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O Caso De Vincent Rairin Parte 1 - O Caso
O Caso De Vincent Rairin Parte 1 - O Caso
O Caso De Vincent Rairin Parte 1 - O Caso
E-book398 páginas6 horas

O Caso De Vincent Rairin Parte 1 - O Caso

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Sobre este e-book

Vincent Rairin é um homem com uma condição rara, condição essa que o levou a depressão por muitos anos. Uma estranha notícia no rádio sobre um assassino serial lhe trará esperança de cura. Ao conhecer Claire, uma jovem rebelde e problemática em suas investigações, ele mergulhará em um mundo caótico, onde suas percepções e convicções serão alteradas para sempre. Conheça esse estranho romance sobrenatural, uma história de pessoas diferentes entre si, mas que são tragadas para o limiar da loucura pelo mesmo mal.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento21 de abr. de 2016
O Caso De Vincent Rairin Parte 1 - O Caso

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    O Caso De Vincent Rairin Parte 1 - O Caso - L. L. Pradela

    O caso (A noite que eu te perdi?)

    Capítulo I – O lado escuro da Lua

    Gostaria de compreender melhor alguns aspectos da vida. Gostaria de poder ser, mesmo que só por um instante, mais sábio, mais entendido, mais astuto. Talvez assim eu pudesse entender porque eu acabei aqui, sentado nessa poltrona, sozinho nessa sala escura, sem ter onde depositar os meus pensamentos. Sem ter para onde fugir, preso em minha tristeza, preso em um mundo que não sei como entrei. Olho para os lados e vejo os móveis finos, os belos quadros e a lareira que compõe a sala de descanso dessa mansão, mas, na verdade, o que realmente vejo é uma prisão, uma cela que me prende nesse sentimento depressivo tão profundo. Sinto-me enjaulado, encurralado, subjugado por sentimentos que não controlo. Muito pelo contrário, já que parece que eles me controlam: controlam minha amargura e minha falta de fé. Controlam minha falta de motivos para sorrir e para me levantar. Não, não há mais vontade de sorrir dentro de mim, assim como apenas meus olhos querem percorrer essa sala escura.

    Aliás, essa sala tem sido minha única companheira, minha única confidente nesses últimos dias. Dias longos que são seguidos por noites ainda mais longas. Essa forma como o tempo passa é sufocante demais para alguém que gostaria que simplesmente o tempo o atropelasse. Gostaria que as horas se tornassem dias, e os dias, anos, na espera que o tempo não devorasse ainda mais a minha mente perturbada. Se bem que eu acabaria de novo nessa sala, olhando para os mesmos móveis, quadros e para a mesma lareira.

    Uma coisa que chama a minha atenção é essa lareira. De fato, o que chama a atenção mesmo é o fogo que consome a lenha. A macabra dança do fogo cria sombras por toda a parede, e as sombras se contorcem de forma uniforme e bizarra, como se tivessem me cercando. Talvez elas saibam que sou tão vazio e sem forma como elas. Elas são tão insignificantemente passageiras, mas me levam a estranhos sentimentos que simplesmente não compreendo. São sentimentos sem formas, como as formas das sombras nas paredes.

    Reparo também que o fogo consome a lenha assim como essa depressão consome a minha vontade de levantar-me dessa poltrona. Nada me motiva, nem mesmo a bela visão que tenho do céu que posso ver pela janela a minha direita nesse típico fim de tarde de inverno nova-iorquino. Sempre apreciei o modo que fica o céu de inverno, como os raios de sol travam uma incessante luta contra as nuvens, transformando o firmamento em um grande espetáculo. Talvez eu tenha perdido o gosto pelas coisas simples da vida, ou talvez os céus não sejam mais como eram antes, mas uma coisa é certa: há muito tempo que as tardes de inverno não movem mais o meu coração. Dizem que quando se vive muitas experiências ruins nessa vida as coisas simples se tornam obsoletas:

    – Realmente eu já tive algumas experiências ruins nessa vida…

    Ultimamente adquiri o estranho hábito de falar sozinho. Acho que estou perdendo a sanidade. Talvez isso seja um efeito colateral de algumas memórias que ainda atormentam minha mente, que incessantemente me assombram a noite, me fazendo acordar em meio à escuridão. Memórias que fazem parte de mim, mesmo que ardentemente eu desejasse que elas fossem apenas sonhos ruins.

    Minhas memórias são um tanto confusas. Lembro-me de tantos e tantos eventos em décadas e décadas, cada fato que o mundo viveu e cada transformação que a sociedade passou, mas não consigo me lembrar com clareza do que aconteceu naquele dia, naquele trágico dia que mudou a minha vida e levou a minha sanidade embora. É impressionante o que um dia é capaz de fazer na vida de um homem, e como um dia pode se tornar inesquecível, mais que anos e anos de vida sobre essa terra amaldiçoada.

    Lembro-me que era inverno em Londres, minha terra natal. A neve cobria o telhado das casas assim como o véu cobre o rosto da noiva prestes a se desposar. Consigo me lembrar do cenário, mas não me lembro há quanto tempo foi. Sei que eu não tinha visto tantos invernos como agora eu já vi:

    – Já faz um bom tempo…

    Voltando as minhas memórias, lembro que eu servia a Scotland Yard como investigador. Eu havia adquirido a estranhamente satisfatória missão de busca e apreensão de certo assassino que estava estripando prostitutas pelas sombrias e esquálidas ruas londrinas. De fato, meus talentos como investigador rapidamente me levaram ao encalço do pobre diabo. Talvez minha sorte fosse outra se eu soubesse que ele também estava me seguindo, em meu encalço, por motivos que cansei de tentar entender.

    Aqui. Esse é o exato momento em que minhas memórias se confundem e se apagam, como se por um breve momento da minha vida eu tivesse deixado de existir. Minha vida foi encurtada naquele momento, os sentidos apagados para que o que acontecera naquele lugar tivesse por testemunhas apenas as paredes daquele beco escuro. Não fui dilacerado como uma daquelas vadias, mas não sei o que aconteceu ali. Gostaria de entender o que aconteceu, mais do que tudo nessa vida, porém só consigo me lembrar da sensação de frio e medo que senti. Não era um medo colossal, assim como não era um frio colossal, mas eles estavam lá, me servindo de companhia indigesta e mal vinda. Lembro-me também que acordei dois dias depois, no mesmo local. Não sentia mais frio nem medo, mas estava com sede, muita sede.

    Por falar em sede, deixo as minhas memórias de lado por agora e bebo a bebida que está numa bela taça de cristal que estou segurando. Sempre fui um apreciador de belos vinhos e whiskies antigos, principalmente os escoceses. Adorava poder apreciar também um belo brandy um pouco mexido, mas agora é diferente:

    – Sangue. É sempre sangue em minhas taças.

    Enquanto o líquido desce na minha garganta posso sentir o gosto metálico estalar na minha língua, aliás, o único sabor que consigo sentir. Meu paladar me deixou em uma esquina da vida que não me lembro de ter dobrado, e nem ao menos sei como voltar para pegá-lo novamente. Nem me lembro como era o gosto de uma bela massa italiana feita com um molho encorpado, talvez um corte de cordeiro mediterrâneo para acompanhar o festim. Só consigo sentir mesmo esse maldito sangue.

    Olhando para essa taça vazia, suja de fluidos que outrora estiveram dentro de alguém, eu tento entender o porquê dessa estranha sede, e por mais uma vez eu me pergunto se dentro desse corpo que se enche de sangue ainda reside uma alma. Sempre que vejo essas taças vazias, sinto que estou ficando cada vez mais vazio, oco como um baú velho que resiste ao tempo. O gosto que reaviva as minhas papilas gustativas me rouba qualquer chance de sorrir, qualquer chance de ser diferente da triste figura sentada na poltrona.

    Por falar nesse assunto, minhas memórias se voltam ao primeiro dia em que provei sangue. Eu não queria fazê-lo, mas a sede já me castigava por três dias, fazendo com que eu já não mais controlasse os meus instintos, não sendo mais o senhor de meus domínios mentais. É sempre horrível se lembrar disso, ainda mais por se tratar de uma vítima que só tinha uns sete anos de idade. Não lembro como ocorreu, não acredito que tenha sido premeditado, já que me é tão horrendo e odioso só de pensar: quando me dei por mim, estava segurando um pequeno corpo inerte e pálido, com cabelos ruivos e longos, uma pele de seda fria como a neve londrina da noite. A sede havia passado, pelo menos, temporariamente.

    Eu me odiei desde então. Creio que minha primeira tentativa de suicídio foi na mesma noite, porém só constatei que coisas que matam pessoas comuns não são capazes de me matar, e para descobrir isso, foi uma sucessão de dolorosos fracassos: afogamentos, venenos, quedas de grandes alturas, nada disso funcionou, nem mesmo o tempo. O maldito tempo não me levou à velhice como faz com todos os outros, me fez vagar por essa terra amaldiçoada, como um fantasma que ronda cemitérios e outros lugares pouco convidativos. Sempre que penso em quanto tempo passou desde aquela noite em Londres, o número de anos em si, minha carne treme como se estivesse tentando se soltar dos ossos. Não entender o que está ocorrendo comigo mesmo é horrível demais, doloroso demais. Minha vontade de me entregar ao doce abraço da morte não é correspondida. Parece que a morte esqueceu-se de ver em seu velho tomo se meu nome não é o próximo da lista.

    Acho que vou me levantar um pouco e dar uma volta pela mansão. Quem sabe ver algo diferente dessa lareira não me anime um pouco.

    Saio da sala de estar e me dirijo até a cozinha, mas antes paro para apreciar minha coleção de Claude Monet que está nesse corredor. Sempre apreciei a arte por conseguir retratar emoções além da condição humana, e minha forma de arte favorita é a pintura, tanto que já fiz algumas aquisições caras em nome de minha coleção de arte e obras antigas. Os grandes pintores conseguem dizer o que estavam sentindo em suas telas, mesmo pintando retratos e paisagens, e tal habilidade é fascinante:

    – Qual sentimento seria retratado em um quadro pintado por minha pessoa? Será que ele seria apreciável?

    Eu duvido muito. Ninguém apreciaria uma tela toda negra.

    Enquanto olho os quadros, eu penso em algo interessante sobre o fato de ter passado por um número maior de invernos do que se deveria: a capacidade de obter riquezas. De um simples detetive a um milionário de Manhattan, eu duvido que eu conseguisse tal feito sendo uma pessoa normal. Se bem que eu soube aproveitar muitas bem as oportunidades que me surgiram, como por exemplo, a quebra da Bolsa de Valores em 1929. Teve gente que foi à falência, perderam casas e mal podiam cuidar de seus filhos. É claro que teve gente que lucrou com isso; sempre existem pessoas prontas para lucrar com o desespero dos outros. De fato, esse é um pecado, o qual eu não posso negar que cometi:

    – Será que minhas ações subiram?

    Outra coisa que a minha suposta incapacidade de fim póstumo tem de bom é poder juntar conhecimentos sobre as ciências humanas que mais me interessam, como a psicologia e psiquiatria. Com toda a falta de modéstia que um inglês tem o direito de sentir, não imagino que existam outros estudiosos da mente humana com tantos conhecimentos como a minha pessoa. Não cheguei a fazer medicina, como os jovens psiquiatras de hoje, mas todo o conhecimento que adquiri durante meus tempos de detetive, as duas grandes guerras e mais o resto do tempo que apenas observei a humanidade, e creio que a observei o suficiente, me deu as credenciais que nenhuma escola me daria. Nenhum escolar, por mais sábio e velho que seja, pode ser meu adversário na velha observação de comportamento.

    Na verdade sempre achei que o poder da mente poderia me fazer entender melhor a minha condição, mas parece que me enganei:

    – Será que o doutor Jung também pensava assim?

    Estou falando sozinho de novo. É melhor eu continuar a minha caminhada antes que eu comece a conversar com os quadros.

    Chego até a cozinha e pergunto a mim mesmo porque alguém como eu precisa de uma cozinha, afinal, não há tempero nesse mundo que tire o sabor do sangue de minha língua. Se bem que ter um banco de sangue disfarçado em casa é muito melhor que caçar pobres coitados pelas ruas. Antigamente era difícil conseguir sangue sem ferir alguém ou mesmo levantar suspeitas das autoridades. Tive que me mudar várias e várias vezes por causa de algumas investigações que foram levantadas contra mim. Hoje, que estou abastado, é bem mais fácil, já que na América dinheiro compra tudo. É só fazer algumas polpudas doações para os hospitais que eles entregam o que eu preciso. Se alguém ficar desconfiado digo que preciso fazer hemodiálise constantemente. Eu sei que isso é um tanto cruel com as pessoas que doam sangue, mas, se parar para pensar, elas estão ajudando alguém com uma rara condição patológica.

    Quando cheguei à cozinha não havia reparado que Burt Woodgate, um senhor inglês de sessenta e cinco anos que me serve como mordomo estava lavando algumas taças ensanguentadas. Burt é o único que sabe de meus estranhos costumes.

    Burt me pergunta com a típica educação inglesa:

    – O senhor está bem, senhor Rairin?

    – Sim, eu estou bem, senhor Woodgate.

    É muito estranho chamar de senhor alguém que eu vi nascer. Mais estranho que isso apenas o fato de que eu o vi atravessar a infância, a adolescência e toda a vida adulta, até chegar à velhice, e comigo não acontecer nada. Também é estranho o respeito que ele tem para comigo. Qualquer pessoa que soubesse de minhas condições e costumes pouco ortodoxos jamais seria o bom amigo que ele é:

    – O senhor deveria dar uma volta pela cidade, senhor Rairin. Fará o seu bom humor voltar.

    O mordomo fica me olhando, esperando alguma resposta. Ele tem razão, vou acabar mofando nessa mansão.

    – Estou pensando em ir até o centro da cidade, ver se algo está acontecendo. Talvez me atualizar.

    – Ver pessoas diferentes fará o seu entusiasmo voltar, senhor. Não convém o senhor ficar aqui, sozinho, nesse belo fim de tarde.

    Burt sempre soube o que dizer para tentar me alegrar. Creio que desde sua longínqua juventude ele já era muito sábio. Acho que pessoas que nascem com o dom da sabedoria deveriam ser respeitadas, não esquecidas. Os conhecimentos dos mais velhos são jogados as traças pelos mais jovens, e isso é um grande erro: trocar sensibilidade intelectual por tecnologia burra e insípida.

    Se bem que as palavras sábias do mordomo já não me confortam como outrora. Antigamente eu buscava a solução de todos os problemas na sabedoria dos homens antigos: Platão, da Vinci, Aristóteles e mais um monte deles, mas nenhum pôde responder aos meus questionamentos. Nenhum dos tantos livros que eu li respondeu a uma simples questão: porque existem problemas que não contém solução?

    A verdade é que eu já não tenho nenhuma esperança quanto a minha condição deveras peculiar, maldição como gosto de me referir a ela. Às vezes penso se isso não é, na verdade, uma doença. Talvez exista um remédio que controle a minha sede de sangue e traga os meus sentidos de volta e…

    – O senhor não disse que ia dar uma volta, senhor? O senhor já está aí parado há alguns minutos.

    Esqueço os meus pensamentos e respondo ao mordomo:

    – É que eu estava tão longe com os meus pensamentos… mas eu vou sim.

    Deixo o mordomo na cozinha e me dirijo até a garagem subterrânea da mansão e fico observando os meus carros. Aston Martin, Ferrari, Bentley e muitos outros que eu nem me lembro porque comprei, e os que eu me lembro do motivo eu tenho vergonha só de pensar. Dizem que são brinquedos de homens, mas pra mim, são um monte de porcarias eletrônicas, com chips de computadores e sem almas, quase barbeadores de quatro rodas. Por isso que eu gosto do meu velho Impala ano 1967 todo preto, que combina muito mais comigo do que esse monte de batedeiras com rodas. Ele sim tem alma.

    Abro a porta do Impala e sento no banco do motorista. Arrumo o espelho retrovisor traseiro e, por um momento, reparo um pouco na minha aparência. É impressionante o que essa maldição fez comigo: não envelheci nem sequer um ano desde o meu encontro com o Estripador. Os meus cabelos pararam de crescer, nunca passando da altura dos ombros, e continuam castanhos claros como eram antes. Sei que tenho o ar antigo (ou antiquado) da minha era de nascença, mas não aparento ter mais que trinta ou trinta e cinco anos. Às vezes acho que esse rosto que me olha não é meu, e isso sempre me faz afastar os olhos dos espelhos.

    Abro o porta-luvas do carro. Dentro dele se encontram dois itens curiosos: uma garrafa de bolso, cheia de sangue, e uma pistola nove milímetros:

    – Não lembro que a última vez que saí tenha sido tão agitada assim.

    De qualquer forma, coloco a garrafa no bolso de dentro do meu terno, mas deixo a arma no porta-luvas. Duvido que eu vá precisar dela para um simples passeio.

    Ligo o motor do carro e abro o portão da garagem com um botão no meu chaveiro. Conduzo o carro para fora da mansão.

    Passando pelas ruas, observo como o semblante das pessoas está amedrontado, desde os atentados de setembro e das guerras. Essa é sem dúvida a década que as pessoas têm mais medo do que pode vir com o futuro e, pra ser sincero, elas estão certas em temê-lo. Creio que o mundo está tão afundado em coisas horríveis que são consideradas normais, como terrorismo, medo em larga escala, promessas vazias de pessoas vazias e mesmos o desalmado e injusto capitalismo, que daqui a uns cinco ou seis anos, com certeza alguém irá perder o controle e mandar o mundo todo para o limbo infernal que é de seu merecimento:

    – Será que eu sobreviveria a um holocausto nuclear? Acho que sim.

    É melhor parar de falar bobagens e prestar mais atenção na rua. Não quero causar um acidente e matar gente inocente. Se pelo menos eu morresse junto…

    Eu acho que vou até o Central Park. Eu sempre gostei de ter um pedaço de floresta no meio dessa selva de concreto. Às vezes penso que ele deve se sentir mal no lugar em que está. Apesar de ser um ponto turístico nova-iorquino, sob minha ótica, ele não combina com a cidade. Vai ver é isso que gosto dele: não se parece com o mundo ao seu redor. Só é uma pena ver o parque tão perigoso nos dias de hoje. É claro que não chega a ser a Hooversville que era na época da depressão, mas mesmo assim, ele ainda é o lugar favorito dos ladrões e assassinos. Lembro de uma vez ter visto um sujeito atacar uma garota por causa de um relógio, enquanto ela corria pelo parque. É realmente uma pena esses dias modernos serem tão horríveis e perigosos, com toda a sorte de criminosos andando livremente.

    Mas afinal quem sou eu para julgá-los? Eu mesmo já fiz coisas bem piores do que roubar um relógio para conseguir sangue. Coisas que não me orgulho nem de lembrar.

    Estaciono o carro no parque e paro para refletir um pouco, mas minha reflexão é interrompida pela visão de um jovem casal de namorados sentados em um banco, a poucos metros de mim. Acho curioso o modo com o qual ele toca os cabelos dela, tirando uma folha seca de seus fios, (folha de cânhamo se não me falha o meu pouco conhecimento de botânica) e como ela sorri de forma espontânea para ele. Percebe-se que ambos os corações estão batendo bem forte e é isso o que me incomoda mais: a cada olhar deles, eu me sinto menos humano; menos humano por não poder sentir isso.

    Pra falar a verdade, eu nem lembro qual foi a última vez que senti o calor do corpo de uma mulher. Não que eu não tenha estado com nenhuma, é que para mim a palavra sentir tem um significado diferente: desde o meu encontro com o assassino serial eu pareço ter perdido a sensação do que é sentir o calor de uma mulher, de sentir qualquer coisa junto ao meu corpo me passando calor, como se algo roubasse o prazer da companhia, o prazer do ato. Das vezes que tentei, foi como estar junto de um cadáver, algo sem vida que não tem nada a oferecer. Isso é extremamente frustrante:

    – Cada vez menos humano…

    Acho que eles ouviram o que eu disse, pois fugiram da minha presença. Preciso aprender a controlar essas minhas loucuras.

    É melhor sair daqui. O Central Park não está nos seus bons dias.

    Ligo o motor do carro e saio do parque. Acho que escolhi um mau dia para sair de casa. Ou talvez uma má década.

    – Será que tem alguma coisa que preste no rádio?

    Ligo o aparelho e tento sintonizar em uma estação de notícias. É impressionante como ficou difícil operar esses equipamentos tecnológicos. Por que não fazem as coisas simples como eram antes, sem esse monte de luzes que assustam meus velhos olhos? Como eu acho uma rádio de notícias nesse inferno fluorescente?

    … e foi encontrada, no bairro do Soho, nessa manhã a sexta vítima do misterioso assassino conhecido como ‘o Imolador’. A vítima era uma jovem mulher de apenas vinte e três anos e foi encontrada morta como todas as outras cinco vítimas: com cortes e perfurações provavelmente causados por uma espada e sem nenhuma gota de sangue no corpo…

    O que? Sem sangue? Como assim sem sangue?! O que está acontecendo?!

    É melhor prestar atenção na reportagem. Parece que agora está sendo transmitida uma entrevista com uma voz conhecida:

    Nós estamos investigando, porém, até o presente momento não temos nenhum suspeito, mas toda a força policial está fazendo o máximo para que a cidade volte a ser um lugar seguro. Até lá pedimos para que os cidadãos não andem sozinhos pelas ruas de madrugada e ajudem com qualquer informação que tiverem.

    Estou chocado. Não sei nem o que pensar. As vítimas do tal assassino Imolador se parecem com as pessoas que eu mesmo vitimei. Se ainda tivesse nos piores dias de minha vida eu afirmaria que fui eu que matei essas pessoas.

    Mas será que não foi? Será que não perdi o controle e sai pelas ruas matando gente inocente, como eu já fiz antigamente? Mas eu não me lembro de ter feito nada horrendo assim, pelo menos não nesses últimos anos. Já estou a um bom tempo sem entrar em um frenesi descontrolado:

    – É como se o passado estivesse se sobrepondo ao presente, como um paradoxo. Parece que o destino resolveu fazer minha existência se tornar ainda mais confusa.

    Não é possível que tenha sido eu. Só perco o controle de minhas ações quando entro em abstinência de sangue, o que não acontece há muitos anos. Mas, se não fui eu, quem teria sido? Quem seria capaz de fazer isto? Aliás, quem precisaria cometer tal ato? São muitas perguntas sem resposta.

    Estaciono o carro no meio-fio. Preciso de tempo para refletir sobre o que acabei de ouvir. Talvez a reflexão me faça entender o que está acontecendo. Essa notícia, que simplesmente apareceu do nada nesse rádio maluco que não me obedece, me tirou dos eixos:

    – Assassino ataca pessoas e, após teoricamente cortá-las com uma espada, some com o sangue de seus corpos. Tira-se a espada e isso se torna extremamente parecido comigo.

    Começando pelo princípio de que não fui eu quem cometeu tais atos, uma coisa me vem à mente: talvez o assassino só seja uma pessoa com alguma debilidade mental, insano o suficiente para não ter escrúpulos que o impeçam de cometer atrocidades como essa que eu acabara de ouvir. No começo do século existiam vários casos de assassinos em série que não passavam de pessoas com distúrbios psicológicos; tristes almas condenadas a serem simples párias, era o que diziam. É claro que, naquela época, a justiça pouco ligava para a saúde mental das pessoas; o povo precisava de alguém para descarregar a sua vingança. Não que eu seja contra, mas creio que não se pode julgar um indivíduo excepcional como se fosse um homem pleno de suas faculdades mentais:

    – Se bem que eu pouco me importo.

    Bem… voltando ao que interessa, também entendi que o tal Imolador fez como vítima uma jovem mulher. Homens que matam mulheres geralmente fazem isso por causa de alguma frustração com o sexo oposto, geralmente no campo sexual. Assim como os estupradores, os assassinos de mulheres sempre têm alguma memória humilhante, algo que os fazem pessoas de baixa estima e, por causa de suas limitações psicológicas, acabam matando mulheres achando que, de certo modo, isso os realiza. Já vi casos de homens que sentiam prazer sexual com a morte de suas parceiras, o que é, no mínimo, repugnante. Mas de uma coisa eu sei: não posso fazer julgamento de um homem que nem conheço. Precisaria de mais evidências para isso.

    Mas afinal porque me sinto movido por esse caso? Sei que não é por compaixão pelas vítimas, já que nunca fiz o tipo que se importasse. Será que o meu coração votou a bater depois de tanto tempo de reclusão?

    – Não, é claro que não. Estou realmente interessado no assassino, não nas vítimas.

    Creio que, se puder chegar ao Imolador, poderei entender melhor a minha maldição, minha condição, já que ele também parece ser, ao julgar seus atos, um portador do mesmo mal que me assola há décadas. Talvez ele seja a resposta para todos os meus questionamentos, para todas as minhas perguntas. Quem sabe ele não esteja desenvolvendo uma cura? Seria muito bom poder me deliciar com os prazeres dessa vida mais uma vez:

    – Tenho que encontrá-lo, mas como?

    Lembrei que eu havia reconhecido a voz que dava a entrevista no rádio. Aquela voz era familiar aos meus ouvidos. Uma voz que já me causou problemas.

    Mas é claro! Aquela voz pertencia ao delegado de polícia Eric Wegun, um homem que conheci numa ocasião bem peculiar.

    Conheci o delegado quando ele ainda pertencia ao vigésimo primeiro distrito de polícia de Pittsburgh. O desgraçado cobrou propina de uma de minhas usinas e acabou ficando rico com o meu dinheiro. Ele sabe que eu sei de sua índole criminosa, e creio que ele não vai se negar a me ajudar, me fornecendo algumas evidências. Aliás, ele disse para a população que não havia suspeitos:

    – Mentira deslavada! Sempre há suspeitos.

    Bem, então é isso: vou até o delegado e o chantageio até que ele me dê o que eu quero saber sobre os crimes do Imolador, todas as informações do caso. Pela minha experiência como investigador sei que as vítimas, seus padrões e área de atuação me levarão ao paradeiro do assassino. Depois, precisarei interrogar o assassino para saber se ele é como eu e se ele teve algum sucesso em achar formas de se livrar disso. Até que, para quem estava mofando em uma sala escura, agora tenho muitas coisas para fazer. Valeu a pena sair da mansão.

    Acelero o carro em direção ao décimo sétimo DP de Nova York, que fica no centro da ilha. Creio que ele deva trabalhar lá. Duvido que ele queira combater o crime no Harlem ou no Bronx. Na certa ele deve estar vivendo em plena mordomia.

    Após uns dez minutos de iluminadas avenidas chego ao décimo sétimo departamento de polícia de Nova York, e como eu suspeitei, o delegado está trabalhando aqui. Na realidade, ele está entrando em seu carro (um Cadillac azul claro) nesse exato momento. Hora de agir.

    Jogo o meu carro na frente do dele, no momento em que ele ia saindo do estacionamento. Enfurecido, ele buzina duas vezes e sai de dentro do carro:

    – Tira essa lata velha da frente, imbecil!

    Saio do carro armado de meu velho sorriso irônico:

    – Achei que gostasse de carros antigos, senhor Wegun.

    Curioso como o semblante dele mudou de uma hora para a outra…

    – Senhor Rairin, me desculpe, eu não…

    – Belo carro, delegado. Foi pago com o meu dinheiro?

    O bom delegado bate à porta do carro, gasta alguns segundos de meu tempo ascendendo um cigarro e se vira para mim:

    – O que o senhor quer, senhor Rairin?

    Aproximo-me dele e, colocando minha mão direita sobre os seus ombros, olho dentro de seus olhos:

    – Se acalme delegado. Eu só quero algumas informações.

    O delegado fica na defensiva. É fácil perceber que ele não se sente à vontade perto de mim:

    – E o que o senhor quer saber?

    – Quero que me diga tudo o que sabe sobre o Imolador.

    Wegun me dá as costas:

    – O senhor não vê televisão? A força não tem nada.

    – Não menospreze minha inteligência, senhor Wegun. Eu conheço suas trapaças…

    Ele se vira para mim:

    -… E talvez eu me esqueça delas, isso se o senhor cooperar.

    Wegun abaixa a cabeça e dá uma longa tragada em seu cigarro. Após soltar uma baforada de fumaça ao ar ele me diz, sorrindo:

    – O senhor realmente é um bom negociador.

    Ele se inclina para dentro de seu Cadillac e pega um envelope amarelo que estava no banco do carona:

    – O que quer saber?

    – Tudo – respondo a ele – vítima, suspeitos, área de atuação…

    O bom delegado me entrega o envelope amarelo com desconfiança nos olhos:

    – Aqui o senhor encontrará tudo sobre o caso. Aliás, por que o senhor está tão interessado nisso?

    Tolo. Ele realmente acha que eu irei dizer a verdade para o primeiro que me pergunta?

    – Eu não tenho intenção de dizer isso ao senhor. Sabe como é, falta confiança na nossa relação…

    – Eu já esperava por isso. Sei que começamos com o pé esquerdo, há quinze anos, e não espero que o senhor aceite minhas desculpas. Porém, saiba que os tempos são outros agora.

    Dou as costas para o delegado e me dirijo ao meu carro. Não sou obrigado a ouvir esse monte de bobagem sobre arrependimento, que não funciona comigo. Eu mesmo me arrependo de ter seguido o Estripador naquela noite de inverno, mas isso não traz minha humanidade de volta.

    Quando vou entrar no carro escuto a voz do delegado:

    – Já faz quinze anos que conheço o senhor, e o senhor ainda se parece com o mesmo homem. Qual é o seu segredo?

    O que ele acaba de dizer me faz pensar como o tempo pode ser um senhor vil; antes o delegado era forte e jovem, porém agora ele está quase careca, tenta esconder certa protuberância abdominal e ainda usa um bigode ridículo. Realmente passou um bom tempo:

    – Não roubar o patrimônio alheio deve ser o meu segredo, delegado Wegun. Acho que

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