Apoteose De Dermeval Carmo-santo
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Apoteose De Dermeval Carmo-santo - Wellington Amancio Da Silva
Apoteose de
Demerval
Carmo-Santo
Wellington Amâncio da Silva
[Ficções]
3ª Edição
PARRESIA
Índice
O caso Brown
9
Na vila de Karamarom
21
A maleta quadrada em Atatürk
25
Nem pensar!
35
Altino de Silia e Mozart
38
Filme triste?
42
Terno novo
52
Liúna e o editor
57
O editor
64
Tritongo — impromptu festival!
68
Cláudio Kimeu
73
Lavener chegou
77
Serviços
81
Amalgamas de fogo
84
Formação
90
Heidegger
95
Suspense
101
Roteiro das mãos
104
Beco Vinte e Dois
109
Por que o editor sumiu?
114
O caso do caderno azul
116
Sapato caro I
120
História universal
127
Laphir Simai
130
[Um homem pragmático]
145
A faca e a motocicleta
150
As cartas que ele não enviou!
152
A apoteose de Demerval Carmo-Santo
159
Samambaias
165
Um posfácio à existência
169
Apoteose de Demerval
Carmo-Santo
[O lar de porta sem ferrolhos oferece problemas sérios de instabilidades metafísicas]
Histórias breves. Há uma pequena novela no meio de alguns contos.
Conforme tal dupla condição, estas histórias podem ser lidas segundo o critério do leitor, sem prejuízos quaisquer. E tal condição de novela é clareada no âmbito mesmo desta dupla fragilidade — de vontade e de tendência —, pelos atos dos personagens, Carlos L. Barrentas, Cláudio Kimeu, Lina Borges, Liúna Moira, Jordeval Nute, Cy Barrentas, Sr. C.F.P., Edgar Vasile e os outros, que num segundo plano, sustentam seus archotes pelas veredas desta narrativa a mato fechado no breu da noite.
P.S. Contos circulares, em busca de um sinal e final, rodam em tragicomédias.
O caso Brown
Πολλὰ τὰ δεινὰ κοὐδὲν ἀνθρώ π ου δεινότερον
π έλει – Antígone
1-
Na sexta-feira, descobriu que estava tudo errado.
Alberto na sala impregnada de detergente. Ardia-lhe os olhos. Espirrou umas cinco vezes, em intervalos curtos.
Eu o ouvi, ele murmurou com a mão no peito — "por que faz isto com teu personagem, ó, impiedoso autor?!
E continuou desfazendo-se em espirros alérgicos, até sair do consultório com um diagnóstico, acredite se quiser, de hepatite. Alberto sabia que sua vida estava mais complicada que a vida do mundo, que estava bem pior que a vida de boas pessoas contidas no livro que alguém escrevia porque não tinha o que fazer da própria vida e que ele estava contido nas mãos impiedosas de um autor, que poderia ser um deus, senhor de quaisquer coisas, ou outro ser igualmente insano. Sua vida, uma desconexão, uma dissintonia, estava amarrada por fios desconhecidos, fios bem trançados de náilon infernal.
Decerto, Alberto se achava, assim como tantos outros, um boneco de enchimento de algodão sob as mãos alheias. O quão terrorista é um autor com seus personagens?
— nos perguntávamos. Todos sabiam que Theodoro Martins atrevia-se, um pouco além do necessário, escrevendo contos (ou, quem sabe,
contos
); ele tinha muito o que dizer e chegara rápido a conclusões, e sabemos que tais excessos, quando os lemos, acabam em algo que só nos faz mais ansiosos e doentes. Então ele sobre a vida do pobre Alberto e movido de um ímpeto hediondo, muito gostava de massacrar seus personagens. Vicissitudes! Ele diz que 9
tem que ser assim mesmo!...
, que procura descrever a vida como ela é
e que todo mundo se lasca uma hora ou outra
. Lendo seu manuscrito, eu me pergunto hoje por que um diagnóstico de hepatite num personagem como Alberto que vai trafegar num futuro romance de mais de 200 páginas, como um anti-herói de qualquer coisa na vida não morrerá antes do tempo. Infelizmente Theodoro Martins parece estar certo quando penso em seu texto a partir dos fatos, da realidade, visto que quanto mais nos fudemos mais sobrevivemos — aliás, é mesmo o autor que prolonga a narrativa e faz da sua novela o que bem entende, seja ele um deus, senhor de quaisquer coisas, ou outro ser igualmente insano como um autor igual Theodoro Martins. Na página 06 do seu manuscrito, Alberto é atropelado por um micro-ônibus e perde um braço (nada mais realista e cru como de fato a vida é), porém, o autor falta com a verdade, o mínimo que se pode esperar dessa tal novela realista, quando faz de Alberto um cara exageradamente desafortunado, mesmo que existam pessoas assim na vida real. Contra nós o desserviço de Theodoro Martins é exatamente não nos deixar respirar não acrescentando descrições bucólicas de paisagens e acontecimentos fugazes, mesmo algumas boas tolices, entre as desventuras excessivas do pobre Alberto. Tudo é muito duro e seco e vermelho sangue. Se na vida real temos uma dó estética de um coitado que se lasca me parece que de Alberto a comiseração é sobremaneira maior. Não quero que Alberto morra logo! Prefiro que morra meu vizinho, deixando filhos e esposa, mas não quero que Alberto morra, sobretudo tenho incontrolável curiosidade sobre o desfecho cabuloso, pois me parece que Alberto pode até morrer esquartejado, segundo o que li até o momento. Se Theodoro Martins é cruel a ponto de 10
demonstrar certos níveis de psicopatia isto nem todo mundo sabe, mas uma coisa é certa: ele sabe prender a atenção do leitor. Não sei se por excesso ou falta de verossimilhança! Eu continuo lendo seu texto datilografado. O Autor me diz pessoalmente: Tem que sofrer! O personagem
tem que sofrer e se arrombar!".
À sua mesa a máquina de escrever. Uma Olivetti Studio 46, azul. No texto, eu posso enxergar os dedos pesados de Theodoro Martins possuídos de uma maldade ficcional
sem precedentes — se é que devo aqui utilizar o mínimo senso moral. Me pergunto se não é preciso desconfiar de um tipo de autor como Theodoro Martins, que acha que o mal se dilui na força do como se
da ficção. Alberto, por exemplo, que fica também me olhando, da borda das páginas, com seus olhos tristes e parece me pedir ajudar. Nada posso fazer contra um deus poderoso que determina seu destino, somente parar de orar e cultuá-lo. Às vezes, penso que a relação entre autor e personagem diz muito daquela decadência veladíssima, às escuras, que se arrasta pelo chão e entre os dedos dos leitores, até vir à tona, de repente, como um fantasma sombrio de fim de século, ou de fim de festa. No caso de Alberto, era seu personagem mais surrado, esguio, pobre e também cirrosado (conforme o último esboço que li). 32 anos. Solteiro. Sabe-se lá quem foi seu pai. Assentado ali, no sofá, com as mãos sobre os joelhos, parecia-me (vi nos seus olhos) angustiado com alguma coisa, que descobrirei conforme avançar na leitura do manuscrito de Theodoro Martins, que ele mesmo me disse, enquanto eu lia: "este personagem vai funcionar assim e assim mesmo, e vai viver de tal modo, para esta história determinista, e vai sofrer ‘um pouquinho’, e vai levar muitas topadas no dedão e vai se lascar até onde me permita a 11
criatividade. Eu li — para Alberto, deu
nó de olheira"
e assim o coitado não dormia cedo para estudar alongadas apostilas. Para quê? Alberto é um ser-que-peleja (percebi nas primeiras linhas). Soria porque desde sempre desejou ir mais longe, todavia — fazer supletivo, jogar na Tele-Sena, possuir casa própria e um emprego razoável... ambições inculcadas por seu autor, como uma cadeia de verdades absolutas da qual não se pode escapar, tal a vida real, em que se sofre por sucesso, bem estar, conquistas. São essas mentiras que mantêm um deus nos vampirizando, porque a equação tem sempre desigual resultado. Alberto? Ralou 5 anos para comprar um carro, que depois foi roubado meses depois, todavia, ele pouco se importou (não gostava do carro). Acho que Alberto queria dizer que para muita luta não compensa a vitória. Queria ele ter muito mais sorte na vida, embora o script, ou o carma
não o permitisse. Penso que Alberto também vivesse sob o que Kierkegaard denominava de tremor e temor
. Posso estar errado. De todo modo, como um autor ou um deus não se brinca, pois deve-se correr para longe destes.
Alberto, cobaia da letra, da narrativa, seu espírito soava como um apito furado, mas no fundo da sua estória e, para além do jogo de Theodoro Martins, Alberto queria ser feliz — eu vi nos olhos dele (pelos entremeios da folha datilografada), queria ser feliz tendo folga para respirar, para não pensar em nada, não fazer nada, não ter que escapar do monstro. Alberto somente queira respirar um pouco. Eu juro, eu vi para além deste manuscrito fechado que as agruras de Alberto lhe despertavam um senso de revolta e ele ia naturalmente se rebelar, porque se rebelar é mesmo aquela coisa de fazer estourar o cerco, rebentar o velho ciclo, pela força estranha que possui todo corpo enfraquecido. Eu lia 12
aquele manuscrito no gabinete do escritor que sondava meu semblante, olhando-me de cima — acho que em busca de alguma reação em minha testa, um arrugamento súbito no meio das minhas sobrancelhas, uma cerração de olhos, um pigarro involuntário, algum gesto abrupto das mãos. Ele me olhava com calma, porém eu não lhe daria esta satisfação, porque acho que ele escrevia para testar não apenas seus personagens.
Tudo isso me fazia pensar em nossa evolução. Eu sei que é triste, mas eu também sou um autor e eu tenho que contar: no passado escravizávamos, mas pela luta aqueles se alforriaram, e hoje as pessoas são levemente menos escravas de alguém ou de algum sistema; depois, fizemos duas grandes guerras, matamos todo mundo, hoje maneiramos, matamos somente um terço; aos poucos aprendemos a poupar os animais que comíamos ou sobejávamos ou atirávamos apenas para observar a queda, pois crescentemente há vegetarianos e veganos no mundo que labutam para imitar o sabor da carne usando toda sorte de vegetais e leguminosas.
Evoluímos, porém, aos nossos personagens ainda não agimos com misericórdia, não os libertamos de longos sofrimentos,
porque
nós
ainda
não
somos
misericordiosos a nós mesmos; assim como é cruel consigo mesmo um deus ou um autor nós leitores também nos massacramos, nos envolvemos todos com essas canalhices. Por isso desconfio que também Theodoro Martins queria fazer do leitor uma espécie de fantoche, de escravo emocional, de viciado em frases num papel. E Alberto? Quem é afinal Alberto naquele manuscrito? É o cara errado na hora errada! — ao final, acho que mais por preguiça e irresponsabilidade do autor, morreu de bala perdida, num tiroteio, sexta-feira, entre federais e bandidos, no polêmico caso Brown. Eu 13
me enganei sobre Alberto se rebelar, mas não importa.
Isso não aconteceu, mesmo que estivesse tudo lá, em sua vida de pessoa ferrada. No final das contas, tudo já estava escrito! — "E no velório, enquanto todos o choravam (alto e em uníssono) lá na sala, do lado de fora seu filho, o primogênito, Ernesto Vergalhão, disse impávido aos deuses: — Ouçam aqui, seus filhos da puta, esta grande lamúria que fazem os nossos parentes!
Sou muito maior que esta grande lamúria! Sou maior que todos vocês, ó, deuses de merda! seus filhos da puta! Voltem para o inferno de onde vieram com tantas injustiças! Quem precisa de deuses? Ninguém precisa de filhos da puta!
Alberto agora dorme na paz absoluta da merecidamente inexistência, pois sofreu demais; Coitado, era mais um lascado e o peso da sua sina lascava a todos ao seu redor. No caso do seu filho, Ernesto Vergalhão, este herdou o que o pai herdou, é também protagonista dos infernos. Mas esta é uma história para qualquer dia desses. Por enquanto deixemos o menino descansar.
14
2-
— A sina é uma coisa que não se mexe, meu filho, porque não se muda. Se tentar mudá-la amarrando-a, quebra-se, pois a sina é dura igual a pedra de sílex, não aceita certos manuseios. Quero saber quem mudou tua sina! Aposto! E digo logo: tu não pelejes contra os aguilhões. Observe! Tu tens o nosso sobrenome, rapaz!
Gostas disto? Gostas não? Ora essa... nem Abraão nem Jacó te conheceram! Vá passando! Já passastes?
Humildade ajuda. Pois saibas que esse nó ninguém desata! Procures tu de logo aprender, pois, o nosso ofício. Ou vais morrer de fome escrevendo versos! Fácil, fácil. E eu já avisei. Ou não? Compreendias que somos judeus três vezes desgraçados e uma vez abençoados?
Cuidado! Caímos na Babilônia e nos misturamos aos romanos (por isso o sobrenome latino-judaico), e somente neste sobrenome latino reside uma bênção, que pende, por assim dizer, do cóccix fumacento da existência de um povo desviado que reencontra o caminho. Vou te contar uma coisa! Atenta-me,