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AS TRINCHEIRAS
AS TRINCHEIRAS
AS TRINCHEIRAS
E-book604 páginas9 horas

AS TRINCHEIRAS

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Sobre este e-book

Novela social de cunho introspectivo e psicológico, inspirada nas guerrilhas por posse de terras no Norte de Goiás, nos atuais municípios de Formoso e Trombas, com alusão fictícia a fatos. O narrador se insere no contexto, cria um universo de enredos drásticos bastante dramáticos, com conflitos, tramas de amor e sexo. As trincheiras são reais, quanto aos fatos regionais e, também, quanto ao ocultamento dos personagens sob nomes alusivos, quanto às máscaras em que se representam. O social determina o histórico dos fatos, num enredo não linear complexo e intrincado. Uma história aparentemente verdadeira, não fosse literatura de ficção, um grande poema em prosa, um épico alusivo à epopeia da interiorização do homem nos sertões bravios de Goiás. Vale a pena entrincheirar-se na aventura de ler!
IdiomaPortuguês
Data de lançamento2 de set. de 2022
ISBN9781526066251
AS TRINCHEIRAS
Autor

J. Simões

JOSÉ FERREIRA SIMÕES (J. SIMÕES)Nascido em São Luiz de Montes Belos, Goiás. Filho de Horácio Ferreira Simões e Maria Luíza de Jesus Simões. Veio para Brasília em 1962. Foi aluno no Ginásio Anchieta, em Silvânia – GO (1963/4), onde concluiu o curso primário. Voltou para Brasília em 1965. Concluiu os estudos: Letras e Pós-Graduação em Moderna Literatura Brasileiras pelo CEUB e Pós-Graduação em Administração Escolar, Faculdades Integradas da Católica de Brasília. Mestre em Educação, pela Universidade Católica de Brasília; Doutor em Educação, pela Wiscousin International University – USA. Foi professor de Português e Diretor do Centro Educacional 04 de Ceilândia, pela Fundação Educacional do DF. É Membro (Ex-Presidente, de 1994 a 2007) da Academia Taguatinguense de Letras – ATL. Foi professor de Língua e Comunicação na Universidade Católica de Brasília – UCB, 1996-2007; do Unieuro (2000-2005); Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa, Teoria Literária pela faculdade LS (2005-2009).

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    AS TRINCHEIRAS - J. Simões

    V Visita antes da morte

    Estou gravando essa conversa. Sei que você não vai falar nada. Se falar, não vou ouvir. Falo por nós dois. Meu psicólogo vai querer ouvir isso. Ele me encorajou a fazer essa viagem. Eu sempre quis vir aqui, mas o tempo não tem coragem. Será que você está enterrado aqui mesmo?

    Está escurecendo e o cemitério vai fechar. Preciso arrumar um hotel ou uma pensão. Vou marcar este lugar com alguma coisa, um monte de pedras. Amanhã cedo eu voltarei. Ainda nem contei por que vim.

    Um dia desses, no Vale do Amanhecer, disseram que sou médium. Só que não desenvolvi as potencialidades. Eu teria de me instruir e frequentar. Eu, hem? Para com isso! Tenho é medo. Acredito é em Deus. Nem sei que Deus é esse, mas acredito.

    Fui ao Vale do Amanhecer. Estava sentindo umas coisas. Uma senhora gorda, que é contínua no Ministério, passou perto de mim e disse que sentiu umas vibrações. Ela explicou, no seu linguajar, que havia um espírito muito forte em mim. Pediu permissão e desculpas e, no corredor mesmo, me deu um passe, alisou meu corpo todo e rezou.

    Disse que eu teria de ir ao Vale me consultar. Fiquei com aquilo, meio sem acreditar, mas com medo. Acabei indo. Foi aquela coisa estranha, sentindo uns arrepios. Uma hora, acho que desmaiei ou entrei em transe, não vi mais nada.

    Que confusão na cabeça! Tudo misturado! Quero falar tudo de uma vez, vira uma salada.

    Mamãe gostava de contar a sua agonia. Não vou contar, não. Aquela história de "homem não chora" não está me convencendo agora. Várias vezes enxuguei lágrimas.

    Você me desculpe, mas vou chorar de verdade. Já estou chorando. Para você, não preciso fazer segredo nem ter vergonha.

    Toda vez que ouvia mamãe contar essa história, eu chorava. Ela contou muitas e muitas vezes. Numa dessas vezes, contava para a minha madrinha. Levei uma surra daquelas. Ela se lembrou que fui eu quem deixou você dormindo na cama. Colocou a culpa em mim. Disse que eu é que não o olhei direito. Ela me bateu até eu quase desmaiar de tanta pancada, de dor. Acho que ela queria era me matar.

    Minha madrinha é que me acudiu e me salvou. Brigou com a mamãe. Disse que eu não tinha culpa. Era só uma criança, não tinha tamanho nem juízo para cuidar nem de mim.

    Mamãe entendeu e parou de me bater. Saiu chorando. Não me pediu desculpas e não me adulou. Fiquei no colo da minha madrinha que me deu banho de água de sal para curar as feridas.

    Foi a única vez que me lembro de ter sentado no colo da minha madrinha. Tinha uma penca de filhos, mas era muito bonita. Não tinha tempo nem para os filhos dela. Vivia fazendo queijos, requeijão, lavando, passando e cozinhando. Menino, quando chegava a andar, não precisava mais de colo. Mamãe concordava, papai, também. Assim é que eram as coisas. Menino que andava não tinha mais direito a colo".

    Há quase trinta dias estou viajando. Estou de férias. Estive visitando os lugares  por onde andei a vida toda. Quando eu era criança, ouvia dizer que as pessoas, quando morrem, antes de irem para o Céu ou para o inferno, passam por todos os lugares onde estiveram em vida. Foi isso que eu fiz? Será que estou morrendo? Acho que não estou morrendo, pelo menos dessa morte física. Não tenho nenhum mal, minha saúde está ótima.

    Quarenta e quatro anos! Tenho quarenta e quatro anos. Toda a vida tive problemas de consciência. Isso, nos últimos anos, ficou sério. Conversei com alguns médicos. Era a tal de crise dos quarenta. Pensei que passaria logo, quando chegasse aos quarenta e dois. Estou cada vez pior. Fiz exames médicos. Não tenho problemas. Sou forte, menino de roça já nasce forte.

    VI – O barulho da morte

    Traumatismo craniano e uma tal de Crupe. Sua cabeça estava trincada, mas o que estava matando era a tal de febre Crupe. O médico deu uns remédios, mandou dar banho e rezar. Só Deus poderia dar jeito.

    Você dormiu. A casa pobre. O pessoal estranho, calado. Falava só para responder ou perguntar. Tristeza de todo mundo. Eu não estava ali. Não estava triste, nem sabia o que era isso.

    O que é morrê?

    Perguntei ao Davi, com o meu palavreado de menino capiau. Ele me olhou com cara de autoridade:

    Fica calado!

    Eu me encolhi mais no meu canto. Queria entrar dentro da parede. Davi saiu para o terreiro, lá para longe. Fiquei, depois fui atrás. Cheguei perto dele. Estava chorando baixinho.

    Ocê tá chorano? Perguntei.

    Ele não respondeu. Senti um empurrão e vi o aceno me mandando sair. Saí. Fiquei na rua, pensando. Homem não chora. Meu irmão está chorando. Ele ainda não é homem, é menino. Menino é que chora. Morrer... O que é morrer?

    Quem morre vai para o Céu. Mamãe conversava essas coisas, explicava onde era o Céu: fica lá em cima, depois das nuvens e das estrelas.

    Você iria para o Céu, ficar pertinho de Deus. Fiquei feliz. Céu era o melhor lugar do mundo: lindo, feliz. Você iria para o Céu!

    O dia mais longo da minha vida! Todo mundo calado. Ninguém quis comer nada. Fiquei imaginando coisas.

    Você iria ficar juntinho de Deus. Lugar sem pecado, sem fome e sem coisa ruim. Por que é que todo mundo estava triste? Morrer não é coisa boa? Você não iria para junto de Deus?

    Havia o Céu e o inferno. Mamãe explicava. O inferno era debaixo da terra, num lugar horrível, cheio de fogo, de monstros e de capetas. Lugar de gente ruim, de menino que não obedece aos pais, que não estuda, não trabalha e não reza.

    Gente boa tinha de ser trabalhadeira, obediente, rezar e fazer o bem. Mamãe, à noite, antes da gente ir dormir, pegava o terço, rezava, fazia a gente rezar e contava as histórias. Eu escutava e obedecia. Rezava sem saber e sem falar direito. Eu não queria ir para o inferno!

    Eu, perdido nos meus pensamentos. Uma gritaria e uns choros. Meus irmãos chorando.

    Papai gritando com a mamãe:

    Ocê matô meu fio! Eu mato ocê!

    O povo da casa juntou em volta da cama. Acenderam velas. Todo mundo gritando, falando esquisito, sem jeito da gente entender. Cantaram músicas estranhas, pulavam e dançavam.

    Mamãe ficou meio louca, papai também. Era um gritando com o outro. Nem me lembro do que falavam, mas eram gritos, insultos, briga, um acusando o outro.

    Saí de perto. Nunca havia visto os dois daquele jeito. Se brigavam antes, era no escondido, no quarto, longe dos filhos.

    Muito tempo depois, fui saber que o povo daquela casa era Espirita. Mamãe é que contou. Naquele dia, na Missa, ao ver sua boca muito seca, foi procurar água. Casas fechadas. Todo mundo na Missa. Só achou aquela casa aberta.

    Chegou. Uma mulher na porta, uma velha. A velha tomou você dos braços da mamãe. Levou para dentro e fez um alvoroço danado. Rezou as rezas dela e chamou os outros. Não deixaram mais a mamãe sair. Papai chegou depois, com o médico que o Paulista mandou.

    O médico examinou. Não havia mais jeito. Juntou a queda, a fratura do crânio e a febre Crupe. Se tivesse sido socorrido, talvez há dois dias... Agora, só um milagre.

    Você morreu à tardinha. Confusão, choradeira, arruaça dos espiritas. Será que Deus gosta daquele barulho todo?

    Naquele dia, comecei a sentir uns arrepios, umas coisas. Havia hora que eu me sentia obrigando a falar e a fazer coisas. Acho que o seu espírito entrou em mim. Você se reencarnou? Será? Entendo, não. Há coisa que a gente pressente.

    Você no caixão. Era caixão improvisado. Um caixote, arranjado num armazém. Papai não tinha dinheiro para o caixão. O Paulista estava na campanha, correndo o município, não arranjou dinheiro para o seu caixão, os comícios rendiam mais votos.

    V

    À tardinha o candidato a governador iria chegar. O desgraçado chegou exatamente na hora em que você morreu. Essa vilazinha virou um inferno!

    Naquela confusão de gritos e choro, aquela reza dos espiritas, foguetes estourando, cantorias, gritos de parabéns e tiros de todos os tipos, mundaréu de gente na praça, fiquei olhando de longe, do fim da rua. Um formigamento estranho dominou o meu corpo.

    O Governador e o Paulista sumiram rumo à cidade de Pau Terra. O povo sumiu na noite. Você no caixão–caixote. Tinham trocado suas roupas. Você estava de camisola branca, aquela do seu batizado. Depois fiquei sabendo que o seu padrinho foi buscar, na égua velha dele.

    A noite durou um século! Tristeza e choro. Aquele povo rezando. Eu ficava de longe. Menino não se misturava com gente grande.

    Dormi encostado na parede, sentado no chão. Papai ficou parecendo uma estátua, naquele banco. Mamãe ficava em pé, perto de você, fazendo carícia na sua carinha, falando coisas e chorando.

    Já tarde, saí para mijar. Vi uns homens conversando, rindo e bebendo pinga. Achei que estava certo. Morrer era coisa boa, podia fazer festa, conversar e rir.

    Quando entrei, vi o papai se levantar e ir ver aquela arruaça. Fui atrás. Ele chegou perto dos homens que estavam bebendo, conversando e rindo. Deu aquela bronca.

    Era preciso respeitar os mortos! Onde já se viu ficar rindo e conversando num velório? Ainda num velório de criançaOs homens ficaram desconfiados, uns querendo responder e outros meio agitados. Papai mandou que fossem beber pinga no inferno! Que fossem conversar na casa deles! Que sumissem dali! Se eles não respeitavam os mortos, tinham de respeitar os vivos.

    Papai pegou um pedaço de pau e caminhou para eles. Só se viu foi homem abrindo espaço e correndo. Papai ficou no terreiro, urrando de raiva, esbravejando e querendo pegar pelo menos um deles. Queria matar alguém.

    E o dia não amanhecia nunca!

    Mamãe não deixou ninguém pôr a mão em você. Ela cuidou de tudo.

    Ninguém num ia pô a mão no fio dela, de jeito ninhum! Principalmente aquela muié zuerenta, aquela esprita. Esconjuro!

    VII Esperando o anjo

    Papai foi cavar a sua sepultura. Ele cavava e o Davi tirava a terra. Quando o buraco estava bem fundo, ele entrou dentro, contou: sete palmos.

    Um homem havia mostrado o lugar da sua cova. Era lá no fundo, perto daquele pau–terra. A cara feia daquele homem, pobre feito nós mesmos, mostrou o lugar e riu. Acho que ele riu da nossa dupla desgraça: ser pobre e estar com um morto na família. Enterro de pobre é no fundo do cemitério, no lugar dos miseráveis. É para não contaminar os defuntos ricos com o vírus da pobreza!

    Você deveria ir  para o  Céu,  não  era?  Você era um menino,  um  anjinho  inocente, como mamãe muitas vezes falou. Você iria direto para o Céu e um anjo viria buscar.

    Enquanto estava no galho daquele pau–terra, vendo aquela tristeza toda, achava que o mundo estava errado. O jeito dos adultos sentirem a morte estava errado. Como é que podia ser? Você ia para o Céu, mas estava sendo colocado debaixo da terra?  Quem ficava debaixo da terra não era gente ruim, que ia pro inferno? Você iria pro inferno?  Não estava certo mesmo!

    Eu pensava que um anjo desceria do Céu, pegaria você, com o caixão–caixote, e subiria para o Céu. E você estava sendo enterrado? Não estava certo!

    Papai foi o primeiro a jogar terra sobre o seu caixão, depois foi a mamãe, nossos irmãos e o resto do povo, aquela meia dúzia de gente.

    Acho que estava ali, no galho da árvore, é porque queria pegar uma carona com você. Estava pensando que, quando o anjo descesse, eu me agarraria nos pés dele, com toda a minha força, e subiria com você. Eu, também, iria para aquele lugar lindo, paraíso sem fome, sem surra de mãe e de pai. Olhando você sendo entupido de terra, fiquei revoltado. Estavam colocando você no inferno! Aí, eu gritei:

    – Não! Papai! Mamãe! Espera o anjo vim buscá ele! Ele vai é pro Céu! Aí é o inferno!

    Todo mundo olhou para mim. Papai só me deu um olhado, não sei se de raiva ou de dó,  baixou a cabeça, continuou jogando terra. O Davi fez sinal para eu calar a boca. Nessa hora é que a velha dona da casa olhou para o céu, estendeu os braços, depois olhou para mim e apontou aqueles braços pelancudos.

    Só nessa hora, chorei durante o seu enterro. Chorei. Estavam mandando você para o inferno. Chorei o resto do dia. Ninguém ligou para o meu choro. Depois do enterro, ouvi um homem falando e rindo:

    – Menino tem cada coisa!

    VIII – O sonho assassino

    Comecei a pensar em você assim que me deitei. O sono e o cansaço foram mais fortes. Dormi. Pensei que fosse ter aquele sonho. Você sabe qual é o sonho?

    No meu sonho da vida inteira, acontece uma coisa terrível! Eu volto a ser criança. Matei alguém e fugi. Nunca soube onde cometi esse crime. Sei que foi numa fazenda, mas nunca pude ver claramente o lugar. Foi uma briga. Peguei uma faca de cozinha e matei. Fugi para o mato e ganhei o mundo.

    O resto do sonho são as perseguições e as fugas. Constantemente, sonho com isso, cada vez de um jeito. A perseguição é feroz. À vezes são homens desconhecidos que me perseguem, ou são policiais. Sempre escapo, não sei como, mas escapo. Consigo cada fuga espetacular, passo em cada brecha e em cada brenha!

    Não matei ninguém quando era criança. Se esse sonho tivesse  começado depois daquele caso, eu entenderia, mas foi antes, muito antes. Aquele caso ocorreu quando eu tinha dezesseis anos. O meu sonho não quis me perturbar depois que comecei a viajar por onde vivi. Será que decifrei o danado? Sonho horroroso, um pesadelo! Situações diferentes, lugares diferentes, mas a história era a mesma: o assassino perseguido sempre e nunca apanhado.

    Toda vez que tenho esse sonho, o que não é todo dia, nem todo mês, fico sabendo de uma notícia de morte, geralmente um assassinato de parente ou de amigo. Será que eu tenho parte com o demônio? Será que o cão me avisa dessas coisas? Arrenego!

    IX – A morte do Paulista

    O Paulista morreu assassinado. Foi vingança. Nem sei porque estou contando isso. Você  deve saber bem melhor do que eu. Deve ter assistido a tudo, aí do seu camarote. Estou contando é para mim mesmo, de tanta felicidade pela notícia. Até que enfim, o morcego velho achou quem bebesse o sangue dele! Só soube disso agora, num bar.

    Foi numa procissão. O povo ia rezar para pedir chuva. Paulista foi junto, com cara de político em campanha: queria ser governador de Goiás. Chegaram três homens a cavalo. Foram passando perto da fila indiana que subia o monte. Acharam o Paulista, entre as mulheres, fingindo estar rezando. Só se viu foi tiro, os três homens de uma só vez. Depois, descobriram tudo. Era só o pagamento das mortes que o Paulista  havia provocado. Justiça na Terra: olho por olho, dente por dente! Merecido!

    Finjo que estou conversando com você, mas falo sozinho. Não estou falando para os outros ouvirem. Estou falando comigo mesmo, para mim. Afinal de contas, eu não sou eu! Eu sou você. Sou duas pessoas e não sou nenhuma. Sou eu e sou você. Não sou ninguém. Sou o homem,

    você é o nome.

    Sei, não. Estou meio doido. O problema é que doido e criança são muito parecidos: nunca sabem da verdade.

    X – O silêncio da morte

    Você enterrado. E agora? Anjo não desceu do Céu, capeta não subiu do inferno. Não peguei carona com o seu anjo. Você estava debaixo da terra.

    Ficamos só a nossa família, um olhando para o outro, sem saber o que fazer. Família reunida, por ordem de tamanho e de idade: papai, mamãe, Maria Helena, Davi, Divina, nossa outra irmã, dois anos mais velha do que eu.

    Papai estendeu os braços, me tirou de cima da árvore. Parece que todo mundo chorava baixinho, olhando para a sua cova. Papai engolia a seco, parecendo dizer:

    " Homem não chora: soluça, geme, sofre, mas não chora’' . Cada um pegou um último punhado de terra e jogou em cima de você.

    Fiquei pensando:

    Não vou aumentar o peso em cima dele, mandá–lo mais para baixo, para dentro do inferno.

    Eu pensava nisso e chorava um pouco. Chorava de dó de você estar ali, enterrado, sem ar, sem água, sem luz e sem comida. Você estava no inferno!

    Papai fez um sinal com a cabeça. Fomos saindo atrás dele, todo mundo no maior silêncio. Parece que o mundo havia acabado, não ficou nada para fazer barulho.

    A volta para casa foi demorada e a coisa mais triste do mundo! Passamos na casa dos espiritas, despedimos e agradecemos. Ganhamos a estrada. Que estrada mais comprida, do tamanho do nosso silêncio!

    Davi descobriu que estávamos com fome. Ele saiu da estrada e entrou no mato. Pegou umas frutas e comeu. Deu algumas para mim e nossas irmãs. Passamos a imitá–lo, sem falar nada.

    Acho que ali comecei a esquecer a sua morte. Parei de chorar e de pensar. Menino tem memória curta! Comecei a correr pelo mato, brincando com os ramos, os bichos e as frutas.

    Papai e mamãe continuavam andando sem se falar. Nós, as crianças, esquecemos a tristeza, começamos a brincar, jogar fruta uns nos outros. Tudo em silêncio, para não apanhar. Maria Helena deu as ordens da brincadeira: ninguém podia rir, chorar ou gritar nem fazer barulho nenhum.

    Ninguém tinha pressa. O caminho espichava. Ninguém queria chegar. Mamãe sentava à sombra de uma árvore, ficava olhando o chão e chorando. Papai procurava outra árvore. Pegava um galho de pau e ficava desenhando no chão. Não era para chegar a casa, você não estava lá.

    Era preciso seguir, o mundo não estava acabado. Mamãe se levantava, andava, sentava-se de novo. Papai fazia o mesmo. E nós no meio do mato, brincando longe deles, esperando atrás do tempo da dor da morte passar.

    Chegamos ao rancho, era noite. Mamãe não quis saber de nada e, lá no seu calado, no seu quieto, no seu choro quase mudo, foi para a cama. Papai ficou no terreiro, olhando a lua e as estrelas. Maria Helena e Divina cuidaram de fazer uma farofa de ovos para comer. Papai comeu um pouco, mas logo se engasgou. Disse que a comida não descia. Bebeu água e voltou para o terreiro. Nem sei se ele dormiu com a mamãe aquela noite.

    XI – Mudando de vida

    Os dias seguintes foram só tristeza. Papai saía para a roça, ainda no escuro da madrugada, só voltava à noite. Nossos irmãos iam com ele, levando água e café. Durante o dia, vinham buscar o almoço e a janta. Mamãe ficava em casa, cuidando das obrigações, fazendo as comidas, as roupas de algodão fiado, tecido e costurado por ela e cuidando de mim.

    Triste era quando chegavam as visitas. Aquelas mulheres da vizinhança chegavam, era obrigação delas fazerem aquelas visitas, por costume do lugar, quando acontecia alguma coisa boa ou ruim. Aí, mamãe contava toda a sua história de novo: sua queda, sua febre, sua agonia e morte.

    Papai estava com raiva dela. Nunca mais haviam conversado. Ela não havia olhado você direito e isso ele não perdoava. Ela deixou você por minha conta e eu era ainda uma criança. Ela estava muito magoada. Era tanta coisa para fazer, não havia tempo para cuidar direito de você. Mas papai não perdia por esperar, um dia ele iria se arrepender do que estava fazendo com ela.

    Conversas compridas, cheias de lágrimas. Mamãe contava e chorava. As mulheres ouviam e choravam também. Eu só gostava quando as mulheres levavam os filhos. Aí eu tinha companheiro para brincar. A conversa delas começava, eu pedia para brincar, chamava os meninos,  sumia  com  eles lá para o quintal, na beira do córrego. Queria nem saber de choro de mulher, da sua morte e  do  seu enterro.

    Minha madrinha não trouxe os filhos. Trouxe só uma filha, do meu tamanho. Homem não brincava com mulher. A menina ficava sentada no seu canto e eu, no meu. A gente se olhava, ria um para o outro, mas não brincava. Começou o choreiro e eu saí para o quintal, fui brincar com o meu carro–de–bois– de sabugos de milho. A menina saiu, também. Ficou me olhando de longe, rindo e querendo entrar na brincadeira.

    Quando entrei, mais para fugir daquele olhar comprido, cheio de vontade de brincar, daquela menina, foi bem na hora de levar aquela surra. Maldita hora em que entrei naquela casa!

    Terminou aquele ano. A colheita foi muito fraca, não deu para pagar as contas que o papai devia ao Paulista. Desgostoso com o lugar, papai queria mudar, mas precisava pagar as contas. O jeito era ficar mais um ano. Eu o ouvi conversando isso com o meu padrinho, numa visita que lhe fizemos naquela fazenda bonita, cheia de curral, de vaca, de leite, queijo, requeijão e biscoitos.

    Meu padrinho prometeu ajudar. A fazenda dele já estava formada, não havia mais lugar para plantar. O negócio dele era criar gado. Ia falar com um amigo dele, que estava precisando de gente para derrubar roça e formar pasto. Era ali perto, na divisa da fazenda dele.

    Passamos mais um ano na fazenda do Paulista. Sofremos o diabo: maleita, febre disso e daquilo, fome e frio. Quando veio a colheita, na hora do acerto de contas, a dívida continuava. Papai tomou dinheiro emprestado do novo patrão, com o aval do meu padrinho, e pagou ao morcegão. Passamos uns dias no paiol daquela fazenda. Era um fazendão cheio de gado e de cachorro.

    Passamos quatro anos naquela fazenda. Papai era o encarregado da peãozada. Tinha a sua roça, tocada quando não havia serviço na fazenda. Nossa roça ficava mais com o Davi, nossas irmãs e a mamãe. Foi só eu tomar corpo de gente, fiquei encarregado de levar a comida e a água. Carregava a comida numa bacia, colocada na minha cabeça. O peso era demais, eu quase não aguentava.

    Todos os agregados da fazenda tinham direito a um pedaço de roça, mas todo mundo tinha obrigação de trabalhar para o patrão, quando ele precisava roçar pasto, fazer cerca e curral.

    O patrão não permitia aos agregados criar porco ou gado. Isso tinha de ser comprado na fazenda, a troco de dia de serviço ou da produção da roça. O mantimento colhido era consumido ali mesmo. Era tudo à meia. A parte do patrão era para o consumo da fazenda. Se enchesse a tulha, o paiol, o resto ele vendia. Ele comprava a produção dos agregados, quando sobrava da despesa.

    O preço era ele quem dava, mas papai dizia que era justo, o mesmo dos outros compradores. Papai conferia tudo, fazia as contas, pagava tudo em vale. Ali, ninguém via dinheiro. Se alguém queria comprar alguma coisa na cidade, o patrão não proibia, indicava as lojas que recebiam os vales dele e pronto.

    Nossa casa era um casarão velho, de adobe, à beira de um córrego e de uma estrada. Ali, aprendi a correr pelo pasto e a conhecer as manhas de se lidar com gado. O gerente da fazenda gostava de mim. Eu era um menino muito esperto. Quando era dia de pegar frango, ele mandava me chamar. Lá ia eu, com o meu estilingue. A mulher do gerente apontava o frango, eu pegava o meu estilingue e pronto: frango morto.

    Papai vivia contente. O patrão era um homem sistemático e muito justo. Não dava nada, mas não tirava de ninguém. Os acertos eram feitos no final do mês ou de safra. Tudo era pago honestamente, conferido pelo patrão ou pelo gerente. Papai fazia as contas e anotava tudo.

    Papai era uma espécie de gerente da lavoura. Cuidava das compras de ferramentas,  de  apontar os dias e anotar os vales. O gerente mesmo, o  Sr. Sebastião, não  gostava  de  mexer  com gente. O negócio dele era o gado. Só falava que tinha de roçar o pasto e fazer a cerca. Papai cuidava de cumprir as ordens.

    No final de cada colheita, tínhamos de plantar capim. No ano seguinte, tínhamos de desmatar outra área e fazer outra roça.

    XII – A Certidão.

    O mundo, meu irmão, tem duas desgraças: a coleira e a trincheira. Toda a minha vida, vivi na coleira. Recebi educação pelo medo: obedecer ou apanhar, ou morrer. Quando me vi dono do meu nariz, estava cercado de trincheiras,  não  pude  ver o  sol,  não pude decidir a direção do passo seguinte.

    Sempre pensei que o segredo da vida era a liberdade. Viver não podia ser uma dor, uma humilhação e um desrespeito. Preso ao nada, percebi que a liberdade é a maior prisão. Eu era nada. Não era ninguém. Não tinha sequer um nome!

    Tantas vitórias e atos de heroísmo! A minha vida havia sido, até então, só vitórias. E agora? Vencer o quê? Vencer quem?

    Vencer o medo. Medo de quem? De quê? Tirar outra certidão de nascimento? Se eu desse um, apenas um passo em falso, a Rosa ou a revolução acabaria comigo.

    Não achei solução. O Sr. Alberto preferiu confiar em mim. Levou sua certidão de  nascimento, dizendo que iria ver o que poderia fazer.

    Aquela semana foi um martírio. Um completo isolamento do mundo. O chacareiro era um pobre coitado, um pau mandado. O Sr. José Maria só falava comigo o essencial. Era daqueles paraibanos da muléstia. Um homem da cara fechada, sempre mal-humorado. Com a mulher, só falava aos gritos. Comigo, falava aos arrancos:

    Planta essa semente acolá. Cata o tomate dali. Fofa aquela terra. Tange esse lixo no mato. Bota veneno nas formigas.

    Durante aquelas duas semanas, não troquei com ele mais do que meia dúzia de palavras. Ele tinha uma cara de carrasco e parece que me via com cara de boi morto. Nós sabíamos que um não gostava do outro. Mantivemos o respeito. Afinal, quem a gente mais respeita é o inimigo. Um dia, ele me perguntou se eu já havia matado alguém. Ele não acreditou no que ouviu:

    Acho que uns quinze ou vinte. Falei e meti a cara no serviço.

    Sexta–feira, o Sr. Alberto chegou. Disse que havia confirmado a minha história. O Sr. José Maria chegou perto dele e falou meio encabulado:

    Esse menino daí disse que já matou uns quinze! Arre égua! Cabra mais mentiroso!

    E o Sr. Alberto gostou da brincadeira. Respondeu rindo e olhando para mim:

    Acho que matou uns trinta! E está prontinho para matar mais uns dez!

    Deu uma vontade de matar aquele homem. Me chamar de mentiroso! Ia ver só! Cocei o dedo na cintura, procurando um revólver que não estava lá. Minha faca não estava na cintura, mas tinha enxada, enxadão e até machado. Meu pé de orelha coçou! Matar mais um! Só mais um buxudo que me chamou de mentiroso.

    O Sr. Adalberto percebeu o meu jeito agoniado, minha vontade de matar:

    – Desculpa ele. Foi só brinadeira. Aqui, na cidade, todo mundo brinca assim, chamado os outros de mentiroso, de um monte de outras coisas. A vida aqui tem menos morte por esses pequenos insultos. Perdoa ele. Estava duvidando da sua capacidade de matar, por ser um menino, ainda. Liga não! Ele vai te respeitar, a parir de agora.

    Vi a cara desenxabida do homem me encarando com aquele olhar atravessado, parece que me achando um monstro. Saiu de perto de mim e nunca mais voltou. Nunca mais gritou comigo nem de longe. Falava manso, de longe, só o necessário, e com jeito de gente medrosa. Melhor assim: mais morte nas minhas costas poderiam piorar aquele meu sonho assassino. Que tipo de perseguição eu sofreria aqui? Ele que não me chamasse mais de mentiroso!

    Na outra quinta–feira, à noite, o Sr. Alberto chegou lá com a sua Certidão de Nascimento com o ano falsificado. Foi só isso. Ele, com a ajuda da habilidade de um perito falsificador, falsificou a sua Certidão de Nascimento que passou a ser minha. Eu passei a ser você. Nasci no seu dia e mês e na sua cidade. Eu, que sou baiano, passei a ser goiano. Troquei o acarajé pelo quiabo com angu e frango e arroz com pequi.

    Agora, sou você, quatro anos mais velho. Foi necessário falsificar o ano: eu era muito grande para ter só doze anos. A possibilidade de eu ir ao Coqueiro–de–Galho, buscar a minha Certidão não foi nem cogitada. Era suicídio. Mandar um mensageiro, era um risco desnecessário. Era melhor ficar com a sua mesmo, até que as coisas se acalmassem.

    Ficar com o seu nome era uma vantagem: não seria veiculado na imprensa, nos arquivos do DOPS. Ninguém sabia da sua existência. Já o meu, se tivessem descoberto que fui o autor daquela façanha! Você, agora, era a minha trincheira.

    Era para eu continuar ali mais alguns dias. Dezesseis anos não era uma boa idade para emprego. Eu deveria tirar uma carteira profissional, me infiltrar numa empresa, trabalhar para a Rosa. Eu tivesse paciência, as coisas se ajeitariam, aos dezoito anos.

    Na sexta-feira à tarde, recebi a notícia: o Sr. Alberto estava preso. A polícia estava vindo para a chácara dele. O mensageiro foi rápido: falou e fugiu naquela Vespa barulhenta.

    XIII – Pescaria sexual

    Foi ali, à beira daquele rio que tive a minha primeira experiência sexual. Que decepção! Havia uma menina de uns doze anos, filha de um agregado, que era muito falada pelos meninos.

    Eu estava pescando. Havia chovido, a água estava suja. Peguei vários peixes. Ela chegou, viu os peixes e foi pedindo:

    Me dá esse peixe?

    Só se você me der.

    Ela não perguntou o quê. Tirou a roupa, deitou–se na areia, abriu as pernas. Fiquei abobalhado, depois fui para cima dela, sem jeito e sem saber de nada. Esfreguei daqui e dali, mas não entrou. Machuquei todo o meu pintinho, arrebentei a fimose. Ela ria e gemia de prazer. Quando eu já estava desistindo, ela pegou o coitadinho ensanguentado e colocou no lugar certo. Senti aquele calorzinho gostoso, uma delícia! Era mais dor o que eu sentia! Ela comandou o espetáculo. Mandou eu me mexer, enfiar e tirar. A dor aumentou e o sangue, também.

    Quando ela se deu por satisfeita, dei graças a Deus! Saí de cima dela, fiquei peladão, em pé, olhando–a espichada na areia. Que coisa linda é uma menina nua, corada de sol!

    Dei–lhe todos os peixes. Olhei mais um pouco, com uma vontade louca de fazer tudo de novo. Ela se levantou sorrindo, vestiu o vestido, sumiu no mato. Fui pescar mais, todo emcabulado. Se eu chegasse à minha casa sem peixe para a janta, alguma vara de unha-de-boi teria serviço no meu lombo.

    Passaram alguns meses e a experiência se repetiu. Aí, eu já estava mais escolado. Havia conversado com uns meninos, filhos do patrão. Eles me ensinaram mais ou menos como era a coisa. O Davi também conversou comigo, me contou um caso parecido com o meu, acontecido com ele.

    Ela chegou, eu estava pescando. Sentou–se ao meu lado:

    O primero que ocê pegá é meu!

    Nem respondi. Estávamos no meio do mato, à sombra de uma árvore. Ela foi me olhando, com aquela cara de safada e foi se deitando. Ainda não senti prazer. Minha fimose, já arrebentada, parece que se rasgou toda. Foi sangue que não acabava mais. Senti que não sabia fazer sexo, mas gostei.

    Gostei daquele contato físico. Era gostoso ficar esfregando um no outro, suando o corpo, ouvindo os gemidos dela e os meus. Os gemidos dela eram de prazer, os meus, de dor. Caímos na água. Dentro da água parece que era melhor, mais divertido.

    Virei pescador de primeira qualidade. Todo domingo eu ia pescar, sozinho. Quando o Davi queria ir comigo, eu inventava uma desculpa.

    Eu passava em frente à casa dela, dava um jeito de me mostrar. As vezes ia até a casa dela, pedia água, inventava uma história e seguia para o rio. Não demorava muito, ela aparecia.

    A

    IX – A filha de madrinha

    Quase um ano depois, ela foi ficando arisca. Passou a não ir mais pescar comigo. Ela estava de caso com o Davi. Ele era maior do que eu, quase um homem, e o dele era muito maior do que o meu.

    Eles se encontravam à noite, às escondidas. Todo dia, ele chegava da roça, jantava e dava um jeito de sair. Fui atrás dele, seguindo de longe. Descobri tudo. Fiquei revoltado com aquilo, mas logo esqueci. Arrumei outro caso.

    Foi num dia que fomos visitar o meu padrinho, lá na fazenda dele. Arrumei um jeito de ir passear no cafezal. Eu gostava de ficar sozinho, isolado do mundo, pensando em não sei  o  quê. Estava com o meu estilingue, caçando juriti.

    De  repente,  a filha do  meu  padrinho  apareceu. Era aquela menina  que  quis  brincar comigo, eu já contei. Agora estava grande e bonita. Ficou me olhando e rindo. Eu já estava todo malicioso.

    Fui chegando perto dela:

    O quê que ocê qué?

    Nada, não. Só vim vê.

    A conversa foi curta. Ficamos sem jeito. Fui chegando perto e pegando nela. Ela foi sabida. Estudava na cidade, só vinha para a fazenda nos finais de semana e nas férias. Ela correu de mim, mas parou perto e ficou se insinuando:

    Ocê é mole! Cê num me pega!

    Corri atrás dela. Quanto mais corria, mais excitado ficava. Ela deixava eu pegar, depois escapava, corria mais, até eu pegar de novo. Foi só quando chegamos ao córrego, nos fundos do cafezal, que ela deixou acontecer.

    Havia um poço de tomar banho. Ela chegou na frente, tirou a roupa e pulou na água. Foi só aquele agarra, aquela coisa gostosa!

    Saímos da água, fomos para a areia. Foi ali que comecei de fato a sentir prazer no sexo. Não era orgasmo, mas era uma sensação de prazer e de felicidade. Fizemos uma porção de vezes. Quando paramos, ela olhou para mim e sorriu:

    Sabidinho! Cê queria que eu dexasse cê me pegá, rolá no chão e sujá minha ropa?

    Só aí, entendi o perigo. Se aparecêssemos de roupas sujas!

    Estive com a Dalvina mais umas vezes, depois nunca mais a vi. Ela foi a minha primeira paixão. Pensei nela muito tempo. Sonhei e sofri calado. Sempre gostei de sofrer calado.

    I

    X – Exilado na capital

    Aos dezesseis anos, fiz uma viagem forçada. Era preciso escapar da garras do exército da lei. Meu crime seria classificado como crime de guerra. Morte certa ou prisão prerpétua! Passei por lugares conhecidos, até chegar a Anápolis e depois a Brasília. Dessa vez foi de carona, num caminhão carregado de arroz. Era e não era a minha viagem de volta. Havia passado alguns anos. Eu estava fugindo, vindo das trincheiras. Todo mundo tem uma trincheira.

    Fica zangado não. Falo sem ordem nos fatos, sem cuidado com a linguagem. Até sei falar direito, mas aqui, só com você, não preciso ficar gastando a gramática. Irmão não tem tanta cerimônia com irmão.

    Sou um funcionário público, em cargo de confiança. Nunca mais mudei de Brasília nem fui ao interior. Fiquei trancado no meu mundo, entrincheirado no seu nome. Agora, um psicólogo quer descobrir o que está me fazendo ficar maluco. Parece que todo mundo acha que psicólogo é para tratar de louco. Se é assim, estou louco. Estou em depressão, disse ele. Qual será a causa da minha depressão? Por que estou ficando doido?

    Você me desculpe, Jo... Agora nem sei mais qual nome devo chamar. O seu nome é o meu. Adotei a sua certidão de nascimento. Você não existe mais, você sou eu. Será que eu é que não existo? Estou aqui, só o corpo, só o homem. O nome é o seu. Meu nome é Jonas, o seu é Josué.

    Não sei mais como conversar com você. Penso chamar o seu nome, mas, se fizer isso, sou eu que vou responder: seu nome é meu. Não tenho nome nem documentos de meus. Não posso mais mudar as coisas. Jonas não existe mais, no nome, só no homem; Josué não existe, no homem, só no nome.

    Fui para Brasília com aquela certidão de nascimento. Mudaram só o ano: eu era muito grande, dezesseis anos, e você, com doze. Sofri um bocado em Brasília. Fui uma porção de coisa, mas o que me interessava mesmo era estudar. Eu queria ser inteligente e saber das coisas.

    Vim das trincheiras, tive de ficar escondido no seu nome. Se eu fosse descoberto pela tal revolução de 1964, não restaria nada de mim. Preciso continuar contando o resultado daquela viagem. É tudo a mesma coisa, a mesma história. O mundo é grande e se reparte no tempo.

    S

    XI – Qualquer lugar

    Papai e mamãe nunca mais foram os mesmos. Voltaram a conversar, mas não eram bem conversas, eram brigas. Ouvi muitas brigas e acusações. Foi, não foi, estavam de mal, gritando um com o outro. Nem escondiam mais de nós aquelas rusgas. Você era, quase sempre, a causa das brigas. Havia, também, uns casos de ciúmes: uns antigos namorados e antigas namoradas. Papai era muito ciumento, não podia ver homem olhar para a mamãe. Ela, também, não ficava atrás.

    Eles começavam a brigar e apareciam as acusações. Um havia feito  isso e  aquilo, o  outro, também. Ela olhou para o fulano, na festa tal. O outro havia dançado colado com a fulana. E o pau quebrava. Tudo quanto era defunto saía da cova.

    Um dia, levantei-me à noite, fiquei andando pela casa. Acho que perdi o sono, pensando na Dalvina. Entrei no quanto deles. Vi os dois atrelados, naquela gemedeira maior do mundo. Saí de mansinho e fui dormir todo excitado.

    Nasceu outra irmã, a Ana de Lourdes. Maria Helena já estava moça, com namorado e tudo, falando em casamento. Papai chegou já meio tarde. Estava triste. Chamou todo mundo. Sentamos-nos em volta dele. Começou a contar o caso, com a voz meio engasgada.

    O patrão havia mandado todos os agregados irem embora, no final da safra. A fazenda estava formada. Agora, ele precisava só de vaqueiro. Papai não era vaqueiro.

    Nunca o havia visto triste daquele jeito nem conversar com os filhos, explicar, dar  satisfações, pedir opinião.

    Maria Helena começou a chorar. Estava pensando em casamento, mas se fôssemos mudar, era o fim. O Davi estava namorando firme com a filha de um fazendeiro. Parece que ia muito bem, mas era só fogo-de-palha.

    Não havia outro jeito. Se Maria Helena quisesse casar, que casasse, mas tínhamos de nos mudar. O lugar escolhido, por conselho do patrão, era o norte de Goiás, zona de  mata  virgem. Todos os agregados iriam se mudar.

    Final da safra. Combinado: todo mundo mudaria para um lugar só. Papai, que era um dos poucos que sabia ler e escrever, seria o chefe da mudança.

    O patrão havia feito as contas e acertado tudo. Perdoou conta de uns, pagou mais a outros. Sobrou um dinheirinho para o papai. Dava para pagar a viagem e comprar alguma cois talvez  alguns alqueires de terra.

    Papai foi dono de terra, lá na Bahia. Era um sítio. Mamãe contava que era um lugar bonito, cheio de flores, de porco e de gado. Não faltava nada.

    Ele nunca falava nisso. Viajou para consultar um curador, um pai–de–santo. Voltou, vendeu tudo quase de graça e mudou para Goiás, quase só com a roupa do corpo.

    Mamãe dizia que foi feitiçaria. O macumbeiro disse que no nosso sítio havia um encosto enterrado. Se nós não nos mudássemos o mais rápido possível, iria acontecer uma desgraça.

    Certa mulher havia feito o feitiço. Era uma ex–namorada do papai. Ficou despeitada por ele ter se casado com a mamãe. A danada da mulher fez a macumba e foi embora. Parece que virou puta em Salvador.

    Essa mulher foi assunto de muitas brigas entre papai e mamãe. Mamãe sempre se lembrava do sítio dela, tão bom, tão... E a briga começava.

    A mudança era ruim. Nós gostávamos daquele lugar, do patrão e ele, de nós. O papai era muito útil a ele. Não havia o que fazer, o patrão não tinha lugar para quem não fosse vaqueiro.

    Quanto mais falava, mais o papai ficava engasgado. Mas havia o lado bom: terra no Norte era barato, ele poderia comprar um ou dois alqueires, talvez mais. Além do acerto de contas, o Sr. Salomão Batista, nosso querido patrão, deu uma gratificação a cada um dos agregados. A do papai foi a maior, bem maior. Chamou–o em separado e explicou:

    Você é um homem muito bom, João Norberto. Não gostaria de perder você. Minha fazenda não é grande, são só cem alqueires já formados. Não tenho como manter você. Já tenho vaqueiro. Gosto muito de você, mas não tem jeito. Compre um pedaço de terra, no Norte de Goiás. Esse dinheiro dá para comprar um sitiozinho.

    Papai ouviu, pegou o dinheiro, agradeceu e prometeu segredo. Estava na maior tristeza do mundo, explicando para nós, engolindo o choro. Mamãe é que encerrou a conversa, concluindo:

    Qualqué lugá é lugá. Depois que perdi meu sítio na Bahia, perdi o meu guia. A gente é  memo agregado. E só enriquecê patrão. Dexa pra lá, num vale a pena ficá quebrano a cabeça, sentino pesar. Depois daquela macumba da muié que vende a bunda, só Deus pra dá jeito. Mió calá minha boca!

    Naquele tempo, eu não pensava muito em você. Lembrava do seu caso só quando ouvia a mamãe contar. Ela gostava de sofrer. Contava só para chorar. Ela não queria esquecer, nunca. Toda vez que contava, era aquele mundão de lágrimas.

    Viajamos na carroceria de um caminhão Fargo. Era um caminhão bonito. O mundo é grande, pensava eu. Como poderia ter tanto chão, tanta terra para andar?

    Quatro dias de viagem. Passamos por Trindade, Goiânia, Anápolis, Ceres... Estrada de chão, caminhão atolando. Muitas cidades menores, nem lembro dos nomes. Caminho e mais caminho e mais atoleiro. O mundo é grande!

    Viagem estranha, todo mundo ficava calado, pensando na vida. Maria Helena chorava o tempo todo, pensando no noivo abandonado. De vez em quando, um falava alguma coisa, tudo sobre as esperanças, os medos do que iríamos encontrar pela frente.

    Eu estava animado, pensava que íamos ter a nossa terra. Outra vez, mamãe iria ter o seu sítio cheio de galinhas, porcos e vacas. Ela iria parar de brigar com o papai. Eu iria ter um bezerro, uma vaca e um cavalo.

    O caminhão fez um barulho estranho e o motorista desceu. Estávamos entrando numa corrutela, uma vila muito parecida com Cruz Alta. A estrada no meio e as casas ao lado. Casas de adobe ou de tijolinho. Vendas, botecos e armazéns. Ali, era um entroncamento. Hora de decidir rumar para o Norte, rumo a Porangatu e Gurupi, seguindo em frente, ou virando à direita, entrando nas serras e indo para Formoso, Trombas e Campinaçu.

    O caminhão quebrou o cardã. Tivemos de descer e empurrar o danado até chegar em frente a uma pensão. Depois, empurraram para fora da rua. Ficamos ali dois dias, esperando consertar.

    Peça, só em Ceres ou Anápolis. O motorista encomendou, viria de ônibus. Esperar o tempo e o destino. Para qual Norte iríamos? Ninguém sabia. Para o Norte, sem nome de lugar.

    Dormimos debaixo do caminhão dois dias, só aquele amontoado de gente. O motorista arrumou uma lona e fez uma tenda. A comida era feita embaixo de um pé de tingui.

    A molecada brincava e bagunçava. Eu tinha quase nove anos. Brincava um pouco, depois andava pela rua, vendo coisa e pensando. Mania minha de ficar pensando e repensando!

    Foi andando pela rua que vi o papai conversar com um homem. Era um sujeito mal-encarado, de barba rala e chapéu de palha.

    Barba–de–bode! Assim passamos a chamar aquele homem, pelo seu cavanhaque semelhante. Passei perto dos dois, no meu caladinho e dsconfiado. Menino fica é calado, no seu canto ou o couro come!

    Fiquei olhando aquela conversa mais comprida do mundo! Papai estava interessado, fazia perguntas e o sujeito respondia. Quando enjoei de ouvir, voltei ao caminhão. Conversa demorada e devagar, desconfiada!

    Papai chegou, chamou todo mundo e começou a explicar. Aquele homem estava oferecendo uma posse de terra, do outro lado do rio. Não era legalizada. Terra boa de cultura, com água e mata virgem, do outro lado do Rio Santa Tereza, a três léguas dali.

    XII – As leis da terra

    Foi aí que comecei a não ser eu. Papai convenceu alguns dos outros a irem ver a terra. O Barba–de–bode queria só dez contos pela posse, se fosse em dinheiro. Papai tinha aquele dinheiro, mas estava muito desconfiado do preço barato demais.

    Não custava nada ir ver. O homem estava com pressa. A mulher dele estava doente e carecia de fazer uma operação. O homem só tinha a terra para vender.

    Formaram uma comissão e foram ver a tal terra. Ficamos ali, esperando, mais um dia e meio: mulheres, meninos e alguns homens.

    Gostaram da terra. Dormiram no rancho do Barba–de–bode. Era um lugar bonito, cheio de roças e de capoeiras. Havia muita mata virgem. Em volta da tal  de  posse, havia  muitas outras. Eram terras ilegais, em demanda. O governo havia prometido legalizar e dar posse a quem estivesse na terra.

    A área foi ou era de um fazendeiro, morador em Uruaçu. Houve uma revolta, cada um ficou com a terra onde morava. Muita luta, mas tudo estava sendo resolvido, o governador havia prometido.

    Papai comprou a terra. Alguns ficariam na nossa posse até poderem comprar as suas. Papai prometeu ajudar, podia até vender uns pedaços para os seus amigos.

    Um carro–de–bois levou a nossa mudança. Seis família seguiram para Gurupi.

    O lugar era mesmo bonito, chapadão de dar gosto. Nossa posse ficava à beira da estrada carreira. Abaixo, passava o córrego Manoel Gomes. Uma légua a mais, era o córrego Coqueiro–de–Galho.

    Um  ranchinho,  arrumação  e  a  construção  do  ranchão.  Todo  mundo  fazendo  seus ranchos. Cada família passou a cuidar da sua vida fazendo casas,  ranchos à beira dos córregos e das

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