos. Sempre que possível, foi realçada a herança platônica que pode ser notada nas ideias que Aristóteles engendrou especificamente sobre a virtude da justiça.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de jul. de 2022
ISBN9786525246062
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    Justiça - Adriane Nogueira Naves Perez

    1. INTRODUÇÃO

    Há quatro trabalhos sobre ética atribuídos a Aristóteles que foram preservados: a Ethica Nicomachea, a Ethica Eudemia, a Magna Moralia e alguns fragmentos do Protrepticus¹.

    A Ethica Nicomachea² (EN) é, reconhecidamente, a principal obra por meio da qual Aristóteles desenha a sua teoria ética. Nela, Aristóteles, a par de definir o que é o bem para o homem, empreende uma análise em separado das variadas virtudes morais e intelectuais por ele concebidas. Enquanto dez virtudes morais são discutidas nos livros III e IV da EN, à virtude da justiça, especificamente, é dedicado um livro inteiro, o livro V, que é um dos três livros compartilhados com a Ethica Eudemia, na qual ocupa a posição de livro IV.

    A atenção especial dada à justiça entremostra que tal virtude é, para Aristóteles, considerada central em relação às demais virtudes morais analisadas na EN. De fato, o caráter medular da virtude da justiça para Aristóteles pode ser extraído, entre outros trechos, da leitura da conclusão apresentada na EN V³, em que a justiça é colocada de um lado e todas as demais virtudes morais de outro: Fique determinado deste modo acerca da justiça e das outras virtudes, as virtudes morais. Aliás, o protagonismo conferido à justiça não apenas por Aristóteles, mas também por outros filósofos gregos da antiguidade, a exemplo de Platão e Sócrates, faz essa virtude merecedora de uma investigação mais acurada.

    Entretanto, não se pode compreender de forma plena o tema da justiça em Aristóteles sem que se obtenha, antes, ao menos um vislumbre de sua teoria ética. Por isso, precedentemente ao estudo da justiça propriamente dita, será necessário, a fim de melhor contextualizar o presente trabalho, fazer uma breve exposição sobre a concepção ética que Aristóteles desenvolve, de um modo geral, na EN, especialmente a partir da exploração dos argumentos aristotélicos sobre o que é bem para o homem, assim como sobre as relações entre o bem, a eudaimonia e a virtude da justiça.

    Desse modo, após apresentados os principais pontos atinentes à ética de Aristóteles, serão desenvolvidos os conceitos básicos que envolvem o termo justiça. Nessa esteira, importante ressaltar que a justiça, para Aristóteles, envolve não apenas uma única e simplista significação. Sem chamar a atenção para o seu desacordo com Platão, que propõe para a justiça uma definição única, Aristóteles, já ao abrir o livro V, faz convergir na justiça duas características: atribuir a alguém a qualidade de ser justo significa dizer que esta pessoa age de acordo com a lei e/ou que é equânime ou igual. Como se vê, a ideia de justiça de Aristóteles possui dois elementos principais: a legalidade e a igualdade. Aliás, permeia toda a obra em estudo a frase o justo é o que se ampara na lei e o igual⁴. Ambos os elementos, a legalidade e a igualdade, servem de esteio aos diferentes conceitos que Aristóteles extrai do termo justiça, que, por sua vez, é por ele interpretado sob duas perspectivas: a justiça geral/universal, de um lado, e a justiça particular, de outro.

    A primeira perspectiva, de justiça geral, é fundada na legalidade. Esse fundamento não é isento de críticas e controvérsias. Para analisá-lo, faz-se imprescindível, em um primeiro momento, perscrutar o que Aristóteles entende por lei: seria apenas a norma positivada ou também os usos e costumes? Em um segundo momento, ao meditar sobre a ligação que Aristóteles estabelece entre lei e justiça, torna-se inescapável concluir que nem só de boas leis é feita uma sociedade. Ora, como se poderia dizer justa a conduta de um indivíduo que obedece a uma lei corrompida? Ao que parece, a ideia aristotélica de justiça universal pressupõe a existência de leis retas, voltadas ao bem da coletividade. Esses problemas, que suscitam inúmeros debates, serão objeto de análise no capítulo 4, tópicos 4.1 e 4.2.

    De outro lado, é a justiça geral que Aristóteles considera ser a soma de todas as virtudes, orientando-se ao bem do outro, sendo qualificada na EN como virtude completa ou inteira. O conteúdo de virtude completa ou inteira, ou melhor, o que Aristóteles quis dizer com isso no concernente à justiça, é alvo de polêmicas, as quais serão analisadas no corpo desta dissertação, mais especificamente no capítulo 4, subtópico 4.3.

    Em seguida, obedecendo tanto quanto possível à cronologia do livro V da EN, será examinada a justiça particular, espécie da justiça geral, relacionada diretamente com perdas e ganhos e alicerçada na igualdade. Aliás, como se verá no decorrer deste trabalho, a apreensão do significado de igualdade para Aristóteles, que difere do senso comum, é de grande relevo para compreender os conceitos de justiça distributiva e de justiça retificatória (ou corretiva), duas subespécies da justiça particular que serão estudadas nos tópicos imediatamente seguintes.

    A propósito, a justiça distributiva, como o próprio nome já revela, relaciona-se com a distribuição de bens e honrarias na polis, possuindo uma estreita conexão com a noção de mérito. Aristóteles pregava que se deve conferir maior número de bens a quem for mais merecedor. De outro lado, a justiça corretiva relaciona-se com a reparação de um ato injusto, que, para Aristóteles, deve dar-se na exata medida do dano causado, dependendo, portanto, para se concretizar, apenas do retorno ao status quo ante. A simples devolução de um objeto roubado, por exemplo, basta para a realização da justiça corretiva, que, para Aristóteles, não vem acompanhada de nenhum tipo de punição.

    Para cada uma destas subespécies de justiça particular Aristóteles estabeleceu uma proporção matemática distinta. A justiça distributiva pode ser lograda a partir da proporção geométrica, que leva em conta o mérito dos agentes envolvidos na distribuição, permitindo, assim, que seja considerada justa uma distribuição mesmo quando não assentada na igualdade meramente numérica, isto é, na divisão puramente igualitária de bens entre os beneficiados. Diferentemente, a justiça corretiva está concatenada à proporção aritmética, pois, ao contrário do que ocorre na justiça distributiva, as diferenças de valor (ou mérito) entre os agentes não alteram a proporção entre o ato cometido e o ato que corrige a distorção causada. Dito de outro modo, a justiça corretiva objetiva o restabelecimento das condições iniciais existentes antes da prática do ato injusto. Ambas as conceituações serão abordadas de maneira mais pormenorizada em tópicos próprios (5.1 e 5.2, respectivamente).

    Ainda a título introdutório, faz-se mister acrescentar que a justiça, como espécie de virtude, também está submetida à doutrina da mediedade, embora de um modo um pouco diferente. Essa doutrina foi desenvolvida por Aristóteles no livro II, capítulo 6, da EN, que será também objeto de estudo em separado neste trabalho. Em brevíssimas linhas, para Aristóteles, tanto a teorização geral das excelências de caráter quanto a descrição de cada uma destas virtudes em particular estão condicionadas ao parâmetro correspondente ao meio-termo ou à justa medida. Com efeito, ao apresentar sua doutrina da mediedade na EN, Aristóteles traz ao leitor uma ideia geral segundo a qual as virtudes éticas, todas elas, podem conter extremos, tanto pela deficiência quanto pelo excesso, de forma que o agir correta e moralmente corresponderia a um ponto médio entre estes dois polos. Assim, a doutrina da mediedade propõe, resumidamente, que no campo moral o ponto de exatidão da virtude encontra-se na justa medida. Dessa forma, a teoria aristotélica da mediedade, quando aplicada às virtudes, implica que a pessoa virtuosa age correta e moralmente ao buscar o termo médio entre dois caminhos viciosos, um na direção do excesso, outro na direção da falta. Além disso, a rigor, a mediedade costuma manifestar-se no âmbito das disposições de um mesmo agente, que pode agir de forma corajosa, covarde ou temerosa.

    No entanto, no caso específico da justiça, a incidência da doutrina da mediedade destoa das linhas gerais teóricas apresentadas por Aristóteles no livro II da EN. Inclusive, Aristóteles é expresso ao mencionar que, na justiça, a mediedade não se aplica exatamente do mesmo modo como acontece com as demais virtudes. Segundo ele aduz⁵:

    Foi esclarecido, então, o que é justo e o que é injusto. Estando estas noções elucidadas, fica claro que a ação justa é um meio termo entre cometer uma injustiça e sofrer uma injustiça, pois consiste em ter mais; o outro, em ter menos. A justiça é uma mediedade, porém não do mesmo modo como as virtudes anteriores, mas porque concerne ao que é igual; a injustiça, aos extremos.

    Assim, umas das diferenças identificáveis quando da aplicação da doutrina da mediedade à justiça é que, nesse caso, ambos os polos da relação são constituídos por um mesmo vício, a injustiça. Por outro lado, no caso da justiça, a não observância da mediedade manifesta-se em diferentes pessoas, cada qual em uma situação oposta: de um lado, quem comete a injustiça, isto é, o excesso, e de outro quem a sofre, e, portanto, encontra-se em uma situação de falta desta mesma virtude. Em razão dessas diferenças na incidência da doutrina da mediedade sobre a justiça, há comentadores que defendem que esta teoria seria, em verdade, um esquema geral desenvolvido por Aristóteles, apropriado tanto para as virtudes de caráter, aqui incluída a justiça, quanto para as constituições. Como se poderá notar no decorrer da presente dissertação, este ponto da EN tem despertado numerosas dúvidas nos estudiosos e diferentes críticas e interpretações, sendo esse o motivo que levou à inclusão, nesta dissertação, de todo um capítulo dedicado ao tema.

    Para além disso, considerando que a presente pesquisa se propõe a uma análise geral do livro V da Ethica Nicomachea, serão também apresentados os seguintes eixos temáticos: a) a voluntariedade como requisito inerente aos atos justos; b) a reciprocidade; c) o justo político, compreendendo o justo natural e o justo convencional; d) justiça e equidade; e) a metodologia utilizada na investigação teórica efetuada por Aristóteles no livro V da EN.

    Em suma, pretende-se desenvolver uma aprofundada análise do tema da justiça, aqui retratado segundo a ótica aristotélica e levando-se em conta a sua própria concepção geral de ética, sem desconsiderar as outras teorias éticas com que Aristóteles dialogava à época, notadamente a platônica.

    Finalmente, registre-se que o estudo da justiça, situada em um ponto de confluência entre a ética e a política, é de extrema relevância tanto para a Filosofia quanto para o Direito, estando presente em discussões filosóficas que perpassam da antiguidade à modernidade, o que, por si só, justifica a investigação sobre alguns aspectos desta temática. Afinal, refletir sobre a justiça, tendo como foco precisamente o pensamento aristotélico, amiúde voltado à concretização daquilo que se nomina boa vida, apenas alcançada por intermédio da virtude, é também um meio de induzir bases para a construção de uma sociedade mais moral e mais justa.


    1 Quanto a essas duas últimas obras, não há consenso sobre se a autoria é, de fato, aristotélica.

    2 Doravante EN. Para o livro V da EN está sendo utilizada a tradução de Zingano (2017), baseada na edição mais recente em grego, de Susemihl-Apelt (Teubner 1912). Para os demais livros da EN, está sendo utilizada a tradução de Broadie e Rowe (2002), baseada na edição de Bywater (OCT 1894).

    3 EN V 1138b13.

    4 Vide, por exemplo, os seguintes excertos do livro V da EN em que explicitada a relação entre justiça e legalidade: 1129a33-36; 1129b1;1129b11-15; 1130a24; 1130b7-12; 1130b23-25.

    5 EN V 1133b30-1134a1

    2. UMA BREVE ANÁLISE SOBRE A CONCEPÇÃO ÉTICA DE ARISTÓTELES

    Aristóteles, ao abrir a EN, desde logo direciona o objeto do seu estudo: o bem. Segundo o autor expõe no livro I, toda arte e toda investigação, assim como toda ação e escolha, parecem visar a algum bem⁶. O bem, como interesse precípuo do homem, por ele almejado em tudo o que faz, é, pois, o alvo primordial da investigação aristotélica. E se o bem é em tudo buscado, conveniente que se tenha uma definição precisa de seu conteúdo.

    Contudo, antes de adentrar especificamente ao conteúdo do bem, importante notar que o papel fundamental que o bem desempenha na teoria ética de Aristóteles advém, em certa medida, de uma herança platônica. De forma semelhante a Aristóteles, Platão, na República⁷, menciona que a ideia do bem é a mais elevada das ciências, e que para ela é que a justiça e as outras virtudes se tornam úteis e valiosas⁸. Platão também diz que o bem é o que todas as almas buscam atingir⁹. Ou seja, Platão, tal qual Aristóteles, confere primazia ao bem ao afirmar que tudo o que fazemos, fazemos em busca do bem. Em seguida, na República, Platão passa a discorrer especificamente sobre a sua compreensão do tema, introduzindo o que Santas (2001, p. 167) chama de teoria metafísica da forma do bem. Importante destacar que, de acordo com Santas (2001, p. 168), as observações platônicas sobre a forma do bem, extremamente abstratas e formais, permanecem obscuras para muitos comentadores dos últimos séculos¹⁰. Entretanto, o estudioso

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