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O Caso De Vincent Rairin Parte 2 - O Erro
O Caso De Vincent Rairin Parte 2 - O Erro
O Caso De Vincent Rairin Parte 2 - O Erro
E-book393 páginas6 horas

O Caso De Vincent Rairin Parte 2 - O Erro

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Sobre este e-book

Quase dois anos após investigar o caso do assassino Imolador, a mente inquieta de Vincent ainda o atormenta pelo não entendimento de todos os fatos que ocorreram naqueles dias caóticos. A esperança da cura de sua condição parece longínqua, mas o que ele não esperava era que o caos ainda não havia se dissipado, e que sua amiga Claire, que apenas esperava ter paz, está intrinsecamente ligada a esse caos. Na segunda parte de O Caso de Vincent Rairin, veja os personagens se aprofundarem ainda mais nesse estranho conto, e veja como esse aprofundamento revelará aquilo que habita os cantos mais escuros da Terra.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento21 de abr. de 2016
O Caso De Vincent Rairin Parte 2 - O Erro

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    O Caso De Vincent Rairin Parte 2 - O Erro - L. L. Pradela

    O erro (A noite que eu te encontrei?)

    Capítulo I – Encontros e desencontros

    Eu já tive uma vida normal? Sei que a resposta é sim, mas, sinceramente, não me lembro de ter tido uma vida normal, ter feito atividades normais como qualquer outro indivíduo, ocupar meu tempo com coisas simples, e por isso a pergunta persiste. Será que eu já tive prazeres comuns nessa vida? Será que, por exemplo, eu já sorri ao ver uma criança sorrindo para mim? Qual será a razão de eu não ter esse tipo de memória na minha mente, e acima de tudo, por que será que acho que sempre fui o monstro que sou hoje?

    Creio que a resposta está em minha própria mente: não me lembro desses momentos porque as lembranças ruins são muito mais marcantes que as lembranças boas. Minha mente está tão tomada pelas atrocidades causadas por minha pessoa, por tantos anos, que não sobrou espaços para lembranças decentes. Não há espaço para alegria, apenas para a dor parece existir endereço na minha memória. Aliás, a dor que eu causei a tantas pessoas ao longo de toda a minha sórdida existência. Talvez essa falta de memórias boas seja remorso por tudo o que eu fiz.

    Bem, remorso é o mínimo que posso sentir após ter levado à boca a vida de todas aquelas pessoas. Consigo me lembrar de cada uma delas, como se elas estivessem aqui: seus rostos pálidos, seus olhos amedrontados, quase incrédulos de estarem vivendo os seus últimos momentos, de terem que me ver destruindo suas vidas como última visão de um mundo injusto e distorcido. Fui o anjo da morte de todos eles:

    – Anjos não bebem sangue, Rairin.

    Enquanto me ajeito em minha velha poltrona, tento me concentrar em outras coisas que não sejam os rostos daqueles pobres coitados, mas eles insistem em se enraizar em minha mente. Crianças, mulheres, velhos, enfim, todo tipo de pessoas e etnias já se esvaeceram nas minhas sórdidas mãos, e elas não saem de minha cabeça. Não são poucas as noites que eu acordo assustado com gritos vindos de uma massa clamante. Os gritos são de pavor, geralmente implorando para que eu pare, dizendo que fazem de tudo para que eu as deixe viver. Elas não sabiam que eu também faria de tudo para não fazer aquilo, para não precisar fazer aquilo, mas isso não depende de minhas vontades ou sentimentos de dó. Nunca matei uma pessoa por vontade própria, nunca acordei com essa mórbida vontade de separar a alma da carne de um indivíduo, mas eu tive que fazê-lo. Acho que certo mesmo é dizer que eu fui forçado a fazer, forçado pela minha condição. Tenho certeza que eu seria uma pessoa melhor se não fosse essa patologia que tanto me aflige.

    Então porque tenho a impressão de que sempre fui o monstro que a maldição me fez? Será que esse monstro devorou o homem que outrora fui eu? Será que algum dia eu voltarei a ser aquele homem? Teria a maldição roubada até mesmo os meus mais íntimos anseios? Acho que eu não me lembro de ter sido alguém melhor, porque talvez eu já não fosse uma boa pessoa antes de entrar naquele beco:

    – Não, eu nunca vou conseguir me lembrar.

    Acho que cheguei a um estágio que até as memórias de um homem normal eu não tenho mais. Antes eu era amaldiçoado, mas conseguia me lembrar de como era o aroma das rosas, do gosto do pão e do toque da doce mulher, mas agora eu não sei mais como são. Acho que memórias de uma vida simples, em um lugar como Yorkshire, conversando sobre obras de artes com amigos em um pub não existem mais. Não há mais amigos, pubs, nem mesmo Yorkshire. Só me sobrou mesmo a dor de ter que conviver com as vozes dos meus mortos.

    Preciso parar de pensar nisso. Torturar-me não vai trazer ninguém de volta, e também não vai me impedir de fazer tudo àquilo de novo. Preciso depositar minha mente em um novo tópico, me desvencilhar do passado. O problema é que sempre que desvio os meus pensamentos, eles pousam em outro tópico já corriqueiro: o caso de Norman o Imolador Simon. Já cansei de tentar entender o que aconteceu naquela noite chuvosa de inverno. Durante um bom tempo, eu tentei entender o que aconteceu, como ele sabia sobre minha condição, como ele escolheu as suas vítimas, por que ele perseguia aquela criança, mas depois de um tempo eu desisti. O clamor do povo acabou quando um certo corpo foi encontrado no Central Park, isso fez com que as famílias das vítimas se sentissem satisfeitas com o exaustivo trabalho da maravilhosa polícia de Nova York, que não fez nada e colheu todos os louros da vitória. É aquela velha história hipócrita de sempre: o delegado acabou recebendo uma condecoração do prefeito pela sua bravura e astúcia, enquanto eu tentava descobrir onde o corpo do jovem Anderson havia sido enterrado. Lembro que o delegado chegou a ligar para mim para saber se eu tinha alguma coisa a ver com a morte do assassino, e eu disse que não. Não sou um adepto da cultura desses americanos idiotas que acham que a fama é a melhor coisa que se pode conseguir, por esse motivo abdiquei dos louros da caçada. Sobre o jovem, eu não descobri para onde os seus restos foram. É provável que ele tenha sido usado como objeto de estudo em algum necrotério, ou mesmo enterrado em uma vala de indigentes. Pobre fim aquele garoto teve.

    O caso do Imolador teve até certo apelo sobre as mudanças nas leis de segurança às mulheres. É uma pena que logo algum artista idiota fez alguma graça e todos os holofotes saíram de cima das vítimas. Tantos debates poderiam acontecer, tantas coisas poderiam ter mudado, mas, mais uma vez, esse país mostrou do que é feito, e para quem ele é feito. É uma pena que casos tão sérios como foi o do Imolador são tratados com tanto desdém pela mídia marrom e capitalista desse país.

    Viro o conteúdo da minha taça, tentando me lembrar à quantidade de vezes que virei essa taça nos últimos dias. Acho que já faz tanto tempo que eu estou sentado nessa poltrona que eu nem me lembro da voz de alguém que não seja o meu mordomo. É claro que eu sempre apreciei as nossas conversas, mas já faz um bom tempo que não escuto a voz de alguém que eu não pago para me ouvir. Acho que o desenrolar dos acontecimentos no caso do Imolador e a sua falta de conclusão acabou me deixando um pouco pior emocionalmente do que o de costume:

    – Há quanto tempo será que estou sentado nessa maldita poltrona?

    Essa é a poltrona que sempre procuro em meus momentos de solidão, sempre que quero ter com meus pensamentos. Quantas e quantas vezes ela me ouviu reclamando da vida e de minha situação. Acho que eu tenho uma ligação tão grande com ela que ela é capaz de até mesmo ouvir os meus pensamentos. Vai ver é por isso que ela está sempre tão quieta:

    – E você queria que a poltrona falasse com você Rairin?

    Realmente, acho que estou muito solitário. Deve fazer alguns meses que não saio da mansão. Não ter nada para fazer deve ser o principal motivo. A falta de objetividade dos meus dias é sufocante. Gostaria de ter algo para fazer, pelo menos para sair daqui.

    Espere um pouco… eu não havia prometido para Gaia Svensson que eu entregaria aqueles papéis antigos? É claro que sim! Lembro que esse era o nosso acordo, que por sinal eu ainda não cumpri. Aposto que ela deve estar me esperando até hoje, já faz um bom tempo que me comprometi com ela. Aposto que ela deve estar nervosa.

    Bem, acho que já tenho o que fazer, já que ver a bela forma física da historiadora sempre é um prazer.

    Levanto-me da poltrona. Sinto uma leve tontura ao me colocar ereto, ao mesmo tempo em que escuto meus velhos ossos rangendo-se e estalando-se. Acho que já fazia vários dias que eu não saia dessa poltrona. Volto-me a ela e penso se ela não seria a constatação máxima de minha tristeza, o maior símbolo, por assim se dizer: o homem triste, sentado em uma cadeira em um quarto escuro, movendo-se apenas para levar sua bebida até a boca, sem ter onde pousar os pensamentos:

    – Ainda vou colocar fogo nessa maldita poltrona.

    Saio do quarto e me dirijo até o meu escritório, pelo corredor dos quadros. Acho que, salvo a sala de estar, o escritório é o lugar que tenho mais visitado nesses últimos tempos, devido a essa crise imobiliária. Como boa parte do que tenho está aplicado em ações do campo imobiliário, acabei perdendo dinheiro. Não cheguei nem perto de perder algo que me fizesse falta, já que o que tenho é absurdamente grande para se perder por causa de apenas uma crise mas, pra ser sincero, pouco me importo com o que perdi! Todo esse dinheiro não me traz nenhuma alegria. Quando eu era mais jovem, acreditava que deveríamos ter objetivos nessa vida, e que seria feliz quando o alcançasse. Bobagem! Tornei-me obscenamente rico e ainda não sou feliz, e é bem provável que eu nunca seja.

    Abro a porta do escritório e tento me lembrar de onde eu havia deixado os papéis da historiadora. Lembro que os separei assim que cheguei naquela noite, quando deixei Claire Reilly no apartamento do Brooklin.

    Nossa! Eu havia me esquecido completamente de Claire! Será que ela está bem? Se bem me lembro, ela estava bem abalada após tudo o que aconteceu. Não é para menos, afinal, descobrir que foi estuprada pelo suposto pai e perder o namorado no mesmo dia não deve ser algo fácil de digerir. Eu devia tê-la ajudado mais, deveria ter ido vê-la alguma vez, conversado com ela sobre tudo o que aconteceu. Acho que é bem provável que, assim como Gaia, Claire também espera por mim:

    – Acho que devo me chamar de sortudo. Que outro homem pode dizer que duas lindas e jovens mulheres o esperam?

    Seria ótimo se realmente elas estivessem me esperando exatamente para o que eu estou pensando. Seria melhor mesmo se eu pudesse senti-las, ter o mesmo prazer que elas teriam. Acho que eu não devia pensar mais em coisas como sexo enquanto não consigo ter prazer nisso, e eu também não quero passar uma má impressão para as duas, principalmente para Claire, que é só uma menina.

    Acho que também irei até o Brooklin para ver como ela está. Pelo menos terei a oportunidade de ficar o mais longe possível daquela poltrona ingrata:

    – Mas onde será que eu guardei aqueles papéis?

    Caminho até a escrivaninha e abro a primeira gaveta. Apenas um amontoado de papéis que eu nem sei o que são se encontra nessa gaveta. Acho que deixei os papéis no cofre, pelo menos isso me parece fazer sentido agora.

    Aproximo-me do cofre e o abro. Sei que ele estava aberto porque eu sempre o deixo aberto, na combinação certa, assim, se alguém quiser abri-lo, irá girar o combinatório e voltará a trancá-lo. Um pequeno truque que aprendi com certo homem de Jersey, há uns trinta anos atrás.

    Uma pequena pasta laranja está dentro do cofre. É exatamente o que eu estava procurando.

    Pego a pasta e a abro. Têm umas seis pequenas folhas de papiro dentro dessa pasta, muito mais velhos do que eu. Só espero que essa pasta não venha a danificá-los, se bem que, no museu, eles podem recuperar esse tipo de papel.

    Saio do escritório, com certa pressa. Fiquei muito interessado em visitar a senhorita Reilly. Será que ela está bem?

    – Rairin, essa é a segunda vez que você pergunta isso. Isso já está ficando ridículo.

    Por mais que argumentar comigo mesmo seja uma coisa insana, eu não posso deixar de ouvir a minha própria voz. Será que aquele sentimento de afeto que eu tinha pela menina ainda vive dentro de mim? Achei que eu só havia sentido aquilo por estarmos vivendo juntos uma situação de extremo estresse, não achei que eu ainda sentiria alguma coisa por ela. Aposto que a minha pressa em sair daqui apenas está me mostrando que ainda sinto.

    De qualquer forma, deixo esses pensamentos de lado e sigo pelo corredor. Quando abro a porta da cozinha, dou de cara com Burt Woodgate segurando uma garrafa retangular cheia de sangue. Acho que ele estava indo até a sala de estar para encher meu refil:

    – Que bom que o senhor resolveu sair da sala de estar, senhor Rairin – diz o mordomo, com alegria nos olhos – achei que o senhor ficaria por lá por mais algum tempo.

    – Eu irei até o Brooklin rever uma amiga, e depois irei ao Museu Americano de Histórias Naturais, entregar esses papéis para a senhorita Svensson. Devo chegar ao anoitecer.

    – Eu não quero ser petulante senhor, mas tente voltar com as roupas inteiras dessa vez. O tintureiro não conseguiu salvar as últimas roupas.

    Respondo a ironia do mordomo com um sorriso:

    – Não se preocupe, senhor Woodgate. Não há mais assassinos seriais em Nova York. Pelo menos nenhum que eu precise intervir.

    Satisfeito, ele também me sorri:

    – O seu carro está na garagem, no lugar de sempre. Tomei a liberdade de colocar uma nova garrafa cheia no porta-luvas, caso o senhor venha a precisar.

    – Muito obrigado, senhor Woodgate. Eu já vou indo. Tem só mais uma coisa que eu gostaria de saber: há quanto tempo que eu solucionei o caso do Imolador?

    – Isso foi há mais ou menos um ano e sete meses, senhor. Estamos no verão de dois mil e nove.

    Eu não fazia ideia que já tinha passado tanto tempo assim. Acho que eu fiquei tempo demais refletindo sobre meus problemas. Acho que eu devia utilizar melhor o meu tempo, já que eu tenho o tempo todo. Tantas pessoas que reclamam não ter tempo para os filhos, para a família e para eles mesmo e eu aqui, com todo tempo do mundo e não fazendo nada da vida. Se ao menos eu tivesse uma família para passar o tempo…

    Acho que a melhor forma de começar a fazer algo da vida é sair logo daqui.

    Dou às costas ao mordomo e me dirijo à garagem. Acho que vou até o Brooklin primeiro. Essa curiosidade de saber como Claire está só passará quando eu a ver.

    Desço as escadas e entro na garagem. O velho Impala está lá, com a sua típica pose de mal encarado, como um cavalo indomável dentro de um estábulo. Aposto que ele está louco para acelerar e ir o mais rápido possível. É uma grande pena permitir que esse carro fique preso nessa garagem. Acho que está na hora de levá-lo para fora.

    Abro a porta do carro e me acento no banco do motorista. Sinto o couro frio me envolver enquanto a madeira quente do volante conforta minhas mãos. Abro a porta da garagem e saio da mansão. Os primeiros raios de Sol que atingem meus olhos me cegam por alguns segundos. Meu desconforto vem junto com a surpresa de ver um dia tão quente assim. Já fazia um bom tempo que o Sol não refletia a sua luz sobre minha pessoa, minha pele pálida é prova disso. Eu até gostaria de poder ter uma cor menos mórbida, mas a maldição sempre me faz voltar a ter a cor londrina com a qual eu nasci. Nem mesmo o poderoso Sol pode me ferir, devido à rápida regeneração que a maldição me propõe.

    Enquanto sigo para o Brooklin, tento fazer a leitura dos rostos que vejo nas ruas. Por que será que essas pessoas estão tão confiantes, com tanta esperança em seus olhos? Essas pessoas não se parecem com as que eu vi da última vez que sai de casa, amedrontadas e desesperançosas. Será que eu perdi algum fato que fez com que elas ficassem mais orgulhosas de alguma coisa? O que poderia mudar as feições do povo poderia mudar também a minha?

    Acho que sei a razão de tudo isso. Acho que eles estão assim devido às eleições do presidente Obama. Tolas, isso é o que elas são! Depositam suas esperanças em homens. Sou a prova viva do que os homens são capazes de fazer, de como a crueldade humana não tem limites. Entendo que a novidade de ter um presidente negro possa ser encorajadora, mesmo porque ninguém aguentava mais aqueles velhos brancos e puritanos no controle, mas o que poucos têm nesse mundo, e principalmente nesse país idiota, é consciência política, e principalmente consciência de classe. Se algum lixeiro ou motorista acha que a sua situação mudará só porque a cor que colore sua pele é a mesma do presidente, acho que ele devia rever os seus conceitos, porque certamente ele ainda não pensou sobre o poder que o poder traz, e o que o poder nos faz perder. Acho que o nosso Criador estava distraído quando permitiu que um homem fosse dono de alguma coisa, ou mesmo de alguém. Tenho certeza de que quando o excelentíssimo presidente entender o tamanho de suas mãos agora, ele agirá exatamente como todos os outros. Triste, mas real.

    Acho que, enquanto tiverem homens no controle, o povo continuará a sofrer. Foi assim quando os reis dominavam, foi assim quando a igreja dominava e não é diferente quando os conglomerados capitalistas dominam. Esse é, em minha opinião, o pior defeito desse sistema político em que vivemos. É impossível confiar em homens:

    – Será que se houvesses um amaldiçoado no poder as coisas seriam diferentes?

    Acho que eu não serviria para liderar pessoas. Acho que, para ser um líder, o primeiro requisito é se importar, e eu não me importo com ninguém. Eu posso ser uma pessoa cruel, mas não vou contra o que sinto, e o que eu não sinto. Acho que se todos fossem como eu, as pessoas não sofreriam com as mentiras que contam e escutam. A verdade e a sua falta é o maior problema do povo, e isso é culpa dele mesmo. Sofrem por que plantam sofrimento, e merecem o que acontece com elas.

    Acho que eu não deveria culpar as pessoas por seus problemas. Isso é uma resposta simplista demais para um homem culto como eu. Não posso achar que as pessoas sofrem simplesmente por culpa delas, isso chega a ser ridículo de minha parte. Diferente dos outros ricaços dessa cidade, eu sei que a culpa do sofrimento é do sistema que nos resguarda, das leis feitas por nós e para nós, da falta de oportunidades, que estão em nossas mãos e nunca sairão delas. A verdade é que, diferente de muitos, eu não sou hipócrita de achar que o mundo é perfeito e que as pessoas são boas e felizes. Vai ver é por isso que essas faces esperançosas me incomodam tanto. Não há esperança em meio ao caos que é esse sistema que permite que soldados sanguinolentos entrem em casas de pais de família e os matem em frente a suas mulheres e crianças, em nome da maravilhosa democracia americana.

    Passo pela ponte do Brooklin e reflito sobre o que eu acabei de pensar. Eu mesmo já invadi a casa de um homem e o matei na frente de sua família, e ainda matei a sua família. Acho que foi em Leeds, durante um inverno tão rigoroso e frio que as pessoas morriam nas ruas. Achei que ninguém notaria mais uma família havia morrido, em meio a tantas outras:

    – Eu realmente sou um monstro maldito.

    Mas há um porém: fiz o que fiz por causa da maldição. Não que isso seja uma nobre causa, mas, pelo menos, é uma causa, diferentemente dessas incursões ao Oriente Médio atrás de petróleo, digo, de um terrorista internacional. Será que as duas causas não são igualmente indignas?

    Acho que é melhor parar com a politicagem e prestar atenção nas ruas. Quase bati naquele ônibus vermelho. Não quero me atrasar com um acidente no meio do caminho, estou com muita curiosidade de saber como Claire está. Já se passou um ano e meio desde que eu a larguei aqui. Como o tempo passou rápido! Só espero que ela esteja em casa, já que hoje é sábado e muita gente não trabalha de sábado. Também espero que ela não tenha tido alguma ideia idiota e tenha deixado o apartamento. Lembro que ela era um tanto quanto rebelde e orgulhosa. Só espero que sua inteligência seja maior que sua rebeldia.

    Acho que não tenho nenhuma razão para ficar preocupado com ela e com suas decisões. Claire tem uma filha e acho que ela não arriscaria o bem-estar dela por tolices como orgulho. Aposto que elas estão bem, Claire era uma menina com muita fibra para lutar pelo bem-estar de sua filha, e duvido que esses meses que fiquei sem vê-las mudou alguma coisa em seu caráter.

    Enfim chego à rua do meu antigo apartamento do Brooklin. Como é estranho olhar para um lugar onde estive e não me lembrar de nenhum rosto, não reconhecer ninguém. Acho que faz bem uns quarenta anos que eu deixei de utilizar esse apartamento, e pelo jeito nenhum dos italianos, com os quais eu fazia negócios imobiliários, ficaram por aqui. É claro que, quando se faz negócios com a máfia, nunca se faz apenas negócios. Lembro que não foram poucas as vezes que os carcamanos me causaram problemas. Naquele tempo, acabei ganhando um apelido entre os mafiosos: Vincent nove vidas, por motivos óbvios. Acho que eu fui um grande problema para eles, um que eles não conseguiam entender, não importa quantas vezes eles me jogavam naquele rio…

    Paro o carro de frente para o prédio de cor azul. Saio do carro e tranco as portas. Enquanto caminho para a entrada do prédio observo todo o redor dessa vizinhança: três crianças estão pulando cordas na esquina dessa rua enquanto um jovem compra algo bastante suspeito de um homem de dentro de um carro. Curiosa essa ironia em que me encontro, vendo jovens da mesma comunidade em busca de prazer em coisas tão distintas. Alegria pode ser, para alguns, apenas uma manhã de sábado pulando corda com seus amigos. Já para outros, a alegria pode ser encontrada em um cachimbo de ópio ou em uma carreira de cocaína. Será que esses dois casos se referem à famosa busca pela felicidade? Eu duvido muito, já que o viciado não está realmente buscando alegria. Acho que o que mais me incomoda é ver esses dois casos tão próximos, tão misturados na mesma sociedade autodestrutiva. Não duvido nada de que, dessas três crianças, pelos menos uma irá, daqui a alguns anos, ser mais um fiel freguês daquele traficante. Acho que esse é o preço que pagamos por achar que temos que ter esperanças nas pessoas. Crianças é o preço da nossa cegueira.

    Abro a porta do prédio e me aproximo do balcão de mogno, onde se encontra um velho italiano, de cabelos brancos e costas curvadas:

    – Bom dia. Eu gostaria de ter com a senhorita Claire Reilly.

    – Vincent? Vincent Rairin? É você mesmo?

    Acho que esse velho me reconheceu. Mas como?

    É claro! Ele é Tommi Vercetti, o pequeno Tommi do Brooklin. Acho que o tempo lhe fez muito mal:

    – Você não mudou nada, Vincent.

    É melhor inventar alguma coisa:

    – Acho que o senhor está me confundindo com meu pai. Meu nome é Vincent Rairin Júnior.

    O velho sorri para mim, segurando minha mão:

    – Me desculpe meu jovem. É que você é muito parecido com o seu pai, tanto que eu até me confundi. Vocês têm o mesmo olhar sério e o mesmo…

    Essa história vai longe. É melhor fazê-lo se calar:

    – Eu digo para ele que o senhor mandou lembranças. Agora o senhor poderia me chamar a senhorita Reilly?

    O velho para de falar e acena positivo, pegando o interfone do gancho. Acho que eu fui um pouco rude com ele. Sei que não é muito descente de minha parte tratar um ancião de uma forma mais ríspida, mas acho que isso tem alguma coisa a ver com o meu passado com os italianos que viviam nesse bairro. O próprio Vercetti já tentou me apagar, como eles diziam na época. Se eu fosse uma pessoa vingativa, poderia matá-lo aqui mesmo, mas eu não quero perder o meu tempo com assuntos mal resolvidos do passado.

    O velho volta a pôr o interfone no gancho:

    – Você pode subir, meu jovem. A menina está te esperando. O apartamento é o trinta e três.

    – Muito obrigado senhor. Eu me lembrarei de falar com o meu pai.

    Caminho até o velho elevador e aperto o grande botão vermelho na parede azul-claro. Pressiono o botão três do painel. A caixa de metal produz alguns rangidos antes de começar a sua lenta subida. Aposto que isso deixaria qualquer um com medo, principalmente ao olhar para esses dois papéis de vistoria de segurança, tão velhos que não é possível ver as datas. Sinto cada ranger dessa máquina, e isso me traz velhas lembranças. Posso dizer que despencar de um elevador pode ser bem doloroso. Não mata, mas dói.

    A porta se abre, revelando o terceiro andar. Entro no hall de entrada alvo e cinza claro, simples, mas funcional. A porta do apartamento trinta e três está logo a minha esquerda, sendo enfeitada por um vaso a sua direita com uma planta que eu não conheço. Aproximo-me da porta e toco a campainha. Antes mesmo de eu tirar o dedo da campainha a porta se abre:

    – Vince – diz uma surpreendida Claire, seu rosto se iluminando a cada letra dita – há quanto tempo…

    A garota me abraça, seus braços me apertando como se não quisesse mais soltar o meu corpo. Seus seios se apertam contra mim, enquanto sinto um leve aroma de frutas em seus sempre cabelos curtos. Tenho a impressão de que ela está maior:

    – A senhorita está bem?

    A garota solta o meu corpo e pousa os seus belos olhos verdes nos meus:

    – Achei que o senhor, digo, você havia me esquecido.

    – É um tanto quanto impossível não se lembrar da senhorita. Como me esqueceria de seus belos olhos?

    Ela fica um pouco vermelha:

    – Eu já estava com saudades dos seus elogios, e do seu sotaque também. Sempre que vejo um filme do Hugh Grant, eu me lembro de você.

    Enquanto trocamos olhares surge de trás de Claire uma garota negra, de cabelos longos e lisos e de olhos castanhos:

    – Você não vai me apresentar o seu amigo, C?

    A garota negra me olha como se quisesse me devorar:

    – Tanya, esse é Vincent Rairin, aquele que eu sempre falo, sabe?

    A garota (Tanya) me estende a mão:

    – Então você é o famoso senhor Rairin que a C tanto fala.

    Claire se vira para mim:

    – Vince, essa é Tanya Teshawn, uma amiga minha da época do orfanato.

    Aperto a mão da amiga de Claire:

    – Encantado, senhorita Teshawn.

    A garota sorri com ar de malícia:

    – Bem que a Claire disse que você era bonitão. Achei que você era mais velho, pelo jeito que ela fala de você.

    Tanya não tira os olhos de mim, até que Claire a interrompe:

    – Então, Tanya, você vai fazer aquele favor pra mim?

    – Vou sim – responde Tanya, sem olhar para Claire – eu vou pra casa agora e mais tarde eu volto.

    A amiga de Claire passa por nós dois e se dirige ao elevador:

    – Tchau Claire. Tchau senhor Rairin.

    A maliciosa garota entra no elevador e desaparece de minha vista:

    – A senhorita tem certo dom de fazer amigos peculiares, senhorita Reilly.

    – É eu sei. Mas entre, vamos colocar a conversa em dia.

    Sigo a garota para dentro do apartamento. É estranho estar aqui, depois de todos esses anos. Já faz muito tempo desde a última vez que entrei nessa cozinha. Acho que Claire andou movendo alguns moveis, já que o lugar parece estar mais alegre e iluminado. Não sei se é essa toalha amarela sobre a mesa, ou as cortinas brancas e limpas na janela, mas alguma coisa aqui está deixando o apartamento mais aconchegante:

    – A senhorita mudou alguma coisa aqui, não?

    – Eu tirei a geladeira da frente daquela janela. A cozinha não era um lugar muito claro antes, e agora entra mais luz nela. Espero que você não ligue.

    – Não ligo. Ficou bem melhor. Acho que um toque feminino era o que esse lugar precisava.

    Claire puxa uma cadeira:

    – Sente-se, Vince. Eu vou pegar uma xícara de café e uns biscoitinhos.

    – Não precisa se incomodar.

    – Faço questão.

    Claire se dirige até o armário branco de frente para a mesa e pega duas xícaras. Enquanto ela se dirige até a cafeteira da pia eu tento decifrar essa surpreendente alegria que vejo em seus olhos. Achei que quando eu chegasse, veria uma menina abatida, triste, necessitada de minha ajuda, mas o que vejo é exatamente o contrário. Claire está radiante, está linda. Parece que o tempo lhe fez muito bem. Nem parece que ela passou por todo aquele trauma:

    – Tá tudo bem, Vince? – pergunta a menina, trazendo as xícaras de café – você tá me olhando com uma cara engraçada.

    – Só estava reparando como a senhorita mudou desde a última vez que nos vimos.

    Ela se senta no meu lado e coloca a xícara de café preto na minha frente:

    – É que agora eu não fico mais por aí, perambulando sem rumo. Consegui recuperar o peso que eu havia perdido. Também tô fazendo academia ali, na esquina.

    Acho que é por isso que eu achei que ela estava maior:

    – Ah, esqueci-me de pegar os biscoitos.

    Novamente ela se levanta e se dirige ao armário. Olhando para ela, principalmente para as suas curvas, eu posso compreender o que ela disse sobre recuperar o peso. Antes a menina magricela está agora com porte de mulher, além de que a roupa que ela está usando (uma calça de moletom

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