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Anjo De Asas Quebradas
Anjo De Asas Quebradas
Anjo De Asas Quebradas
E-book422 páginas41 minutos

Anjo De Asas Quebradas

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Sobre este e-book

Anjos de Asas Quebradas conta a história de Marcelle e suas dores. Como sua história familiar define seu modo de ser, de ver a vida e de viver. Uma história que fala sobretudo do amor entre Marcelle, sua mãe e seu pai.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de out. de 2019
Anjo De Asas Quebradas

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    Pré-visualização do livro

    Anjo De Asas Quebradas - Joaquim Teles De Faria

    ANJO  

    DE ASAS 

    QUEBRADAS 

    JOAQUIM TELES DE FARIA 

    F219d FARIA, Joaquim Teles de. 

    Anjo de Asas Quebradas/Joaquim Teles de  

    Faria Brasília-DF: Edição do Autor. 2019. 220p. 

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    rla de Barros  

    Santos Teles 

    ISBN: 9781076157492 

    1. Ficção. 2. Ficção Nacional. 3. Romance. 4. 

    Romance Nacional. 5. Literatura Brasileira. 

    I. Título. II. Romance, História, Ficção. III. 

    Joaquim Teles de Faria 

          CDD: B869  

          CDU: 82-3 

    Primeira Parte 

    ... E como castigo, arrancou-me as asas, legando-me o fado triste de vagar por 

    entre homens e pedras, sangrando sonhos e sorrindo lágrimas, pois que o anjo 

    privado do céu já não se reconhecia, já não podia mais voar, e de tanto não 

    poder, desaprendeu a ver e a voar... 

    Olhos de Mãe 

    Eu  nunca  acreditei  no  amor!  Amar  sempre  me  pareceu 

    uma arte difícil, um ofício para quem não tinha tempo de querer 

    algo maior, algo melhor, mais prático. Eu queria, eu sempre quis!  

    Acho  que  essa  minha  compreensão  do  amor,  tem 

    profundas  raízes  nas  experiências  amorosas  de  minha  mãe, 

    experiências, quase sempre muito sofridas,  de tão sofridas, eram 

    mesmo indesejáveis, do meu ponto de vista.  

    Desde a relação com meu pai, até a última tentativa antes 

    de enfim encontrar sossego para o seu coração, tudo que sempre 

    experimentou  e  que  testemunhei,  foi  o  amor  a  machucá-la.  O 

    amor a ferir a minha mãe. Machucava-a tão profundamente, que 

    às vezes a fazia sangrar, outras vezes a reduzia a cinzas, devorada 

    pelas  chamas  da  solidão  do  abandono,  no  abrasar  do  desamor 

    próprio  e  da  angustiosa  solidão.  Assim,  eu  fugia  do  amor,  eu  o 

    abominava e nunca tive tempo para amar. Pelo menos era o que 

    eu imaginava. 

    Minha  mãe  era  um  ser  maravilhoso,  tão  frágil,  tão  dócil, 

    tão amável e ao mesmo tempo de uma força invencível, de uma 

    determinação, uma resignação fascinante. Ela percebia como sua 

    história  me  atingia,  mais  do  que  atingia,  ela  sabia  que  o  que 

    vivenciávamos  enquanto  mãe  e  filha,  me  marcaria  para  sempre, 

    me  definiria  em  grande  medida,  enquanto  pessoa  e  enquanto 

    mulher.  

    Acho  que  por  tudo  isso  que  ela  via  e  de  algum  modo 

    sabia, ela procurava adoçar-me temperando com sua doçura, seu 

    amor e sua poesia sempre tão rica em esperança e transcendência.  

    Recordo-me que ela sempre me dizia, desde a minha mais 

    tenra  lembrança,  que  eu  era  um  anjo,  o  seu  anjo.  Que  eu  nasci 

    pequenina,  frágil  e  sensível,  linda,  linda,  linda...  Assim,  me  dizia

    minha mãe! 

    -  Ah,  minha  filha!  Você  era  o  bebê  mais  lindo  que  esse 

    mundo já recebeu! Jamais me esquecerei da emoção que foi olhar 

    você pela primeira vez. Tocá-la em sua pureza e fragilidade, tê-la 

    em meus braços em nosso primeiro contato pós-parto. Recebê-la 

    em nosso primeiro abraço, onde você com sua pele de porcelana, 

    pele  de  maciez  incomparável  e  beleza  indescritível,  concluiu  a 

    mãe que nascia em mim desde o primeiro momento da gravidez, 

    dando-me  seu  primeiro  abraço.  Abraço  dócil  que  sacramentou 

    em mim a mãe que toda mulher é em potencial.  

    Quando  seus  pequeninos  e  ávidos  lábios  receberam  e 

    acolheram meu seio e assim alimentou-te matando sua fome pela 

    primeira  vez,  ali  naquele  ato,  a  uma  só  vez,  simultaneamente, 

    você se confirmava como filha e eu como mãe, numa relação que 

    jamais teria fim. 

    Quando  minha  mãe  assim  falava,  ela  parecia  que  se 

    transfigurava,  entrava  em  contato  com  algo  que  a  habitava  em 

    algum  lugar  tão  profundo  que  só  muito  raramente  conseguia 

    soerguer-se  e  se  fazer  visível  em  seus  olhos,  matizando  seu 

    semblante  com  uma  luminosidade  indescritível,  um  brilho 

    angelical. 

    Então nesse instante eu imaginava como o amor era belo 

    e  irresistível,  porém  muito  raramente  isso  acontecia,  e  quando 

    acontecia  era  por  breves  instantes  e  logo  a  face  monstruosa  do 

    amor  dissipava  essa  compreensão  poética  e  pueril  que  era  fruto 

    das  memórias  e  narrações  de  minha  mãe,  a  rememorar  suas 

    alegrias, como alguém que tem nesses poucos momentos felizes a 

    sua  única  riqueza,  já  que  a  vida  material  e  social,  familiar  e 

    amorosa foi sempre marcada pela escassez e pela dor.  

    Quando me lembro dessas coisas sempre fico a imaginar 

    se  teria  sido  de  fato  assim,  ou  se  tudo  isso  não  passa  de  uma 

    releitura  de  minha  puerilidade,  onde  algum  artifício  mental 

    transfigura a infância e transmuta-a numa lembrança mágica que 

    embevece a alma e convida a amar. Ou  ainda, se não seria tudo 

    isso  um  belo  papel  de  presente  no  qual  mamãe  cuidou  de 

    embrulhar nossa relação, nossa história e nossas dores, para que 

    elas  me  ferissem  o  menos  possível,  pois  mamãe  sempre  tentou 

    me convencer com sua doçura e amabilidade maternas, com sua 

    eloquência mansa e serena, de que eu era um anjo escondida em 

    pele de menina. 

    Lembro-me de sempre devanear na crença infantil de que 

    minha mãe dizia a verdade e que eu era de fato um anjo. Assim, 

    me deitava no chão e fitava o céu azul profundo da Chapada dos 

    Veadeiros  onde  de  tanto  olhar  eu  me  via  a  voar,  a  voar  pela 

    imensidão  celeste.  Um  voo  tão  belo  quanto  era  belo  o  olhar 

    transfigurado de mamãe a me dizer que era eu um anjo.  

    Depois de muito voar no céu azul com as asas de minha 

    imaginação  fecundada  pelas  palavras  de  mamãe,  eu  sempre  me 

    inquietava e desistia do voo para questioná-la e dizia com toda a 

    sapiência  de  uma  criança  inquieta  e  angustiada  pela  dissonância 

    que marcava a beleza da sorte de ser um anjo e a incongruência 

    de não ver em mim a aparência do anjo.  

    Eu  ia  às  vezes  à  igreja  com  a  minha  mãe  e  lá  na  Igreja 

    matriz de São João d’Aliança, dedicada a São João Batista, olhava 

    atenta as imagens dos anjos que ornavam vitrais e paredes.  

    Nesse ambiente sempre me impressionava a imponência e 

    a  beleza  do  anjo  Gabriel,  na  pintura  da  cena  da  Anunciação  de 

    Maria no altar de Nossa Senhora, uma obra de arte pintada pelo 

    padre Bernardo, um missionário holandês que se imortalizou na 

    memória da comunidade São-joanense. 

    As  expressões  do  semblante  do  anjo  Gabriel  sempre  me 

    cativavam o olhar e, me levavam a sonhar e a acreditar que eu era 

    de fato um anjo e que quando eu crescesse também minhas asas 

    cresceriam  e  eu  então  tornar-me-ia  uma  figura  magnifica  como 

    aquela que tanto me impressionava.  

    Porém  os  anos  iam  passando  e  eu  crescendo  e  nada  de 

    minhas  asas  nascerem.  Nem  mesmo  uma  pontinha!  Em  razão 

    disso, sempre que me demorava a fitar o céu imaginando que eu 

    era  um  anjo  a  voar  livremente  pela  imensidão  azul,  eu  me 

    inquietava  e  buscava  a  minha  mãe  a  questioná-la  sobre  eu  ser 

    mesmo um anjo. 

    - Mãe diga-me de verdade e não brinques comigo...  

    Eu sou mesmo um anjo? Se é verdade que sou um anjo, 

    onde  estão  as  minhas  asas?  Porque  elas  não  nascem?  No  que 

    minha  mãe  se  ria,  tomava-me  em  seus  braços  e  cobria-me  de 

    beijos  e  cócegas  a  esfregar  seu  rosto  embaixo  do  meu  queixo 

    arrancando-me  gargalhadas  enquanto  repetia  entre  carícias  e 

    risadas que eu era um anjo escondido em pele de menina. 

    -  Sim  Marcelle  você  é  um  anjo,  mas  não  é  um  anjo 

    qualquer.  Você  é  o  meu  anjo,  anjo  escondido  em  pele  de 

    menina... 

    Em face de minha insistência em saber de minhas asas, ela 

    sempre dizia. 

    - Ora minha filha! Quem você acha que sabe que você é 

    um anjo?  

    Eu  respondia  em  silêncio  com  um  torcer  de  lábios  que 

    exprimiam  melhor  do  que  qualquer  palavra,  que  eu  não  tinha  a 

    menor ideia. Afinal só ela me dizia que eu era um anjo, nem meu 

    pai me chamava assim.  

    Aquele  contorcer  de  lábios  era  de  uma  eloquência 

    tamanha, pois comunicava a mamãe minha total incapacidade de 

    saber  quem  poderia  saber  com  certeza  que  eu  era  um  anjo,  se 

    somente ela me falava disso. Mamãe então continuava... 

    - Ora Marcelle, o que é que eu te digo sempre? Não é que 

    você é um anjo escondido em pele de menina? Não é que você é 

    o meu anjo? 

    Ansiosa  eu  respondia  acenando  com  a  cabeça  e  com 

    palavras ávidas de esclarecimentos. 

    -  Sim  mamãe  é  o  que  a  senhora  sempre  me  diz,  mas  eu 

    nunca  entendo  como  sou  um  anjo  se  não  tenho  asas,  se  não 

    posso voar, senão na minha imaginação! 

    Mamãe então tomava-me em seu colo e me dizia: 

    -  Minha  filha,  você  é  meu  anjo!  Porque  que  você  é  meu 

    anjo?  Por  que  assim,  quis  a  vida.  Entre  tantas  mulheres  que 

    poderiam ser a sua mãe Deus decidiu que seria eu, e assim, deu-

    me você, um dos seus mais belos e queridos anjos. Desse modo 

    você nasceu para tornar a minha vida mais feliz, por isso você é o 

    meu anjo. E porque só eu te digo que você é um anjo? Ora filha! 

    Só eu posso ver o anjo que você é, os outros não são capazes de 

    te ver como você é verdadeiramente. Só quem olha com os olhos 

    do amor é capaz de ver o que o outro é de verdade. Eu olho para 

    você Marcelle com os olhos do amor e por isso eu posso te dizer 

    10 

    com toda certeza, você é o meu anjo! Um anjo escondido em pele 

    de  menina.  E  tem  mais,  se  você  está  escondida  em  pele  de 

    menina,  meu  anjo,  quem  olhar  pra  você  não  verá  o  anjo,  mas 

    somente  a  pele  de  menina  que  te  veste  e  esconde  o  anjo.  É 

    também  por  isso  que  ninguém  te  olha  e  te  diz  que  você  é  um 

    anjo, senão eu. Afinal eu sou a sua mãe, e mãe sabe tudo, tudo, 

    tudo, tudo, mãe sabe até o que ignora.  

    -  Quanto  às  suas  asas  meu  anjinho,  pode  ser  que  elas 

    estejam  crescendo  escondidas  por  debaixo  da  pele  de  menina  e 

    um dia elas apareçam lindas e imponentes encantando o mundo. 

    Porém  pode  ser  que  você  seja  de  uma  espécie  de  anjo  que  não 

    precisa de asas! 

    Essas  conversas  com  mamãe  se  deram  em  muitas 

    ocasiões por várias vezes ao longo dos anos de minha infância, e 

    a cada conversa o assunto se tornava mais complexo, em razão de 

    minha  curiosidade  e  elucubrações  pueris  sempre  sedentas  de 

    sentidos  e  desejosas  de  poder  voar  para  além  da  minha 

    imaginação.  

    Quando  minha  mãe  me  disse  isso  pela  primeira  vez  eu 

    levei minha mãozinha à boca expressando toda a minha surpresa 

    e incredulidade. Ora, como era obvio isso que mamãe dizia, se eu 

    estava  escondida,  como  poderiam  me  ver?  Eu  mentalmente 

    concluía com espanto essa perspectiva que até então eu ignorava, 

    enquanto exprimia em verbo oral a minha surpresa indisfarçável. 

    - Mamãe! Então existem anjos sem asas? 

    Mamãe  se  ria  deliciosamente  com  minha  pergunta  e 

    surpresa  e  concluía  certeira  a  me  convencer  pelo  menos  por 

    enquanto. 

    -  Sim  minha  linda  Marcelle.  Existem  anjos  com  asas  e 

    anjos sem asas. Assim, como existem pessoas de pele branca e de 

    pele preta, de olhos escuros e olhos claros, de cabelos lisos e de 

    cabelos  enrolados,  de  grande  altura  e  de  pequena  altura, 

    11 

    magrinhos e gordinhos... Quer saber Marcelle, isso tudo acontece 

    porque Deus é muito, muito, muito criativo e assim ele não para 

    de criar novas coisas, novas pessoas e novos anjos e por isso ele 

    tem anjo com asas e anjos sem asas, pessoas pequenas e pessoas 

    grandes, e assim por diante. 

    -  Mas  mamãe!  -  insistia  eu  curiosa  -  Então  tem  anjo  na 

    terra e no céu, com asas e sem asas? - ao que ela dizia: 

    - Sim filha, o céu e a terra estão juntos, juntos como nós 

    duas quando estamos no mesmo abraço. Nós ficamos tão juntas 

    que  parecemos  uma  só,  assim  é  o  céu  e  a  terra,  ninguém  sabe 

    onde  termina  um  e  começa  o  outro  e  embora  sejam  coisas 

    diferentes,  de  tão  apertados  que  estão  nesse  abraço,  fica  difícil 

    diferenciar  um  do  outro  e  saber onde  cada  um  está  de  verdade. 

    Exatamente como nós duas quando nos abraçamos ninguém sabe 

    dizer onde começa a mamãe e onde ela termina, onde começa a 

    Marcelle  e  onde  ela  termina  somos  pessoas  diferentes,  mas 

    estamos  uma  na  outra  como  o  céu  e  a  terra  perpassam  um  ao 

    outro. 

    - Que bonito mamãe! Eu não entendo direito, mas gosto 

    disso, gosto de quando estamos abraçadinhas forte, forte, forte e 

    nos  tornamos  uma.  No  entanto  eu  quero  minhas  asas!  Mesmo 

    sabendo  que  papai-do-céu  tem  muitos  tipos  de  anjos,  eu  quero 

    ser um anjo de asas. Um anjo de asas tão grandes e belas como as 

    asas  do  Anjo  Gabriel.  E  assim,  como  ele mamãe  eu  quero  voar 

    no  céu,  levando  os  filhos  de  Deus  para  morar  na  barriga  das 

    mamães, igual ele fez com Nossa Senhora, quando ele levou Jesus 

    para morar na barriga dela. 

    -  Você  é  uma  gracinha  meu  anjo!  Mamãe  dizia  não 

    cabendo em si de felicidade e eu não parava de perguntar. 

    -  Mamãe,  mas  não  eram  as  cegonhas  que  levavam  as 

    crianças  para  as  mamães?  Por  que  não  foi  a  cegonha  que  levou 

    Jesus para Nossa Senhora? Ela não gostava de cegonhas? 

    12 

    Assim, entre questões e poesia, entre amor e fé, a pequena 

    menina  crescia  e  dava  vazão  à  mulher  que  lhe  habitava  em 

    potencial  enquanto  o  anjo  se  desfigurava  nas  mãos  do  tempo  a 

    perder-se  na  infância  que  ficava  a  cada  dia  mais  distante, 

    sobrevivendo  tão  somente  nos  olhos  e  nos  lábios  de  minha 

    amorosa mãe. 

    13 

    Amor Que Dói 

    - Eu vou te matar sua desgraçada! Eu vou te matar... Você 

    é  uma  desgraçada!  Você  sabia  disso?  Desgraçada.  Des..  graaaç... 

    aada! Cadê minha bebida? -  A mão trêmula e embrutecida  pega o copo 

    sobre  o  móvel  na  sala  vira  na  boca,  tragando  o  último  gole  de  whisky,  os

    olhos vitrificados em tonalidade rubra ferem o espaço como que a contemplar

    além do que faz visível. Naquela postura de quem ignora a realidade olha 

    para  aquela  mulher  assustada,  caída  no  canto  da  sala  como  uma  flor

    despetalada pela fúria do vento. –  Uma estática metamorfoseia o débil 

    segundo  num  lastro  de  tempo  que  parece  interminável,  aquele 

    olhar que nada vê enquanto olha, e que ao olhar parece ver além 

    do  que  se  pode  ver,  congela-se  por  alguns  instantes  e  lágrimas 

    surgem no rubor intenso de um rosto sem vida  que da cólera e 

    violência  transmuta-se  em  pranto  descontrolado,  entrecortado 

    14 

    por  palavras  balbuciadas  como  que  pedras  a  cair  dos  lábios 

    daquele que chora e balbucia. 

    - Me perdoa, me perdoa, pelo amor de Deus! Me perdoa... 

    Mas o que é que eu estou fazendo? Me perdoa, me perdoa... 

    Assim, entre súplicas e lágrimas levanta-se cambaleante e 

    dirige-se à porta. Pega na maçaneta abre a porta e projeta o corpo 

    para  fora  da  sala,  indicando  que  sairá  de  casa  em  direção  à  rua.

    Antes de sair, volve a cabeça em direção àquele corpo semimorto 

    no canto da sala e lhe diz: 

    - Me perdoa mãe eu não queria ser como ele! Perdoa-me. 

    A porta fecha-se silenciosamente, enquanto Nestor deixa 

    sua casa e segue a caminhar na noite. 

    A noite vai alta, no colorido das luzes da cidade motores 

    roncam,  sons  exalam  melodias  e  vozes  em  canções  a  embalar  a 

    vida dos notívagos que deixam suas peles diurnas e mostram seus 

    eu’s verdadeiros entre uma festa e outra, entre uma bebida e outra 

    entre um olhar e outro, onde cada um é simultaneamente caça e 

    caçador, na névoa densa da noite são-joanense.  

    Enquanto  a  noite  segue  com  seus  encantos  e 

    possibilidades,  enquanto  a  vida  baila  ao  sabor  da  canção  e  das 

    ilusões  que  enchem  a  noite,  enquanto  corações  se  afogam  em 

    bebidas alcoólicas ao passo que esvaziam um copo atrás do outro, 

    para  disfarçar  as  mazelas  do  cotidiano,  no  silêncio  de  sua  casa 

    ferida  e  machucada  uma  mulher  grávida  de  uma  criança  de  sete 

    meses desperta entre contrações e sangramentos, que prenunciam 

    um parto prematuro em razão dos maus tratos sofridos por parte 

    de seu marido. 

    Lucila  sofre  contrações  fortíssimas,  seu  rosto  está 

    marcado  de  hematomas  escuros  que  evidenciam  uma  surra 

    recente. Seus cabelos foram picotados suas roupas rasgadas e seu 

    corpo  mau  vestido  nos  tecidos  rasgados  de  suas  vestes  nem  lhe 

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    cobrem  nem  lhe  despem,  forjando  uma  imagem  deplorável.  Ela 

    chora, suspira, chora e sangra enquanto se contorce de dor. 

    O  rosto  de  Lucila  está  irreconhecível  após  a  violência  a 

    que  foi  submetida.  Esta  não  foi  a  primeira  vez  que  Nestor  foi 

    violento  para  com  ela,  mas  com  toda  certeza  foi  a  mais  cruel  e 

    mesmo  no  estado  de  dor  e  machucado  em  que  se  encontra 

    somente uma pergunta ocupa sua cabeça e assim ela murmura seu 

    questionamento. 

     - Porque você fez isso? Por quê? –  ele havia prometido que 

    nunca  mais  seria  violento,  ele  jurou  pela  alma  da  mãe  dele  que  jamais

    voltaria a me machucar. -  

    - Porque você fez de novo Nestor, porque, meu amor? 

    Por  entre  dores  e  murmúrio  Lucila  se  arrasta  até  o 

    telefone, e disca o número da casa de seu pai, enquanto o telefone 

    chama ela pensa em voz alta, falando sozinha: 

    -  Tomara  que  seja  Marli  que  atenda,  pois para  ela  posso 

    pedir socorro, se for o meu pai terei que desligar e esperar. Porém 

    não  sei  se  posso  esperar,  minha  barriga  dói  demais,  minhas 

    contrações estão a cada instante, mais próximas e mais fortes. Ah 

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