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Telessina
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E-book619 páginas5 horas

Telessina

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Sobre este e-book

Romance ficcional, baseado em história, estórias e genealogia das famílias: Teles de Faria e Rodrigues Pereira, duas importantes famílias da Chapada dos Veadeiros no nordeste do estado de Goiás. Embora seja uma ficção há muitos relatos que se aproximam da realidade histórica dos membros dessas famílias constitui-se assim, um modo genérico de registrar os passos desses homens e mulheres no espaço e no tempo, honrando e valorizando aquilo que compõe o percurso dos membros dessas famílias com suas venturas e desventuras, erros e acertos ao longo de suas jornadas pela vida. Como membro dessa genealogia e herdeiro de todos que o precederam o autor é parte integrante na narrativa e faz um mergulho em si, ao longo dessas extensas páginas, sempre conduzido pelos veículos da prosa e do verso, deixando fantasia e realidade se envolverem num mesmo abraço, esse encontro que faz jorrar Telessina.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de out. de 2020
Telessina

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    Telessina - Joaquim Teles De Faria

    TELESSINA

    A prosopoesia de uma família

    Joaquim Teles de Faria

    Sumário

    Prefácio........................................................................................07

    Preliminaridades: Entre o real e o fictício - um delírio......16

    Primeira Parte - Saga e Siga: Cantos em versos...................31

    Canto I - Primórdios poéticos: um canto trágico no fado sertanejo .......................................................................................32

    Canto II- O nome do pai..........................................................66

    Canto III - Os irmãos Teles: a saga pelos sertões.................79

    Canto IV - A Fuga: nas brenhas do Sertão............................85

    Segunda Parte - A Prosa poética: A vida no sertão............109

    Capítulo I - O calhambola e a voz do amor: a pele, o nome a honra e a posse, causos e cartas.................. ...........................110

    Terceira Parte - Fios da genética: a urdidura do tecido genealógico.................................................................................223

    Capítulo II - A descendência: os fios do tecido familiar....224

    Quarta Parte - Ecos da memória: Lembranças que o tempo não matou e as vozes do cerrado ainda cantam.....................493

    Capítulo III - Histórias vividas e contadas: um canto prosaico, permeado de poesia.................................................494

    Final - Documentos e fotos......................................... .........536

    F219d FARIA, Joaquim T eles de.

    TELESSINA A Prosopoesia de uma Família/Joaquim Teles de Faria – Bras

    ília-DF: Edição do Autor. 2020.

    567p.

    Revisão de texto de Ela

    ine Carla de Barros Santos Teles,

    Jucelino Sales e Rubens Teles de Faria e Rubens Teles de Faria

    ISBN:

    1. Ficção. 2. Poesia Nacional. 3. Poesia. 4. Romance Nacional. 5. Literatura B rasileira.

    I. Título. II. Romance, Poesia, Ficção. III. Joaquim Teles de Faria

    CDD: B869

    CDU: 82-3

    6

    Prefácio

    O canto prosopoético de Telessina:

    um caudaloso romance genealógico entoado

    pelo griô generalista Kiko di Faria

    Para as injustiças do esquecimento, o fazer-se da memória, bordada na pena inspirada do poeta, demiurgo da palavra, reelabora, com o gingado da imaginação, a linearidade da cronologia a mácula do dado histórico, constituindo nas insinuações, dúvidas, possibilidades, sinuosidades e ambivalências da ficção a matéria bonita e fascinante do saber ancestral, a arte da narrativa contada, que Walter Benjamin lamentou sua perda, mas que Carlo Ginzburg convocou sua incidência, como elemento construtivo de uma poética dos rastros, uma verdadeira semiótica dos indícios, escolhos e fósseis que enobrece a narrativa enquanto possibilidade audaciosa de se narrar histórias, estórias, lendas e mitos.

    Lendo essas ficções do poeta Kiko di Faria – esse herdeiro direto dos griós africanos, que com suas costuras vocais, estes incríveis guardiões das histórias profundas da Terra-Negra desbastavam pela boca e pelo ouvido de sua arte 7

    da palavra as longas genealogias de linhagens infindáveis –

    aquiesço de encanto e regozijo, com o prazer de tatear em mãos esse célere e caudaloso tecido genealógico, abastecido de vivências, amabilidades, sofrimentos, perdas, razões e emoções, repleto de maravilhamentos, fantasias, fatos concretos (discretos e indiscretos), reconstituídos com delicadeza, inteligência e paixão, transformando as sutilezas da memória oral num rico manancial de experiências familiares e íntimas: a vívida geografia imaginária de uma linhagem que se ramificou desairosamente pelos cafundós e reentrâncias do desenorme sertão de Goiás.

    A sabedoria ancestral com que Kiko de Faria arrefece a carga de sua palavra indiciária, estremece o paradigma familiar, ao recriar, com a intersecção entre a rigidez prosaica e o artifício poético, um rio de histórias, a princípio fugidias numa dispersão, mas costuradas precisamente através do fio narrativo com que o poeta torce, retorce e distorce a trama em intrigas carregadas de alvor e enternecimento.

    Há aqui uma personificação da genialidade do vate cerratense, ele cria o neologismo prosopoesia, junção dos léxicos prosa e poesia para sinalizar audaciosamente o gênero a que pertence sua narrativa. Trunfo verdadeiramente semelhante ao ethos linguístico do escritor mineiro João 8

    Guimarães Rosa, dado a inventar prolixamente o seu próprio idioleto. Kiko di Faria, munido desse arroubo criativo, próprio dos cidadãos do sertão – exímios inventores de palavra –

    nomeia o seu próprio epos entremeio às diegeses prosaica e poética, dado que no trato do texto, encontraremos a amarração entre as duas tessituras narrativas, ora o texto transcorre em verso, conflagrando a beleza do poema, alternando pedaços em rimas com pedaços em versos livres, ora o texto percorre a linearidade frasal, envolvendo o leitor nas sinuosidades da prosa, descrevendo cenários, ambientações, desenhando personagens e suas naturezas comportamentais, bem como narrando aventuras e desventuras.

    E tudo isso entremeado pelo ínfimo véu do causo, gênero muito apreciado em Goiás, região que é verdadeira oficina de contadores-de-histórias, como são conhecidos esses guardiões desse tipo de literatura oral, os quais adoram narrar casos de suas proezas, tomando um bom gole de café e apreciando um gostoso biscoito caseiro à beira do aroma aquiescente do fogão a lenha. Boa parte da pesquisa do poeta, como confessa, nasceu nesses encontros na cozinha dos descendentes entrevistados, lugar da casa sertaneja, modestamente separado para a prosa, para o convívio 9

    amigável, tanto que ao forasteiro convidado para esse ambiente íntimo, ao alcançar esse direito, é por que caíra nas graças do morador.

    Uma vez que, como ensina o mestre Aristóteles, poesia é trabalho, o signo poiésis etimologicamente comporta o sentido de fabricação e se relaciona ao artesão que fia palavras trabalhando-as num tecido, já que texto textum

    deriva de tecer, Kiko di Faria, como pesquisador curioso de sua própria história, colheu informações históricas na memória coletiva familiar, e em seu gabinete de trabalho, municiado de sua imaginação, lavrou e urdiu o vestígio histórico com as sendas do fermento criativo, preenchendo as lacunas da memória com o lastro transbordável da ficção.

    E ao cerzir a urdidura genealógica dos Teles, se devotou à amplidão orvalhosa da sina – o destino a que todos estamos implacavelmente aferrados – transpondo nesse destino, a sina dos Teles. E eis a criatividade aflorada de um poeta de palavras: Telessina. A junção de ambos os elementos, o gentílico patronímico Teles e a substantivação designativa comum sina, desborda a experiência corriqueira da vida numa nódoa própria, apropriada e singularizada num léxico especial, pois Telessina é o destino de uma linhagem que em suas peripécias, travessias, desdobramentos, confusões, 10

    amarguras e alegrias gestaram uma razão familiar firmemente enraizada no chão de Goiás.

    Narrativa de gesta que recria o berço sertanejo dos Teles de Faria e o semeia por esses insondáveis gerais goianos, temíveis à época em que o patriarca, Victor, perambulava como mascate à frente de sua troperia, rasgando esses rincões, fazendo comércio e descobrindo a vida, abrindo os espaços misteriosos do sertão para as suas inesquecíveis aventuras.

    Esse homem, Victor Teles de Faria, um mito implacável na arca dourada de sua linhagem, se guarnece da exuberante força mítica que evola de todas as lendas jamais insuperáveis pelo tempo.

    O aedo inspirado arroga versos a esse mito que com suas façanhas se heroicizou no seio familiar, vingando como duradoura semente no território misterioso do tecido genealógico:

    ... no vento mudo sobre o mundo,

    ...enquanto cantava em versos,

    Meu filho aedo do tempo,

    Narrando a mítica origem

    De meu pai, em dias incertos,

    Que de tão distantes causam vertigem

    Suplantado pela vertigem da história incerta, o poeta entoa a origem mítica de seu ancestral, celebrando-o 11

    vertiginosamente com o albor da literatura. Todavia, não deixa de recuperar o lastro histórico lá onde ele se torna possível, costurando a lenda com os mistérios que envolvem todos os grandes homens. E nessa origem mística bradeja que o pai dessa horda de filhos nascera com traços de negro, lábios, boca, nariz, testa e cabelos de negro, provavelmente a sina era de negro, mas a pele era clara, branca e que, além desse trançado étnico, era filho bastardo [que] só levava o nome da mãe. Duas condições históricas que lanceiam o terreno da experiência sociocultural da época: o preconceito e a bastardia.

    Os nascidos com o halo da etnia negra conviveriam com os prejuízos societários dessa marca corporal, constrangidos pelo terrível preconceito de cor, o racismo propriamente, para corrigirmos com terminologia apropriada esses desvios linguísticos. E os nascidos maculados pela bastardia geralmente sofriam no cotidiano a injúria de sua concepção, fruto de estupros por parte de graúdos fazendeiros que forçavam as mulheres negras se deitarem consigo à força de açoites, pancadas e maldade.

    Mas a denotação em Victor de sua natureza ancestral na pele e na origem filial revitaliza a conotação da Chapada Negra, com que a microrregião do Nordeste Goiano, hoje celebrada internacionalmente como Chapada dos Veadeiros, 12

    outrora como sugeriu o historiador Martiniano Silva, foi conhecida como Chapada dos Negros. A narrativa, assim, faz-se parte de um projeto histórico-literário e memorialístico que nomeamos de Coleção Chapada Negra, um projeto de revigoramento das histórias adormecidas no subterrâneo dessa região, ainda pouco documentada.

    A saga dos Teles narrada por Kiko di Faria, trabalha com fascinante historicidade uma época de antigamente dessa região, contextualizando signos culturais, como os rastros tardios do escravagismo, as rotas de troperia, o convívio nas grandes fazendas, a aura modesta dos pequenos arraiais, bem como as atividades espúrias dos temíveis canhambolas, os bandos de pretos que saqueavam caravanas de viajantes nas estradas reais e se escondiam nas socorvas e cavas das serranias. É também uma importante página sobre a paragem geográfica e o gérmen urbano da antiga Veadeiros, hoje município de Alto Paraiso de Goiás, e do antigo Arraial de Capetinga, núcleo citadino da atual São João D’Aliança.

    É, nesse certame, romance histórico e, para impor mais precisão, romance historiográfico, como nos ensina essa lição de teoria literária a canadense Linda Hutcheon, uma vez que, no transcurso da trama o próprio narrador não se furta de refletir sobre a própria elaboração de sua diegese, metendo-13

    se em comentários metalinguísticos, nos quais para respaldar suas escolhas dialoga com o leitor a respeito da moldura de sua forma prosopoética. É também narrativa biográfica, que desfia na urdidura central do novelo a trama familiar dos Teles de Faria, ordenhando-a com os Rodrigues Pereira, gentílico de onde provém a matriarca da linhagem, o grande amor do famigerado Victor, Joana Rodrigues Pereira. E ainda narrativa autoficcional, uma vez que no romance há equivalência entre autor/narrador/personagem, isto é, em certos trechos do trançado genealógico o autor narra-se também, conformando-se como um dos inúmeros personagens consanguíneos dessa multíplice tapeçaria.

    Por tudo isso, a narrativa conforma grandes lances do romance histórico, pois se sustenta na memória oral, como também em documentos familiares, entrançando na tapeçaria as missivas escritas por membros da linhagem, além de dispor um gracioso acervo fotográfico no desenlace do livro. Essa gama de vestígios documentais forceja a razoabilidade de sua natureza historicizada. Bem como, na contra-vertente, a maculação artificiosa dessa natureza, através da efabulação imaginativa, costurando com as calendas do fictício os fossos abissais que permeiam o labirinto histórico.

    14

    Nesse sentido, o poeta Kiko di Faria entrega aos seus leitores, tanto os privilegiados que descendem diretamente dessa genealogia, quanto os enteados, como eu, que se agregam facilmente aos rodopios dessa atrativa ficção, uma trama fabulosa fabricada com a amável candura de um ser, entre poucos poetas eleitos que podem se arrogar de semelhante feito, que em longos e incansáveis vinte anos de tessitura dessa poiésis se congraçou a entoar sua própria canção e devotar escrito para a posteridade o signo legatário de sua família.

    Jucelino de Sales

    doutorando, professor e escritor.

    15

    Preliminaridades:

    Entre o real e o fictício - um delírio

    Esta é uma odisseia particular que experimento ao embrenhar-me mais uma vez pela genealogia familiar. Como fazedor de verso, reconhecido como poeta, esforço-me para encontrar os versos que ecoaram pelos Sertões do Nordeste Goiano enquanto os dias teciam, como dedicado tecelão tece um pano, o tecido genealógico de meus ancestrais. A cada passo, a cada fio dessa tessitura, compreendo a dureza e a beleza do modo de vida de homens e mulheres que, com zelo, dedicação e capacidade invejáveis precederam-nos no tempo e legou-nos aquilo que hoje temos como local de morada, nome, parentela, tradição, crenças, etc.

    Nesse percurso vou descobrindo e revelando o amor que em mim habita enquanto fazedor de versos e enquanto ser humano. Esse amor revela-se, em primeira instância, pela família, depois pela história de homens e mulheres a tecer no tempo suas trajetórias. E, sucessivamente, por cada minúcia que se materializa como voz dos mortos a perpetuar conosco, ainda vivos neste tempo, um diálogo profuso, edificante e desafiador. Desafiador sobremaneira pelas vicissitudes cotidianas, que nos aborta o tempo e o interesse, soterrando-16

    nos nas distrações e ocupações, que nos impedem de volver o olhar para dentro de nós mesmos e para as coisas da nossa terra. Olhar que uma vez voltado a estas coisas nos permite vislumbrar, nalguma medida, o espectro do que o tempo nos fez ser, ainda que inacabadamente, ainda que em constante construção.

    Ao buscar pelas raízes familiares num referencial humano, numa localidade geográfica, numa estória ou história remanescente, que permite uma aproximação de tempos mortos, o amor que move o poeta em busca de si nas marcas deixadas no tempo vai se revelando.

    Ao longo do caminho tudo revela o anseio do poeta em busca de si, nos rastros de sua ascendência, e num desejo de eternidade incontido, desejo de eternidade que propugna rumo ao futuro. Ao projetar sua descendência revela, para além do individual, nuances de uma Região que ainda conserva muito de seus matizes originais, se é que pode se pensar em originalidade em termos de construção social, cultural e identitária, sobremaneira se pensando no âmbito das sociedades brasileiras.

    Essa é uma viagem romanceada que mistura realidade e ficção, histórias vividas e histórias sonhadas, para dar vida ao texto que se segue. Esse texto fala de famílias que 17

    habitavam e habitam o Nordeste Goiano, essa região do Estado de Goiás. Na busca pelas origens desta família, que se constitui dos dois sobrenomes, o Teles de Faria e o Rodrigues Pereira pesquisei por muitos caminhos. Busquei em arquivos e livros tentando achar um caminho que permitisse reconstituir a trajetória deste sobrenome, ou aproximar-me de algum modo dessa trajetória.

    Procurando focar na genealogia paterna, tomo por referência o meu avô paterno Victor Teles de Faria e sua esposa, minha uma avó paterna, Joana Rodrigues Pereira que viveu seus últimos anos entre São João d’Aliança e Alto Paraíso de Goiás.

    Imagens Aéreas de São João d’aliança

    São João d'Aliança vista aérea em 1996

    18

    São João d’Aliança vista aérea em 2008

    Nestes sertões goianos, cujas imagens acima evocam o espectro, dando-lhe esse perceptível sentido de corredor do infinito ao se fixar o olhar no horizonte nebuloso e longínquo que mais parece um portal dando para o interminável e encantante mundo da imaginação.

    O sertão é o Mundo! Já nos diria o grande escritor João Guimarães Rosa pela boca do herói Riobaldo. Sinto que essa máxima é tão eloquente que não pode ser esgotada de tantas verdades que em si carrega. Pois deveras, o Sertão é o mundo e dentro disso é um mundo de muitos mundos. Um universo inteiro de mundos inquietantes, apaixonantes, cativantes, com sua simplicidade e complexidade. Mundos silenciados no 19

    Sertão mundo. Mundos que gritam nas reminiscências e em seus filhos que ainda vivem, mesmo no pós-morte. Vivem em histórias e estórias, em toponímios geográficos, fotografias, lembranças fugidias que, vez ou outra, eclodem numa lágrima provocada pelo inflamar da memória fazendo com que os filhos do sertão, até mesmo sem perceber, façam vir à tona em suas lembranças e prosas, esses mundos aparentemente mortos, mas ainda vivos, de algum modo, vivos...

    Assim, nessa miscelânea de sensações, nesse turbilhão de reminiscências, nessa intercessão de tempos vivos e tempos mortos, mundos e personagens dialogam num encontro multifacetado, diverso e eloquente, apresentando-se discretamente e desafiando os mais atentos e sonhadores para, num afã que exige muito empenho e imaginação, participar dessa roda de prosa e, assim, alimentarem-se da poesia prática e casual que lhes constitui o cotidiano e são a base na qual se sustenta a nossa vida presente, o nosso mundo atual, as nossas crenças, as nossas inquietações, enfim, a nossa constituição mais íntima e indelével.

    Ao iniciar esse percurso, tinha eu em mente a busca por verdades que me ajudassem a conhecer a história das famílias Teles de Faria e Rodrigues Pereira, conforme já fora dito acima. Talvez isso deva-se à paixão pela história, o desejo 20

    de pesquisador ou qualquer coisa parecida. Mas, seja como for, tudo isso tornou-se coadjuvante, pois após dar o primeiro passo, o caminhante deixa de ser o protagonista e passa à coadjuvância, sendo todo o protagonismo exigido e incorporado pelo caminho. O caminho é que vai, enquanto protagonista, determinando o ritmo da caminhada e dando ao caminhante aquilo que ele possui e pode oferecer.

    Assim, após iniciar a busca por meio de conversas, entrevistas, enfim, após pôr o pé na estrada e a poeira do tempo revestir o corpo e a alma do caminhante, às margens das trilhas do sertão, tive um encontro. O encontro mais marcante e, por isso mesmo, decisivo para todo o resto da caminhada. Um encontro com o apagamento que o tempo opera nas marcas deixadas pelos passantes pela vida. Um escuro total.

    Desde o princípio, desde a primeira inquietação, um nome motivava tudo, tal nome era o elã criador, a fagulha vivificante que impeliu o caminhante a pôr-se a caminho.

    Tratava-se do nome Victor Teles de Faria. Assim, esse nome foi o "big bang" desse percurso, a referência primária que motivou o cantor de sua genealogia a empreender essa odisseia em busca das raízes familiares e suas estórias, histórias e feitos.

    21

    Nas primeiras buscas já fora possível constatar que Victor era um mito familiar. Um mito, conforme se verificou ao passo que a caminhada fora avançando. Como todo mito, como toda figura mítica, tem muito de si envolto em mistérios inefáveis, cuja mão do tempo guardou para si e não há esforço que se nos revele. Estando, tais mistérios, protegido pela mão do tempo, pela mortalha do silêncio e, tendo tão somente a canção da memória, com toda a sua imperfeição, como quem nos diz algumas coisas acerca deste mito, não houve outro modo senão deixar-se guiar pela ficcionalidade, permitindo que a narrativa a si mesma se definisse a partir do olhar do cantador sempre atento em busca de um verso a mais para sua toada. Desse modo, o romance vai se erigindo ao passo que o texto histórico pré-tendido vai se desfigurando. Mas, como as coisas que a memória familiar nos diz são imprecisas, vacilantes, carregada de subjetividade como tudo que a memória oferece, mas, ainda assim, são coisas que fascinam, que saciam e desafiam, a ficcionalidade achou aí alimento vigoroso para se nutrir.

    Assim, Victor Teles de Faria é mais que um nome ou uma referência, é a porta, ou melhor, é a porteira que dando para o sertão convida a olhar e ver tudo que o sertão oferece e que cada olhar mostrar-se capaz de ver e apreender.

    22

    Essa abertura para o Sertão que Victor mostra ser, há alguns pode parecer insignificante, desnecessária, sem méritos, indigna de ser olhada, considerada, etc, mas para alguns outros porém, pode ser um momento interessante de volver-se a si próprios e ver por essa abertura, senão a verdade do passado, alguns sinais e reminiscências que ajudam a imaginação a tentar sondar e reconstruir um tempo que nos escapa, lançando assim, mesmo que apenas parcialmente, um olhar sobre o passado, o passado familiar. Acessar nalguma medida mundos que fizeram e fazem o sertão. Mundos que fazem uma boa parte daquilo que hoje somos.

    Mas, conforme se dizia anteriormente, o caminho em seu protagonismo convidou o caminhante a deixar de lado a tentativa de protagonizar essa caminhada e, rendido aos apelos do caminho, ele deixou-se ser conduzido. E assim, passo a passo avançando na caminhada, sem controle de nada, sem verdades, sem mentiras, ele seguiu, entendendo que verdade e mentira são constituintes do próprio caminho, onde o que importa é a narrativa que é o próprio caminho. Assim, na integralidade e interdependência, na inter-relação da caminhada, verdade e mentira são diálogos que ora fazem sentido, ora não possuem sentido nenhum. Importando tão somente a deliciosa caminhada, que tende a transformar o 23

    caminhante, revelando-lhe mundos e coisas que lhes possibilita emoções e reações, evocam lembranças, excitam a imaginação, lançando-o em si mesmo, confundindo a realidade com a fantasia, unindo o mundo real e o mundo onírico e, nessa complementariedade, causando muito prazer e satisfação.

    Nessa caminhada onde nada é impossível, o impossível se deu. Se foi sonho, fantasia, realidade ou imaginação, não se sabe, o fato é tal qual se narra, ou seja, tal qual o fato se deu.

    O caso é que o encontro com Victor Teles de Faria estava sendo a cada dia mais interessante, cada dia mais abrangente, incluindo nomes, famílias lugares, histórias e mais histórias, estórias, causos e prosas, numa poesia multilinguística e multiforme. Assim, no dia primeiro de agosto de dois mil e quatorze, após longo tempo de caminhada, algo inusitado se deu e mudou os rumos de tudo quanto se tinha visto até o momento.

    Antes, em forma de verso o silêncio e a memória cantavam estrofes que narravam míticas origens e espetaculares proezas. Depois, porém, a prosa soerguer-se-ia em um encontro funesto e vivificante.

    24

    Era 31 de julho de 2014 e Eli Teles de Faria, filho de Francina Teles de Faria e Chiquito Magalhães, (afirmativa que, embora contundente, pede para ser relativizada, pois há, como se verá mais à frente, rumores de que o verdadeiro pai de Eli fosse um certo Senhor Virgílio Gomes Curado. Boatos!), neto de Victor Teles de Faria, cumpriu sua caminhada nesse limitado mundo da matéria e, morrendo, libertou-se da imperfeição, indo habitar o mundo das memórias, de lembrança em lembrança a ser o que sempre foi, na perfeição do passado. Provocando um rio de lágrimas, de rostos e de emoções.

    Foi em meio a tanta gente, em lugar tão inusitado, onde eu era apenas mais um a compor a multidão no velório que algo se vez miraculoso e surpreendente.

    Uma infinidade de descendentes do mítico Victor, com os mais diversos sobrenomes, mas uma única certeza, ainda que inconsciente, se reuniam em torno de um morto.

    Eram ali todos Teles. Teles como o seu mítico patriarca, Victor Teles de Faria, ou como o ilustre Lili, ali inerte e sem vida no caixão e, simultaneamente, mais vivo do que nunca.

    Vivo em cada lágrima que cada olho derramava por sua mudança de condição de vivo na matéria, para uma outra dimensão que nos escapa as definições e pode ser apenas 25

    ansiada e sonhada por cada um. Vivo em cada rosto triste e abatido pelo acontecimento fúnebre que, dicotomicamente, se iluminava com os encontros que ali se davam.

    Era uma multidão de parentes, amigos, curiosos.

    Momento de dor e de perda, de partida, de chegada e de reencontros. Ali, onde primos que não se viam há dez, vinte, trinta anos se reencontravam. Alguns que nem sabiam da existência um do outro, ali aos pés de Lili fortalecia a essência da família e se descobriam, se encontravam, se reconheciam.

    Assim, todos choravam o grande homem que morria e sorriam e rejubilavam-se pela força desse homem que, morrendo, gerava vida e morto vivia em cada um. Há tempos não se via um velório tão cheio, tão intenso, tão emocionante, tão vivo.

    Cada um vivia e sentia a dor e a saudade daquele momento do seu jeito. A atmosfera que unia vida e morte numa única coisa gerava um portal para a imortalidade.

    Imortalidade na memória, na emoção, na história, no desejo de não acabar jamais e pelos deuses ser resgatado e introduzido na vida eterna. Desejo esse proclamado em preces, cantos e orações, regado com lágrimas, dores e abraços.

    26

    Eu que ali estava, também participando dentro de minha perspectiva, sendo solidário, sendo parte integrante do velório, da morte, da vida e do desejo de eternidade, vivi no velório de Lili o encontro por excelência com Victor Teles de Faria e tudo então ganhou outra direção.

    Eu cheguei ao velório às dezoito e quarenta, o corpo já se fazia exposto na sala apinhada de gente, amigos, parentes, curiosos, todos embalados pelo mar de lágrimas e pela dor da perda do ente querido. Após abraços e condolências encontrei-me frente a frente com Eli Teles de Faria, ali, inerte em seu último leito. Fiz uma prece aos céus e a Deus, recomendei meu primo carnal, filho de minha Tia Cina, que ali morto recebia dos seus descendentes toda a atenção que o mundo lhe dava como última homenagem.

    Revivi o velório do meu pai Lourenço Teles de Faria, irmão de Francina Teles de Faria e filho de Victor Teles de Faria. Por extensão os dois velórios se uniram e se tornaram um. Naquele caixão estava não só Eli Teles de Faria. Ali estavam, num mesmo caixão e em um mesmo velório: Tibastião, Elmário, Tivéi, Tia Nila, Tiló, Tiostil, Maria de Lili, Tia Cina, Tia Nila, Farias, Iraí, Dinaldo, e tantos, tantos outros Teles amados e queridos que já se haviam ido desse mundo e 27

    embeveciam nossas almas de saudade. Uma saudade pujante e doída que só as lembranças acalentam vez ou outra.

    Minha emoção inundou-se em maré cheia e chorei...

    Meu pranto correu para dentro, regando meus órgãos internos, afogando meu coração, meus pulmões e como que num passe de mágica, num efeito cinematográfico, o mundo estatizou-se. Tudo ficou estático, a cena congelou-se e o mundo parou. A inércia do corpo de Lili no caixão inverteu-se atingindo todo o mundo, com exceção de mim e de Lili que no caixão agora sorria e me olhava plenamente móvel e vivo.

    Ao primeiro impacto fiquei muito surpreso, não tive medo, mas fiquei surpreso, Lili estava vivo. Mas o melhor ainda estava por vir. Lili me olhou, sorriu e disse-me:

    - Tiquim do Véi Ló! Vai ficar aí parado me olhando?

    Sentou-se no caixão e se levantou. Sorriu novamente puxou uma das cadeiras ali e sentou-se.

    Acompanhei-o com o olhar espantado e surpreso. Lili estava plenamente vivo.

    Voltei meu olhar para o caixão e o corpo ainda estava lá. E sem entender nada contemplei o corpo no caixão e Lili vivo, ali sentado.

    Assim, volvendo mais uma vez ao caixão vi, saindo dele, Tia Cina (Francina Teles de Faria), Zeca Garcez (José 28

    Garcez de Mendonça), Tibastião (Sebastião Teles de Faria), Maro (Elmário Teles de Faria), Tia Franca (Franclina Garcez de Mendonça), Tivéi (Francilino Teles de Faria, Tiostil (Ostil Teles de Faria), Tia Nila (Leonília Teles de Faria), Tia Joaninha (Joana Teles de Faria), Tiló (Lourenço Teles de Faria) e uma multidão de gente, era visível que todos eram da família, todos estavam vestindo roupas claras e iluminadas e sorriam felizes e satisfeitos.

    Por fim, as últimas figuras que vi saindo e sentar-se foi um casal. Uma senhora

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