Anjo De Asas Quebradas
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Anjo De Asas Quebradas - Joaquim Teles De Faria
ANJO
DE ASAS
QUEBRADAS
JOAQUIM TELES DE FARIA
3
F219d FARIA, Joaquim Teles de.
Anjo de Asas Quebradas/Joaquim Teles de
Faria Brasília-DF: Edição do Autor. 2019. 220p.
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Santos Teles
ISBN: 9781076157492
1. Ficção. 2. Ficção Nacional. 3. Romance. 4.
Romance Nacional. 5. Literatura Brasileira.
I. Título. II. Romance, História, Ficção. III.
Joaquim Teles de Faria
CDD: B869
CDU: 82-3
4
Primeira Parte
... E como castigo, arrancou-me as asas, legando-me o fado triste de vagar por
entre homens e pedras, sangrando sonhos e sorrindo lágrimas, pois que o anjo
privado do céu já não se reconhecia, já não podia mais voar, e de tanto não
poder, desaprendeu a ver e a voar...
Olhos de Mãe
Eu nunca acreditei no amor! Amar sempre me pareceu
uma arte difícil, um ofício para quem não tinha tempo de querer
algo maior, algo melhor, mais prático. Eu queria, eu sempre quis!
Acho que essa minha compreensão do amor, tem
profundas raízes nas experiências amorosas de minha mãe,
experiências, quase sempre muito sofridas, de tão sofridas, eram
mesmo indesejáveis, do meu ponto de vista.
Desde a relação com meu pai, até a última tentativa antes
de enfim encontrar sossego para o seu coração, tudo que sempre
experimentou e que testemunhei, foi o amor a machucá-la. O
amor a ferir a minha mãe. Machucava-a tão profundamente, que
às vezes a fazia sangrar, outras vezes a reduzia a cinzas, devorada
pelas chamas da solidão do abandono, no abrasar do desamor
próprio e da angustiosa solidão. Assim, eu fugia do amor, eu o
abominava e nunca tive tempo para amar. Pelo menos era o que
eu imaginava.
Minha mãe era um ser maravilhoso, tão frágil, tão dócil,
tão amável e ao mesmo tempo de uma força invencível, de uma
determinação, uma resignação fascinante. Ela percebia como sua
história me atingia, mais do que atingia, ela sabia que o que
vivenciávamos enquanto mãe e filha, me marcaria para sempre,
me definiria em grande medida, enquanto pessoa e enquanto
mulher.
Acho que por tudo isso que ela via e de algum modo
sabia, ela procurava adoçar-me temperando com sua doçura, seu
amor e sua poesia sempre tão rica em esperança e transcendência.
Recordo-me que ela sempre me dizia, desde a minha mais
tenra lembrança, que eu era um anjo, o seu anjo. Que eu nasci
pequenina, frágil e sensível, linda, linda, linda... Assim, me dizia
minha mãe!
- Ah, minha filha! Você era o bebê mais lindo que esse
mundo já recebeu! Jamais me esquecerei da emoção que foi olhar
você pela primeira vez. Tocá-la em sua pureza e fragilidade, tê-la
em meus braços em nosso primeiro contato pós-parto. Recebê-la
em nosso primeiro abraço, onde você com sua pele de porcelana,
pele de maciez incomparável e beleza indescritível, concluiu a
mãe que nascia em mim desde o primeiro momento da gravidez,
dando-me seu primeiro abraço. Abraço dócil que sacramentou
em mim a mãe que toda mulher é em potencial.
Quando seus pequeninos e ávidos lábios receberam e
acolheram meu seio e assim alimentou-te matando sua fome pela
primeira vez, ali naquele ato, a uma só vez, simultaneamente,
você se confirmava como filha e eu como mãe, numa relação que
jamais teria fim.
Quando minha mãe assim falava, ela parecia que se
transfigurava, entrava em contato com algo que a habitava em
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algum lugar tão profundo que só muito raramente conseguia
soerguer-se e se fazer visível em seus olhos, matizando seu
semblante com uma luminosidade indescritível, um brilho
angelical.
Então nesse instante eu imaginava como o amor era belo
e irresistível, porém muito raramente isso acontecia, e quando
acontecia era por breves instantes e logo a face monstruosa do
amor dissipava essa compreensão poética e pueril que era fruto
das memórias e narrações de minha mãe, a rememorar suas
alegrias, como alguém que tem nesses poucos momentos felizes a
sua única riqueza, já que a vida material e social, familiar e
amorosa foi sempre marcada pela escassez e pela dor.
Quando me lembro dessas coisas sempre fico a imaginar
se teria sido de fato assim, ou se tudo isso não passa de uma
releitura de minha puerilidade, onde algum artifício mental
transfigura a infância e transmuta-a numa lembrança mágica que
embevece a alma e convida a amar. Ou ainda, se não seria tudo
isso um belo papel de presente no qual mamãe cuidou de
embrulhar nossa relação, nossa história e nossas dores, para que
elas me ferissem o menos possível, pois mamãe sempre tentou
me convencer com sua doçura e amabilidade maternas, com sua
eloquência mansa e serena, de que eu era um anjo escondida em
pele de menina.
Lembro-me de sempre devanear na crença infantil de que
minha mãe dizia a verdade e que eu era de fato um anjo. Assim,
me deitava no chão e fitava o céu azul profundo da Chapada dos
Veadeiros onde de tanto olhar eu me via a voar, a voar pela
imensidão celeste. Um voo tão belo quanto era belo o olhar
transfigurado de mamãe a me dizer que era eu um anjo.
Depois de muito voar no céu azul com as asas de minha
imaginação fecundada pelas palavras de mamãe, eu sempre me
inquietava e desistia do voo para questioná-la e dizia com toda a
sapiência de uma criança inquieta e angustiada pela dissonância
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que marcava a beleza da sorte de ser um anjo e a incongruência
de não ver em mim a aparência do anjo.
Eu ia às vezes à igreja com a minha mãe e lá na Igreja
matriz de São João d’Aliança, dedicada a São João Batista, olhava
atenta as imagens dos anjos que ornavam vitrais e paredes.
Nesse ambiente sempre me impressionava a imponência e
a beleza do anjo Gabriel, na pintura da cena da Anunciação de
Maria no altar de Nossa Senhora, uma obra de arte pintada pelo
padre Bernardo, um missionário holandês que se imortalizou na
memória da comunidade São-joanense.
As expressões do semblante do anjo Gabriel sempre me
cativavam o olhar e, me levavam a sonhar e a acreditar que eu era
de fato um anjo e que quando eu crescesse também minhas asas
cresceriam e eu então tornar-me-ia uma figura magnifica como
aquela que tanto me impressionava.
Porém os anos iam passando e eu crescendo e nada de
minhas asas nascerem. Nem mesmo uma pontinha! Em razão
disso, sempre que me demorava a fitar o céu imaginando que eu
era um anjo a voar livremente pela imensidão azul, eu me
inquietava e buscava a minha mãe a questioná-la sobre eu ser
mesmo um anjo.
- Mãe diga-me de verdade e não brinques comigo...
Eu sou mesmo um anjo? Se é verdade que sou um anjo,
onde estão as minhas asas? Porque elas não nascem? No que
minha mãe se ria, tomava-me em seus braços e cobria-me de
beijos e cócegas a esfregar seu rosto embaixo do meu queixo
arrancando-me gargalhadas enquanto repetia entre carícias e
risadas que eu era um anjo escondido em pele de menina.
- Sim Marcelle você é um anjo, mas não é um anjo
qualquer. Você é o meu anjo, anjo escondido em pele de
menina...
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Em face de minha insistência em saber de minhas asas, ela
sempre dizia.
- Ora minha filha! Quem você acha que sabe que você é
um anjo?
Eu respondia em silêncio com um torcer de lábios que
exprimiam melhor do que qualquer palavra, que eu não tinha a
menor ideia. Afinal só ela me dizia que eu era um anjo, nem meu
pai me chamava assim.
Aquele contorcer de lábios era de uma eloquência
tamanha, pois comunicava a mamãe minha total incapacidade de
saber quem poderia saber com certeza que eu era um anjo, se
somente ela me falava disso. Mamãe então continuava...
- Ora Marcelle, o que é que eu te digo sempre? Não é que
você é um anjo escondido em pele de menina? Não é que você é
o meu anjo?
Ansiosa eu respondia acenando com a cabeça e com
palavras ávidas de esclarecimentos.
- Sim mamãe é o que a senhora sempre me diz, mas eu
nunca entendo como sou um anjo se não tenho asas, se não
posso voar, senão na minha imaginação!
Mamãe então tomava-me em seu colo e me dizia:
- Minha filha, você é meu anjo! Porque que você é meu
anjo? Por que assim, quis a vida. Entre tantas mulheres que
poderiam ser a sua mãe Deus decidiu que seria eu, e assim, deu-
me você, um dos seus mais belos e queridos anjos. Desse modo
você nasceu para tornar a minha vida mais feliz, por isso você é o
meu anjo. E porque só eu te digo que você é um anjo? Ora filha!
Só eu posso ver o anjo que você é, os outros não são capazes de
te ver como você é verdadeiramente. Só quem olha com os olhos
do amor é capaz de ver o que o outro é de verdade. Eu olho para
você Marcelle com os olhos do amor e por isso eu posso te dizer
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com toda certeza, você é o meu anjo! Um anjo escondido em pele
de menina. E tem mais, se você está escondida em pele de
menina, meu anjo, quem olhar pra você não verá o anjo, mas
somente a pele de menina que te veste e esconde o anjo. É
também por isso que ninguém te olha e te diz que você é um
anjo, senão eu. Afinal eu sou a sua mãe, e mãe sabe tudo, tudo,
tudo, tudo, mãe sabe até o que ignora.
- Quanto às suas asas meu anjinho, pode ser que elas
estejam crescendo escondidas por debaixo da pele de menina e
um dia elas apareçam lindas e imponentes encantando o mundo.
Porém pode ser que você seja de uma espécie de anjo que não
precisa de asas!
Essas conversas com mamãe se deram em muitas
ocasiões por várias vezes ao longo dos anos de minha infância, e
a cada conversa o assunto se tornava mais complexo, em razão de
minha curiosidade e elucubrações pueris sempre sedentas de
sentidos e desejosas de poder voar para além da minha
imaginação.
Quando minha mãe me disse isso pela primeira vez eu
levei minha mãozinha à boca expressando toda a minha surpresa
e incredulidade. Ora, como era obvio isso que mamãe dizia, se eu
estava escondida, como poderiam me ver? Eu mentalmente
concluía com espanto essa perspectiva que até então eu ignorava,
enquanto exprimia em verbo oral a minha surpresa indisfarçável.
- Mamãe! Então existem anjos sem asas?
Mamãe se ria deliciosamente com minha pergunta e
surpresa e concluía certeira a me convencer pelo menos por
enquanto.
- Sim minha linda Marcelle. Existem anjos com asas e
anjos sem asas. Assim, como existem pessoas de pele branca e de
pele preta, de olhos escuros e olhos claros, de cabelos lisos e de
cabelos enrolados, de grande altura e de pequena altura,
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magrinhos e gordinhos... Quer saber Marcelle, isso tudo acontece
porque Deus é muito, muito, muito criativo e assim ele não para
de criar novas coisas, novas pessoas e novos anjos e por isso ele
tem anjo com asas e anjos sem asas, pessoas pequenas e pessoas
grandes, e assim por diante.
- Mas mamãe! - insistia eu curiosa - Então tem anjo na
terra e no céu, com asas e sem asas? - ao que ela dizia:
- Sim filha, o céu e a terra estão juntos, juntos como nós
duas quando estamos no mesmo abraço. Nós ficamos tão juntas
que parecemos uma só, assim é o céu e a terra, ninguém sabe
onde termina um e começa o outro e embora sejam coisas
diferentes, de tão apertados que estão nesse abraço, fica difícil
diferenciar um do outro e saber onde cada um está de verdade.
Exatamente como nós duas quando nos abraçamos ninguém sabe
dizer onde começa a mamãe e onde ela termina, onde começa a
Marcelle e onde ela termina somos pessoas diferentes, mas
estamos uma na outra como o céu e a terra perpassam um ao
outro.
- Que bonito mamãe! Eu não entendo direito, mas gosto
disso, gosto de quando estamos abraçadinhas forte, forte, forte e
nos tornamos uma. No entanto eu quero minhas asas! Mesmo
sabendo que papai-do-céu tem muitos tipos de anjos, eu quero
ser um anjo de asas. Um anjo de asas tão grandes e belas como as
asas do Anjo Gabriel. E assim, como ele mamãe eu quero voar
no céu, levando os filhos de Deus para morar na barriga das
mamães, igual ele fez com Nossa Senhora, quando ele levou Jesus
para morar na barriga dela.
- Você é uma gracinha meu anjo! Mamãe dizia não
cabendo em si de felicidade e eu não parava de perguntar.
- Mamãe, mas não eram as cegonhas que levavam as
crianças para as mamães? Por que não foi a cegonha que levou
Jesus para Nossa Senhora? Ela não gostava de cegonhas?
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Assim, entre questões e poesia, entre amor e fé, a pequena
menina crescia e dava vazão à mulher que lhe habitava em
potencial enquanto o anjo se desfigurava nas mãos do tempo a
perder-se na infância que ficava a cada dia mais distante,
sobrevivendo tão somente nos olhos e nos lábios de minha
amorosa mãe.
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Amor Que Dói
- Eu vou te matar sua desgraçada! Eu vou te matar... Você
é uma desgraçada! Você sabia disso? Desgraçada. Des.. graaaç...
aada! Cadê minha bebida? - A mão trêmula e embrutecida pega o copo
sobre o móvel na sala vira na boca, tragando o último gole de whisky, os
olhos vitrificados em tonalidade rubra ferem o espaço como que a contemplar
além do que faz visível. Naquela postura de quem ignora a realidade olha
para aquela mulher assustada, caída no canto da sala como uma flor
despetalada pela fúria do vento. – Uma estática metamorfoseia o débil
segundo num lastro de tempo que parece interminável, aquele
olhar que nada vê enquanto olha, e que ao olhar parece ver além
do que se pode ver, congela-se por alguns instantes e lágrimas
surgem no rubor intenso de um rosto sem vida que da cólera e
violência transmuta-se em pranto descontrolado, entrecortado
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por palavras balbuciadas como que pedras a cair dos lábios
daquele que chora e balbucia.
- Me perdoa, me perdoa, pelo amor de Deus! Me perdoa...
Mas o que é que eu estou fazendo? Me perdoa, me perdoa...
Assim, entre súplicas e lágrimas levanta-se cambaleante e
dirige-se à porta. Pega na maçaneta abre a porta e projeta o corpo
para fora da sala, indicando que sairá de casa em direção à rua.
Antes de sair, volve a cabeça em direção àquele corpo semimorto
no canto da sala e lhe diz:
- Me perdoa mãe eu não queria ser como ele! Perdoa-me.
A porta fecha-se silenciosamente, enquanto Nestor deixa
sua casa e segue a caminhar na noite.
A noite vai alta, no colorido das luzes da cidade motores
roncam, sons exalam melodias e vozes em canções a embalar a
vida dos notívagos que deixam suas peles diurnas e mostram seus
eu’s verdadeiros entre uma festa e outra, entre uma bebida e outra
entre um olhar e outro, onde cada um é simultaneamente caça e
caçador, na névoa densa da noite são-joanense.
Enquanto a noite segue com seus encantos e
possibilidades, enquanto a vida baila ao sabor da canção e das
ilusões que enchem a noite, enquanto corações se afogam em
bebidas alcoólicas ao passo que esvaziam um copo atrás do outro,
para disfarçar as mazelas do cotidiano, no silêncio de sua casa
ferida e machucada uma mulher grávida de uma criança de sete
meses desperta entre contrações e sangramentos, que prenunciam
um parto prematuro em razão dos maus tratos sofridos por parte
de seu marido.
Lucila sofre contrações fortíssimas, seu rosto está
marcado de hematomas escuros que evidenciam uma surra
recente. Seus cabelos foram picotados suas roupas rasgadas e seu
corpo mau vestido nos tecidos rasgados de suas vestes nem lhe
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cobrem nem lhe despem, forjando uma imagem deplorável. Ela
chora, suspira, chora e sangra enquanto se contorce de dor.
O rosto de Lucila está irreconhecível após a violência a
que foi submetida. Esta não foi a primeira vez que Nestor foi
violento para com ela, mas com toda certeza foi a mais cruel e
mesmo no estado de dor e machucado em que se encontra
somente uma pergunta ocupa sua cabeça e assim ela murmura seu
questionamento.
- Porque você fez isso? Por quê? – ele havia prometido que
nunca mais seria violento, ele jurou pela alma da mãe dele que jamais
voltaria a me machucar. -
- Porque você fez de novo Nestor, porque, meu amor?
Por entre dores e murmúrio Lucila se arrasta até o
telefone, e disca o número da casa de seu pai, enquanto o telefone
chama ela pensa em voz alta, falando sozinha:
- Tomara que seja Marli que atenda, pois para ela posso
pedir socorro, se for o meu pai terei que desligar e esperar. Porém
não sei se posso esperar, minha barriga dói demais, minhas
contrações estão a cada instante, mais próximas e mais fortes. Ah