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A Segunda Chance De Thomas Lutter
A Segunda Chance De Thomas Lutter
A Segunda Chance De Thomas Lutter
E-book2.085 páginas27 horas

A Segunda Chance De Thomas Lutter

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Sobre este e-book

Thomas Lutter era um jovem amigo, companheiro, fiel, alegre e grato pela vida que tinha, até que em um fim de semana tudo mudou. Seu amigo André ia pedir sua namorada em casamento, mas o recebimento de fotos íntimas de uma ex-namorada estragou tudo e culminou em um acidente que deixou sua namorada paralítica. Acusado de ser a pessoa que enviou as fotos, Thomas viu a desconfiança no olhar de seus amigos e foi abandonado por Joana, a mulher que ele amava. Sofrendo com as acusações e não vendo como provar sua inocência, Thomas decide não só deixar a sua cidade, mas também o Brasil. Em sua bagagem ele carregava dor, mágoas, perplexidade e um sentimento de vazio. Seis anos depois, Thomas está de volta. Mas agora há algo de diferente. Ele está mais enigmático, fechado e apesar de encontrar seus antigos amigos, sua relação com eles parece ser superficial e esconder algo. O que mais Thomas trouxe em sua bagagem? E como ele reagirá ao reencontrar Joana? Ao mesmo tempo, um empresário paulista começa a comprar os principais negócios da cidade: o colégio e o maior hotel. Essas aquisições mexem diretamente com a vida de muitos dos moradores da cidade e atrai a atenção de um homem perigoso: o poderoso Raul Toledo. Mistério, suspense, ação e drama são apenas alguns dos ingredientes desse romance que narra a jornada de uma pessoa que se viu jogada no fundo de um poço e precisou de coragem e força para se reerguer.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de jun. de 2021
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    Pré-visualização do livro

    A Segunda Chance De Thomas Lutter - Tom W. Kooper

    A SEGUNDA CHANCE DE THOMAS LUTTER

    VOLUME ÚNICO

    TOM W. KOOPER

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Índices para catálogo sistemático:

    Ficção policial e de mistério : Literatura

    brasileira 869.93

    Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

    Capa: Imagem de Free-Photos por Pixabay

    Apenas aquele que atravessou o extremo

    infortúnio está apto a sentir a extrema

    felicidade. É preciso ter desejado a morte, para saber o que vale a vida.

    Toda a sabedoria humana se resume nestas duas palavras: Esperar e ter esperança.

    Edmond Dantès

    Conde de Monte Cristo

    Para Dea,

    que não só acompanhou a jornada do Thomas, como a minha também.

    CAPÍTULO 1

    A chegada

    Chovia torrencialmente naquela noite de domingo, 27 de janeiro de 2019. Eram quase dez horas e eu já estava no carro há mais de trinta minutos, tomando coragem para entrar na pousada. As ruas estavam desertas e com pouca visibilidade devido à forte chuva que caía. Já se haviam passado quase seis anos desde que eu deixara a minha cidade, Engenheiro Lopes, e voltar não foi uma decisão fácil de se tomar, principalmente depois do que aconteceu. Esperei mais uns dez minutos no carro, peguei o celular e enviei uma mensagem: Cheguei.

    Não demorou para que eu recebesse a resposta: Tem certeza de que quer prosseguir?

    Nem hesitei em responder: Absoluta.

    Desci, abri o porta-malas do carro e peguei uma mala grande e uma mochila. Corri para a entrada da pousada, que não ficava muito longe, mas já era tarde demais; eu estava encharcado da chuva.

    Havia apenas um jovem, na faixa de seus 25 anos, na portaria. Ele possuía traços orientais e estava vendo algum vídeo no celular, quando minha entrada o assustou.

    – Boa noite! – cumprimentei-o. – Eu acabei de chegar e gostaria de saber se vocês têm um quarto para alugar.

    O jovem me olhava espantado. Dificilmente alguém iria fazer check-in em uma pousada, em uma noite de domingo, principalmente naquele temporal.

    – Temos, sim! – disse ele, olhando-me de cima a baixo. – Nossa! O senhor vai pegar um belo resfriado, ensopado desse jeito! – Em seguida, pegou sob o balcão uma toalha e me entregou. – Vou precisar de um documento e um cartão de crédito.

    Entreguei meus documentos, me registrei e ele me deu a chave do quarto 5.

    – Pretende ficar por muito tempo? – perguntou-me.

    – Ainda não decidi – respondi. – Desculpe-me, mas o quarto 10 está vago? É o meu número da sorte.

    Ele sorriu e entregou-me a chave do quarto 10. Saiu de trás do balcão, pegou minha mala e me levou pela escada. Eu ainda me lembrava de quando subia e descia aqueles degraus correndo quando criança.

    O quarto era modesto: uma cama de casal, uma cômoda, um guarda-roupa embutido, uma pequena mesa com abajur, uma cadeira, uma poltrona, frigobar, televisão e um pequeno banheiro. Ele me deu a senha do wi-fi, informou-me que o café era servido das seis às oito e meia da manhã, e desculpou-se dizendo que a cozinha estava fechada àquela hora da noite. Eu agradeci e disse que não estava com fome. Ele perguntou se eu precisava de mais alguma coisa e me desejou um boa-noite.

    Assim que ele saiu, tirei minha roupa ensopada, tomei um belo banho quente e, depois de me agasalhar, fui até à janela de onde podia se avistar o coreto da praça central, a antiga igreja e a rua que levava ao principal colégio da cidade, onde estudei: o Tavares Nunes Toledo, ou TNT como era mais conhecido. Mesmo debaixo daquele aguaceiro, a cidade parecia a mesma de seis anos atrás. Não parecia ter se passado nem um dia desde a minha partida. Mas muita coisa aconteceu desde então. Respirei fundo e voltei a me concentrar no motivo de minha volta.

    Peguei o celular e vi que havia uma mensagem que recebi enquanto estava no banho.

    Mensagem: Ela está ansiosa. Já ligou três vezes.

    Minha resposta: Mande-a se acalmar e esperar pelo momento certo. Seguiremos conforme o combinado.

    Tornei a olhar pela janela e pensei comigo mesmo: Agora não tem mais volta.

    Abri minha mochila e de dentro retirei uma pilha de pastas com o dossiê de algumas pessoas da cidade: endereços, seus hábitos, onde trabalhavam, seus familiares, etc.

    Li tudo mais de uma vez. Eu já sabia de cor o que constava naquelas pastas. Há meses eu vinha estudando o seu conteúdo.

    Programei o celular para despertar às sete da manhã, guardei as pastas e deitei. Eu estava exausto da viagem e o dia seguinte iria exigir que eu estivesse plenamente descansado e focado no que vim fazer.

    Não demorou para o sono chegar. Meus últimos pensamentos antes de cair nos braços de Morfeu[1] foram: Como ela estará agora? Espero que ela esteja bem!

    Acordei no horário programado. A chuva da noite anterior dera lugar a uma pálida manhã com sol. Me arrumei e vi que as roupas que eu deixara penduradas no banheiro ainda estavam molhadas. Havia um saco para o serviço de lavanderia. Coloquei-as dentro e desci para o café. Só havia uma família de 5 pessoas no refeitório: pai, mãe, uma avó e duas meninas entre quatro e seis anos, eu acho. Nunca fui bom em estimar a idade de crianças.

    Dirigi-me ao balcão da portaria, onde agora estava uma jovem com não mais do que 20 anos. Entreguei a ela as roupas e solicitei o serviço de lavar e passar. Ela me deu um recibo e perguntou se eu queria que arrumassem o quarto. Eu agradeci, mas dispensei. Fui ao refeitório e tomei um rápido café. Eu queria sair dali antes de dona Adelaide chegar.

    Na TV do refeitório os assuntos principais eram o rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, e a contagem de corpos que só aumentava, além da crise de segurança pública no Ceará por causa do aumento dos ataques das facções criminosas. O novo governo já enfrentava seus primeiros problemas no primeiro mês de mandato.

    Faltava um quarto para as oito quando deixei a pousada e as ruas já estavam movimentadas. As pessoas se dirigiam aos seus trabalhos com certa pressa, se desviando das enormes poças d’água que estavam espalhadas pela cidade. Parecia que todos acordavam atrasados às segundas-feiras.

    Algumas coisas pareciam as mesmas da minha infância: vi o movimento na padaria do seu Batista; vi o mercadinho da portuguesa Aparecida sendo aberto; a banca do seu Gomes vendendo os primeiros jornais do dia; e algumas senhoras se dirigindo para a segunda missa do dia. Um bando de maritacas passou gritando sobre a pousada em direção a um grupo de árvores que ficava mais à frente e o cão do vizinho da casa em frente latia desesperado para as aves que não paravam de gritar. Lembranças agradáveis de quando eu era criança e brincava por aquelas ruas me dominaram por um minuto, e uma sensação de felicidade ardeu em meu peito. Então, balancei a cabeça como se quisesse espantar essas lembranças para longe.

    Não sou mais aquele Thomas, falei comigo mesmo.

    Antes que alguém me reconhecesse, coloquei os óculos escuros, entrei rápido no meu carro alugado, um sedã preto 4 portas com vidros escuros, e me dirigi até a parte leste da cidade. De lá fui até uma área enorme e bem arborizada: o cemitério da cidade.

    Estacionei debaixo de uma árvore bem frondosa, atravessei o portão principal e caminhei pelas ruelas do cemitério. A cada passo, lembranças das outras vezes em que eu estive ali emergiam em minha mente.

    Segui pela via principal até um determinado ponto e entrei em uma das ruelas à direita. Passei por diversas sepulturas, mas não demorei a encontrar o jazigo da minha família.

    Limpei a placa de mármore, removendo umas folhas que estavam por cima, deixando visível o que estava escrito:

    Otávio Fernandes Lutter

    "As pessoas que amamos nunca morrem,

    apenas partem na nossa frente." [2]

    NASCIMENTO: 14/09/1952

    FALECIMENTO: 08/08/2017

    Fiquei parado diante do túmulo de meu pai, por alguns minutos, antes de uma lágrima escorrer por minha face e eu dizer as minhas primeiras palavras:

    – Sinto muitas saudades do senhor, pai! Espero que o senhor não se decepcione com o que eu possa vir a fazer!

    Sem que eu percebesse, minha memória retrocedeu até o dia do sepultamento dele...

    CAPÍTULO 2

    09 de agosto de 2017

    Era uma tarde nublada de quarta-feira. Meu pai Otávio era um homem muito querido e conhecido na cidade, por isso o cemitério estava lotado. Ele era uma pessoa serena, amiga, justa e com um caráter exemplar. Não havia quem não gostasse das histórias dele e quem não ouvisse os seus conselhos. Foi um pai presente, não muito carinhoso, mas extremamente companheiro. Me doeu não estar com ele quando adoeceu, nem poder me despedir dele. Eu queria ter dado um último abraço e ter dito muitas coisas que ficaram por dizer, mas não consegui. Minha ausência é algo que minha família não perdoou e uma culpa que carregarei para sempre, mas fantasmas e mágoas do passado me obrigaram a isso. Por esses motivos, assisti ao cortejo do enterro de longe, sem que soubessem que eu estava na cidade. Vi minha mãe amparada por minhas duas tias e minha irmã. Meu irmão carregava o caixão com meus dois primos, um tio e dois amigos de meu pai. O padre Paulo fez uma oração e meu irmão um belo discurso. Mesmo de longe, escondido atrás de uma árvore, eu pude ouvir, e fiquei muito orgulhoso. Vi muitos rostos conhecidos e alguns rostos que eu não reconhecera.

    Foi então que, no meio daquela multidão, eu a vi. Vê-la ali foi uma grande surpresa. Ela estava mais bela do que nunca.

    Talvez ela tenha voltado para a cidade apenas para o funeral.

    Lembranças de minha adolescência e início da juventude inundaram a minha mente. Meu coração disparou e minha garganta secou.

    Será que depois de tanto tempo, e do que aconteceu, eu ainda tenho algum sentimento por ela? Isso não é possível!

    Eu a vi caminhar em direção à minha irmã e se abraçarem. Minha vontade era de ir até lá e ficar ao lado da minha família, mas eu não podia. Não ainda. Eu tive a oportunidade de ter voltado antes e não aproveitei. Essa era uma escolha com a qual eu teria que conviver pelo resto da minha vida.

    Assim que a cerimônia acabou, e antes que alguém me visse, voltei mais do que depressa para o carro de vidros escuros que me esperava. Em seu interior estavam duas pessoas: Bruno e Verônica. Abri a porta do carona da parte da frente e sentei. Meu amigo Bruno estava na direção; na verdade ele era mais do que um amigo...era como um irmão. O que eu precisasse, na hora que eu precisasse, ele estaria lá. Bruno tinha 29 anos na época, rosto redondo e muito simpático, cabelo de corte militar e era muito forte. Era um exímio lutador e me ajudara muitas vezes. No banco de trás estava Verônica, a pessoa que resolvia qualquer coisa para mim. Era uma mulher alta, da minha idade, magra, com cabelos loiros e sempre presos. Seus olhos cor de mel viviam escondidos atrás de óculos com aros redondos e dourados. Estava sempre acompanhada de seu tablet e de dois celulares. Muito bem vestida, Verônica era o exemplo perfeito de uma secretária executiva.

    – Tem certeza de que não quer falar com eles? – perguntou-me Bruno. – Aposto que eles ficariam felizes em rever você.

    – Agora não adianta mais – respondi com convicção.

    – Sabe o que eu acho dessa sua ideia, né? – disse Bruno, com um ar de reprovação.

    Ignorei o comentário de meu amigo e me dirigi à Verônica:

    – Arranjou tudo?

    Verônica era uma máquina de eficiência. Ela me respondeu num fôlego só:

    – O velório, o enterro, as flores e todos os preparativos foram pagos e executados sem problemas. Sua família acha que seu pai tinha feito um plano funerário sem que eles soubessem. O advogado foi bem convincente. Ele tratou com a agência funerária responsável, e toda a documentação foi entregue à sua irmã. A placa de mármore foi posta hoje, bem cedo, antes do cerimonial.

    Esperei a multidão que comparecera ao enterro deixar o cemitério. Confesso que por pouco não desci do carro e corri atrás de minha família para abraçá-los, mas eu ainda não estava pronto. Assim que a última pessoa deixou o cemitério, desci do carro e fui em direção ao jazigo da família. Depositei flores no túmulo de meu pai e fiz uma oração. Bruno e Verônica me faziam companhia. Retirei os óculos, peguei um lenço do paletó e enxuguei algumas lágrimas.

    – Me perdoe, pai! – disse baixo. – Eu devia ter voltado antes, mas...bom, qualquer coisa que eu diga agora, não vai mais fazer diferença.

    Bruno colocou a mão no meu ombro e disse:

    – Tenho certeza de que ele perdoa você.

    Olhei para o meu amigo e falei:

    – Eu sei. Ele era um homem bom. Vivia me dizendo para não guardar mágoas no coração. E o que foi que eu fiz? Deixei as mágoas do passado me manterem longe daqui e não estar com ele em seus momentos finais. Ele pode me perdoar; eu não!

    Bruno olhava em volta, sondando todo o local.

    – Se você não quer ser visto por ninguém, acho melhor voltarmos para o carro – disse Bruno. – A qualquer momento alguém pode aparecer e ver você.

    Não dei atenção ao que Bruno falara. Minha mente estava divagando.

    – Esse é o quarto enterro que compareço em toda a minha vida – comentei. – Meus avós paternos estão enterrados aqui também. O último enterro em que estive foi o da avó de um amigo de infância. Ela foi enterrada há três quadras daqui – disse apontando para a esquerda, em direção a um mausoléu de luxo.

    – É melhor nós irmos, Thomas – insistiu Bruno.

    Concordei com ele. Coloquei os óculos de volta, fiz uma última prece, me despedi e voltamos para o carro. Meu celular vibrou com uma mensagem recebida.

    Mensagem: Localizei ele. Segue o endereço no Rio de Janeiro.

    Verônica me perguntou do banco de trás:

    – Vamos voltar para o Rio?

    – Vamos, mas ficaremos lá por mais um dia – respondi, entregando o celular a ela e mostrando a mensagem. – Tenho uma visita para fazer.

    Verônica acenou com a cabeça concordando com o que eu disse. Bruno ligou o carro e partimos. Não demorou muito para que Verônica me devolvesse o celular.

    – Desculpe-me, mas seu irmão acaba de mandar uma mensagem perguntando o porquê de você não ter comparecido ao enterro. Disse que sua mãe está muito abalada e sentindo a sua falta. E ele se referiu a você de uma forma que eu prefiro não repetir.

    Pedi que ela respondesse, dando qualquer desculpa: problemas na emissão das passagens aérea; doença; problema com o passaporte... qualquer coisa que o fizesse acreditar ao menos ser possível de ter ocorrido.

    Recostei-me no banco e abri o porta-luvas. Retirei um pequeno álbum com fotos do meu pai. Olhei foto por foto. Fechei os olhos e fiquei recordando aqueles momentos.

    Foi extremamente difícil conter algumas lágrimas...

    CAPÍTULO 3

    Valquíria

    O celular em meu bolso vibrou, trazendo-me de volta à realidade. Recebi uma mensagem de texto que por hora decidi ignorar. Fiz uma prece e me virei para voltar ao carro. Eu sempre fui uma pessoa que preferia ter o controle da situação, mas o Cosmos tem um modo engraçado de nos mostrar que tal controle é ilusório e que o inesperado pode bater à nossa porta a qualquer momento. E foi exatamente o que aconteceu quando caminhei alguns passos; deparei-me com uma pessoa que eu não esperava encontrar ainda: Valquíria.

    – Thomas? – disse ela, não acreditando no que seus olhos viam. – É você mesmo?

    Valquíria era uma mulher de 26 anos. Media 1,65m; tinha cabelos castanhos claros curtos; olhos verdes como belas esmeraldas; e duas covinhas nas bochechas quando sorria. Estudamos juntos durante todo o ensino médio no TNT e mesmo depois, durante a universidade, continuamos muito amigos até eu partir de Engenheiro Lopes, quando então perdemos contato depois de um tempo. Confesso que chegou um momento em que achei que o que eu sentia por ela era mais do que uma amizade.

    – Como vai, Val? – perguntei, tirando os óculos escuros e pensando em como lidar com a situação de ser visto antes do que eu planejara. – O que você faz aqui?

    Minha pergunta causou uma reação explosiva da parte dela.

    O QUE EU FAÇO AQUI? – disse ela, alto e bom som. – O que você faz aqui? Quando você chegou à cidade? Por que não me procurou? Sua irmã sabia que você vinha?

    – Calma, Val! – disse eu, tentando parar com a enxurrada de perguntas. – Eu cheguei ontem à noite e ninguém sabia que eu vinha. E prefiro que você guarde esse segredo por enquanto. Vou visitar as pessoas aos poucos. Esse foi o primeiro lugar que eu quis vir: o túmulo de meu pai.

    – Todos sentiram muito a sua falta no enterro dele – disse ela, pesarosa. – Por que você não veio?

    – Tive uns contratempos.

    CONTRATEMPOS? – Ela estava indignada. – Era o enterro do seu pai. SEU PAI!

    Não consegui encará-la. Por mais que eu tivesse, na época, os meus motivos para que não soubessem que eu compareci, suas palavras me atingiram.

    – Mas e você? O que você faz aqui? – perguntei, desviando o foco da atenção dela e percebendo que ela carregava algumas flores. Não era muito difícil deduzir que ela também fora visitar algum túmulo.

    Em silêncio, ela fez um gesto com a mão me levando até mais ao fundo do cemitério. Atravessamos umas seis ruelas até pararmos em frente a um túmulo.

    Na placa estava escrito:

    Milton Barbosa Garcia

    NASCIMENTO: 03/08/1975

    FALECIMENTO: 21/10/2016

    – Esse é o meu marido! – disse ela, com os olhos marejados.

    Eu levei um choque. Não esperava por tal novidade. Essa era uma informação que não constava nos arquivos que eu tinha. Olhei novamente para a placa e fiz uma conta rápida.

    – Sim, ele era mais velho do que eu 17 anos – disse ela, percebendo o que eu fazia. – Eu o conheci na universidade. Ele foi meu professor no último ano. Depois que você partiu, eu e ele nos tornamos amigos, nos apaixonamos e logo nos casamos, em maio de 2014. Foi tudo muito rápido. Ficamos casados um pouco mais de dois anos, quando um derrame fulminante o tirou de mim. – Sua voz estava engasgada pela emoção.

    – Eu sinto muito, Val! Eu não fazia ideia.

    Seu semblante mudou.

    – E como você poderia saber? Você foi embora há seis anos. Deu poucas notícias no início e depois mais nada. Nenhuma carta, telefonema ou uma mensagem sequer. Sabia que existe celular? Computador? Que se comunicar é a coisa mais fácil desse mundo hoje em dia?

    – Você sabe muito bem o porquê de eu ter ido embora. As coisas das quais fui acusado e o comportamento das pessoas perante o acontecido me fizeram aceitar a proposta que recebi na época. E depois do que aconteceu, manter contato não parecia uma boa ideia.

    – Você não está me incluindo entre essas pessoas, está? – Valquíria elevou o tom de sua voz. – Eu nunca acreditei no que disseram. Eu sempre defendi você e você sabe muito bem disso. Eu estava disposta a ir embora com você, mas você me dispensou!

    – Eu não a dispensei – disse, encarando-a. – Eu só não podia arrastar você pelo caminho de dor e sofrimento que acolhi em minha jornada incerta.

    Valquíria aproximou-se e pegou em minha mão.

    – A verdade é que você não foi embora por causa do que algumas pessoas disseram – afirmou ela. – Você partiu por causa dela. Você se sentiu traído, ferido, magoado e abandonado por ela e aproveitou toda a situação em que se encontrava para fugir da sua própria dor. E com isso, sacrificou a nossa amizade. Eu disse isso na época e repito agora.

    Aquelas palavras desceram amargas. Eu poderia ter retrucado, mas preferi ficar calado. Lembrei-me das palavras do meu avô: O silêncio em determinados momentos evita muitos arrependimentos. E gostando ou não, havia alguma verdade no que ela disse.

    Val fechou os olhos, balançou a cabeça e apertou os lábios.

    – Me desculpe, Thomas! – disse ela, abraçando-me. – Eu não devia ter dito isso!

    – Está tudo bem – disse, retribuindo o abraço.

    – A verdade é que estou muito feliz com a sua volta. – Ela então franziu a testa e disse: – Agora que reparei...você não está mais usando óculos!

    – Eu operei. Confesso que às vezes me pego procurando por eles ainda.

    – Você ficou muito bem sem eles – disse ela, olhando para mim. – E essas duas safiras em seus olhos estão mais azuis do que nunca!

    Eu sorri, meio sem jeito. Valquíria então disse:

    – Eu proponho que comemoremos a volta do filho pródigo e esqueçamos o passado! Aquilo não tem mais importância mesmo.

    Discordo.

    – Calma, Val! Deixa eu me ambientar primeiro, ok? – pedi a ela, com uma voz serena.

    Valquíria concordou. Eu anotei o endereço dela e o número de seu celular e fiquei de marcar um jantar ainda naquela semana. Voltamos conversando até o carro dela.

    No caminho, tornei a pedir segredo de minha volta, mesmo sabendo que não haveria garantias de que ela não comentaria com alguém. Assim que ela entrou no carro, reconheci um cordão em seu pescoço. Quando ela partiu, coloquei novamente os óculos escuros, voltei ao meu carro, entrei, peguei o celular e fiz uma ligação. Dois toques foi o que esperei antes de atenderem.

    – Mudanças de plano. – Minha voz era firme. – Valquíria me encontrou no cemitério.

    – E agora? – perguntou a voz do outro lado.

    Demorei um pouco a responder:

    – Vocês aceleram com o combinado, mas eu vou para o Rio de Janeiro. Vou visitar a minha mãe e garantir que ela não venha para cá. Vou aproveitar e pegar uma coisa que acho que está com ela.

    Em seguida, li a mensagem que recebi quando estava no jazigo da minha família.

    Mensagem: Espero que esteja bem!

    Por um instante, eu pensei em desistir. Mas a necessidade de seguir com o plano era maior que os meus desejos de ignorar o que já passou.

    Os culpados precisam pagar.

    Decidi responder à mensagem.

    Resposta: Estou bem, sim! E logo terminarei o que vim fazer!

    Desliguei o celular e rumei para a pousada. Estacionei na parte dos fundos, onde ficavam as vagas dos hóspedes e entrei pela porta de trás. Subi rápido a escada, sem que me vissem, e entrei no quarto.

    Enquanto eu juntava uns papéis que deixei sobre a mesa e arrumava a minha mala, pensei no meu encontro com Valquíria, o que me trouxe muitas recordações do passado...

    CAPÍTULO 4

    2006

    O colégio TNT ocupava praticamente uma área de um quarteirão, onde havia três prédios: um de dois andares, um de três andares e um maior de quatro andares. O prédio menor, de dois andares, era onde ficavam a direção, a supervisão, a sala da psicóloga, a secretaria, um auditório, o almoxarifado e outras dependências. O prédio de três andares era onde estudavam os alunos do ensino fundamental: os antigos primário e ginásio. No prédio de quatro andares estudava a elite do TNT: os alunos do ensino médio; aqueles que suportavam todo tipo de tortura, desde provas semanais, provas orais surpresas e infinitos trabalhos que deveriam ser apresentados impecavelmente, sem falar que deixar de fazer um dever de casa era motivo de ganhar uma ocorrência a ser assinada pelo responsável. Duas ocorrências valiam uma convocação e, é claro, um discurso dos pais dizendo que não estavam pagando um ensino tão caro para que o filho só ficasse jogando videogame ou vadiando. Era a primeira década do século XXI, onde a proliferação do computador e da tecnologia facilitou, por um lado, o acesso à informação e, por outro, proporcionou ao adolescente um mundo inteiro para onde fugir de suas responsabilidades. Mas, em um colégio tradicional e caro como o TNT, éramos sempre lembrados de nossas obrigações. A família tinha também que fazer a sua parte e não apenas esperar que o colégio fizesse milagres.

    Ir para o ensino médio era quase como fazer dezoito anos. Mal sabíamos que a única diferença era que seríamos cobrados em dobro, no colégio e em casa. Era a época em que já havíamos atingido a adolescência, para a infelicidade de nossos pais e professores. Nossos interesses mudavam rapidamente, assim como nossos corpos. Os interesses amorosos começavam a dominar nossas mentes.

    Por que algum rapaz iria se interessar em saber qual o número de oxidação do elemento ferro? Ele queria saber é se a Karen estava gostando de alguém!

    Só a troca de prédio em si já era um momento marcante. E não foi diferente em 2006, quando eu, com apenas 14 anos, passei para o prédio de quatro andares. Por fazermos aniversário no final do ano e termos pulado um ano de escola, eu e Elisa, minha irmã gêmea, éramos uns dos mais jovens do 1º ano. Se eu dissesse que não era intimidador, estaria mentindo. Por isso eu tinha que fazer o que qualquer jovem faz nessa época: procurar um bando para fazer parte da matilha. Pode parecer que estou exagerando, mas basta dar uma olhada para ver que os adolescentes andam em bando, geralmente liderados pelo mais forte e com as notas mais baixas. O bando sempre permitia que um ou mais nerds – ou CDFs como se dizia antigamente – fizesse parte do grupo. Afinal, quem faria os deveres da maioria e daria cola nas provas? Mas, por sorte, isso raramente acontecia no TNT, uma vez que os que tinham notas baixas eram convidados a estudar em outro colégio. Logo, os bandos formados eram liderados pelos mais fortes e com boas notas também.

    No meu caso, eu não tive que passar por essa experiência, uma vez que os meus colegas do fundamental e amigos de infância passaram comigo para o prédio grande e continuamos a andar juntos. Alguns estudaram até nas mesmas salas, como foi o caso de eu cair na mesma sala do André e do Rogério, filho de um dos donos do colégio. Estudávamos juntos desde o primário.

    Na hora do primeiro recreio, escolhemos como nosso ponto fixo a sombra de uma amendoeira. Ao nosso grupo juntou-se um outro amigo de infância: César Toledo, filho de outro dono do colégio. Só tínhamos realmente três momentos para colocar a conversa em dia: na entrada, se conseguíssemos chegar mais cedo; no recreio; e na saída, quando enrolávamos para ir embora. Em sala era praticamente impossível.

    Esse foi o ano de conhecer figuras incríveis como os professores de Português e de Física, que além de engraçados eram muito bons em transmitir o conteúdo. Também conhecemos o professor Gilson, excelente professor de Geografia, que nos desafiava a ficar acordados em suas aulas. E, certamente, eu não poderia deixar de citar aquele que foi para seus alunos – e ainda deve ser para seus ex-alunos – o motivo de muitos pesadelos: Moreira, o temível professor de História.

    Foi mais ou menos no meio de março que eu conheci Valquíria, a aluna mais nova de todo o primeiro ano do ensino médio. Ela conseguiu entrar com apenas 13 anos. Naquela época, ela usava o cabelo solto e comprido até às costas e parecia estar sempre de mau humor. Eu já a havia notado no ônibus que pegávamos na volta para casa e ela raramente se sentava em um banco. Certa vez, eu estava ao lado dela e, quando um senhor se levantou para descer, eu ofereci gentilmente o lugar para ela se sentar e recebi como agradecimento um seco e sonoro: Não quero! Estou bem, de pé!

    Houve mais um encontro elegante entre nós, ainda naquele semestre. Por volta do início de junho, eu subia a escada com pressa e ela descia distraída. Como resultado, nos esbarramos e nossas apostilas foram ao chão. Eu comecei a catar e separar as apostilas, assumindo a culpa por ser desastrado. E o que eu ouvi? Pode deixar que eu apanho as minhas! De fato estávamos destinados a nos tornar grandes amigos. Lembro que uma vez cheguei a comentar com o Rogério e o André:

    – Estão vendo aquela menina de blusa azul ali? – perguntei a ambos, apontando do alto da escada para ela, na fila da cantina. – É a minha futura esposa!

    No segundo semestre, assim que voltamos do recesso de meio do ano, o colégio nos surpreendeu com uma troca de turmas. A partir daquele momento, os alunos seriam reagrupados em outras turmas para evitar as panelinhas que haviam se formado no primeiro semestre. Todos teriam os seus lugares fixos, determinados pelo professor do 1º tempo, no primeiro dia de aula da nossa volta. Muitas foram as reclamações deixadas pelos alunos nas paredes dos banheiros. Era muito bom ver que as aulas de Português contribuíam com o vocabulário de todos os aspirantes a poetas e escritores.

    Pois foi exatamente nesse momento que eu percebi a influência daquele que me acompanharia por toda a vida, ora como ajudante, ora como adversário: o Cosmos. Nessa mescla de turmas, a simpática Valquíria foi alocada na minha classe e, como ela chegou atrasada no primeiro dia da troca de turmas, o único lugar disponível era, por incrível que pareça, ao meu lado, pois eu estava sentado sozinho na primeira carteira. Por algum motivo alheio à minha compreensão, a maioria dos alunos fugia para o fundo da sala nas aulas de Matemática. Valquíria sentou-se ao meu lado e eu a cumprimentei com um bom-dia! Como resposta, eu recebi um eloquente "É!".

    Cheguei a pensar que, em algum momento, ou eu a ofendera sem querer, ou eu furara a fila da lanchonete, ou eu a queimara em uma fogueira em outra encarnação. Tinha que haver algum motivo para essa menina ser tão gelada comigo. Foi então que percebi que ela tinha dificuldade em se relacionar com as meninas também. Eu a vi lanchando sozinha na arquibancada várias vezes, ou então lendo nos bancos do pátio. Por algum motivo aquilo virara questão de honra para mim; decidi que eu ia me aproximar dela. Por sermos obrigados a permanecer no mesmo lugar até o final do ano, era apenas uma questão de tempo até começarmos a nos falar. Como eu sempre dizia: Saturno é o meu regente. Eu nasci sob o signo de capricórnio que, segundo a astrologia, é regido pelo planeta Saturno. Na mitologia grega, Saturno equivale a Cronos, deus do Tempo. Daí o motivo de eu repetir sempre essa frase, em alusão a sou paciente.

    E a oportunidade veio em uma bela sexta-feira de agosto, quando eu, descendo as escadas para o recreio, a encontrei sentada nos degraus, chorando. Eu ia passar direto, mas algo me fez retornar. Ela estava com a cabeça baixa sobre os joelhos e suas lágrimas caíam aos seus pés, formando uma pequena e discreta poça. Guiado por uma força maior, eu me sentei ao seu lado e, com jeito e medo de uma resposta atravessada, perguntei:

    – Você está bem?

    Ela enxugou o rosto antes de levantar a cabeça e olhar para mim.

    – Não foi nada! – disse, abaixando sua cabeça sobre os joelhos.

    Meu primeiro impulso foi o de me levantar e ir embora, mas ao invés disso abri uma apostila e comecei a fazer o dever de casa. Ela voltou a levantar a cabeça e me olhou desconfiada, com seus olhos cor de esmeralda, inchados de tanto chorar.

    – O que você está fazendo? – perguntou, com uma voz quase abafada.

    – O dever de Química – respondi, displicentemente.

    – Isso eu estou vendo! – disse ela, num tom mais forte. – Mas por que você está fazendo o dever aí?

    – Sempre há um motivo que nos faz chorar. E nessas horas ninguém deveria estar sozinho – respondi, estendendo um lenço para ela. – Então, mesmo que você não queira me dizer qual o motivo do seu choro, eu vou ficar aqui lhe fazendo companhia.

    Valquíria aceitou o lenço, enxugou as lágrimas e ficou me observando por um tempo.

    – Você não precisa ficar aqui – disse ela, devolvendo-me o lenço. Eu fiz um gesto com a mão para que ela ficasse com ele.

    – Eu sei que não preciso ficar. Mas eu também sei que você precisa que alguém fique. E como não estou vendo mais ninguém por aqui...

    Valquíria me encarava como se quisesse me entender. Eu quase podia ler sua mente naquele momento: Qual é a desse cara? Mas a animosidade e a desconfiança deram lugar a um tímido e discreto agradecimento. Passaram-se mais uns cinco minutos antes dela enxugar o rosto, ajeitar o cabelo e se levantar. Ela me entregou o lenço e foi em direção ao banheiro feminino para lavar o rosto. Olhei o relógio e vi que ainda dava tempo de correr até a cantina. Por pouco não perco a hora do recreio.

    De volta à sala, Valquíria sentou-se ao meu lado e, sem olhar para mim, disse algo que eu nunca esperava ouvir dela: Obrigada!

    O último tempo daquele dia foi de Matemática, onde o professor deixou que os alunos trabalhassem em dupla. Ela virou-se para mim e disse que não se importaria se eu quisesse fazer sozinho. Eu disse que fazia questão de trabalhar em dupla. Ela aceitou, meio hesitante, e eu sugeri que, para andarmos mais rápido, um de nós faria as questões pares e o outro as ímpares. Ela concordou e foi então que percebi que ela estava com dificuldade na matéria. Ela negara, mas não conseguia fazer o gráfico pedido. Eu peguei uma folha em branco e ensinei um truque para traçar aqueles gráficos. Ela pegou a folha, olhou-a com atenção e me fez uma pergunta. Eu tirei a dúvida dela e ela tentou fazer o dever sozinha. Ao final, ela pediu para eu ver se ela havia feito certo e me agradeceu com um sorriso.

    Assim que soou o sinal indicando o fim da última aula – a ordem do colégio era: primeiro saíam as meninas e depois os rapazes –, as meninas se preparavam para deixar a sala. Eu segurei Valquíria pelo braço e disse:

    – A propósito: feliz aniversário!

    Valquíria levou um susto com o meu comentário.

    – Como você...

    Pisquei um olho e indiquei que as garotas já estavam saindo.

    A partir daquele dia, Valquíria mudou comigo. Passamos a nos falar nas aulas; voltávamos às vezes no mesmo ônibus, sentados e conversando; e até trocamos números de telefone.

    Num belo sábado de manhã, eu recebi uma ligação dela perguntando se eu podia tirar algumas dúvidas de Física na parte da tarde. Eu pensei comigo: Que adolescente do sexo feminino estuda em um sábado à tarde? Ela tornou a perguntar e eu respondi: Sem problema! Me passa o endereço! E passamos uma tarde muito agradável, onde até rimos de algumas coisas.

    Antes de eu ir embora, ela virou-se para mim:

    – Posso te fazer uma pergunta? É que isso tem me incomodado desde que te conheci.

    – Claro! – respondi, com receio do que ela ia me perguntar.

    – Por que você usa o relógio virado para dentro do pulso?

    Eu sorri com a pergunta. Ajeitei os meus óculos e disse:

    – Por dois motivos: como eu sou estabanado, vivo batendo o braço nos móveis e isso arranharia o vidro do relógio; e o segundo motivo é uma homenagem ao meu avô. Ele usava o relógio da mesma maneira.

    – Você é diferente dos outros rapazes.

    – Prefiro achar que sou original! – respondi, com uma piscadela.

    Conforme o semestre avançava, nosso convívio também aumentava. Já trocávamos as primeiras confidências; eu já a chamava de Val; e passávamos horas ao telefone, mesmo depois das aulas. Isso quando não ficávamos até tarde conversando debaixo de uma árvore no parque da cidade. Minha irmã e Rute se aproximaram dela também e Val passou a fazer parte do grupinho das meninas.

    A menina de mau humor não mais existia, mas ainda pairava sobre Val uma aura de tristeza. Eu sentia isso, mas nunca a apressei a se abrir. Eu esperava que com o tempo ela mesma decidisse confiar a mim o que quer que fosse. Afinal: Saturno é o meu regente.

    As famigeradas provas de fim de ano chegaram e depois veio a recuperação para os que não haviam conseguido a média 7,0. No final, todos os meus amigos passaram e estávamos ansiosos pelo 2º ano, em 2007, mas não sem antes aproveitarmos, ao máximo, as férias escolares.

    No meu aniversário de 15 anos – eu e Elisa nascemos no dia 28 de dezembro, com um intervalo de oito minutos –, Val compareceu à pequena festa que meus pais fizeram. Em determinado momento, ela me puxou até um pequeno escritório, que meu pai montara para mim e meus irmãos, e me deu um presente. Era uma caixa de tamanho médio, muito bem embrulhada. Eu fiquei curioso e abri com todo cuidado. Meus olhos chegaram a brilhar com o que eu via. Era a edição original do livro O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, em dois volumes. Nós havíamos visto o filme na escola, em um dia em que vários professores cederam seus tempos para que pudéssemos ver o filme sem interrupção. Depois deveríamos comparar o filme com o livro que tivéramos que ler na época, mas aquele era uma versão compacta. O professor adorou a minha abordagem, tanto do livro como da adaptação para o cinema. Na época, eu comentara com Val que era uma obra-prima genial e que um dia iria procurar a versão original. Pois ela nunca esqueceu o que eu dissera, e fez com que o pai procurasse e encomendasse. Durante a famosa valsa dos 15 anos para a minha irmã, eu dançava com Val e lhe disse que seu presente me deixara sem palavras e que eu não sabia como agradecer pelo gesto. Val sorriu e me disse:

    – Não precisa! Você já fez isso ao longo de todo esse semestre!

    E assim nasceu uma relação que se tornaria Única, Especial e Incomparável...

    CAPÍTULO 5

    Dona Adelaide

    Arrumei a mala, dei uma última olhada em volta e pensei: imprevistos acontecem. Me dirigi à porta, virei a maçaneta e, para minha surpresa, uma mulher alta, corpulenta e na faixa dos seus 50 anos estava diante de mim. Mais uma vez o Cosmos me mostrava que ele tinha os seus próprios planos.

    Com uma voz grave, ela dirigiu-se a mim:

    – Você não achou mesmo que ia se registrar na minha pousada e eu não ia ficar sabendo, não é?

    Naquela hora, me senti de volta aos meus onze anos de idade, quando dona Adelaide me pegava fazendo algo errado. Minha surpresa foi tamanha que eu não sabia o que dizer. Ela aproximou-se e me deu um abraço tão apertado que fiquei sem ar.

    – Como é bom ver você de novo, meu filho! E como você mudou! Pegou corpo, tirou os óculos e finalmente deu um jeito no seu cabelo!

    O que tinha de errado com o meu cabelo?

    – Eu cheguei muito tarde ontem, mas eu ia procurar a senhora – disse, com um tom amável. – Também estava com saudades daqui; parece que nada mudou.

    – Aqui na cidade só envelhecemos – disse ela, sorrindo. – E que mala é essa? Vai a algum lugar?

    – Eu estou indo para o Rio – respondi.

    Para o Rio de Janeiro? Mas você acabou de chegar! – disse dona Adelaide, chateada. – Por acaso, encontrou alguém na cidade que não queria ver?

    – Não é nada disso! – tranquilizei-a. – Eu ainda nem tive tempo de reencontrar alguém na cidade – menti. – Eu só vou fazer uns exames e aproveitar para visitar a minha mãe. Devo ficar uns dias por lá.

    Exames? Mas está tudo bem com você, não está?

    Eu disse que eram apenas exames de rotina. Há algum tempo, tive que desenvolver a arte da mentira.

    – Seus amigos vão ficar de queixo caído quando souberem que você voltou – disse dona Adelaide.

    Alguns, talvez. Outros, nem tanto.

    – Pois eu gostaria de pedir à senhora que não comentasse com ninguém que eu voltei. Sabe como é... prefiro fazer uma surpresa.

    Dona Adelaide fez um gesto como se passasse um zíper na boca.

    – Pode deixar, meu filho. Seu segredo estará muito bem guardado.

    Duvido!

    Naquele momento, a porta do quarto nove abriu e de lá saiu um homem negro, de estatura mediana, na faixa dos 40 anos. Usava terno, óculos de aros grossos, era careca e tinha um bigode e um cavanhaque bem aparados. Ele nos cumprimentou e desceu a escada.

    – Aquele é o Dr. Laércio – disse ela. – Ele é o advogado de algum figurão e está tratando de negócios com os donos do TNT.

    – O colégio?

    – Sim! Parece que as finanças do colégio não estão lá essas coisas com a crise que o país está passando, e ele veio tratar de algum assunto com eles. Ele chegou já tem uns dez dias, se não me engano.

    – E por que ele não se hospedou no hotel?

    Dona Adelaide ficou brava com o meu comentário e fez o que fazia quando eu era criança: deu um tapa no meu braço.

    – Está desfazendo da minha pousada? O que aquele hotel tem que minha pousada não tem?

    Carinhosamente eu dei um beijo na face dela e me desculpei. Ela sorriu e me acompanhou até os fundos. Eu disse que não ia fechar a conta e que voltaria em breve. Dei-lhe um outro abraço e entrei no carro.

    Saí pela rua lateral, com todos os vidros levantados e o ar condicionado ligado. Contornei a praça central e rumei em direção à rua que levava à rodoviária. Alguns ônibus estavam manobrando, o que me fez ficar parado por alguns minutos.

    Uns meninos jogavam bola ali perto e ela batera na minha porta. Quando olhei pela minha janela, olhei em direção à plataforma de embarque. Há quase seis anos, no dia 15 de fevereiro de 2013, eu estava naquela mesma plataforma com uma mala e uma mochila. Eu esperava o ônibus para São Paulo, quando uma mão me puxou pelo braço.

    – O que você pensa que está fazendo? – O tom de Valquíria era autoritário.

    – Estou indo embora, Val! – disse, sem olhar nos olhos dela. – Resolvi aceitar a proposta de cursar a pós-graduação no exterior.

    Valquíria parecia não acreditar no que estava ouvindo.

    – Você ia embora sem se despedir? – Ela estava magoada. – É essa a consideração que eu mereço?

    – Me perdoe! – disse, ainda sob efeito de emoções contraditórias. – Não me resta mais nada aqui!

    Mais nada? Sua família está aqui! Eu estou aqui!

    – Depois de tudo o que aconteceu, eu preciso deixar a cidade – afirmei, dando um passo adiante.

    – Você vai deixar as ações de uma pessoa decidirem a sua vida? Se ela não confiou em você, se não enxergou o seu valor, pior para ela que saiu perdendo! Ela vai acabar quebrando a cara com a escolha que fez! Você não tem que fugir por causa dela!

    – Não estou fugindo! – argumentei. – Estou tomando uma decisão!

    – E vai sacrificar a nossa amizade por causa daquela...

    Interrompi Valquíria antes que ela completasse o que estava dizendo.

    – Não vou sacrificar nada – afirmei. – Vamos continuar nos falando.

    Ela me olhou com tristeza. Ela insistia para que eu mudasse de ideia.

    – Eu preciso mesmo ir embora daqui – disse, resoluto.

    Valquíria me puxou para o lado e disse:

    – Me dá meia hora, então. Eu arrumo minhas coisas e vou com você.

    Como é? – perguntei, não acreditando no que ela dizia.

    – Eu vou com você! – Valquíria então fez o número três com a mão. – Lembra?

    Eu sorri para ela, acariciei seu rosto e, com a mão direita, fechei os dedos com os quais ela fazia o número três.

    – Eu agradeço, Val, mas essa jornada é minha – disse, em tom de despedida. – Somente minha.

    – Mas...

    Val parou de falar quando a fila começou a andar e as pessoas começaram a embarcar no ônibus. Eu dei um abraço nela e embarquei.

    Val ficou na plataforma, olhando eu sentar ao lado da janela, nos fundos do ônibus. Seus olhos estavam cheios de lágrimas.

    Não demorou e o ônibus partiu da rodoviária. Além da minha bagagem, eu levava também muita dor.

    Nesse momento, a buzina de um carro atrás de mim me trouxe de volta ao presente. Os ônibus já haviam estacionado e a rua estava livre. Acelerei o carro e parti em direção ao Rio de Janeiro.

    Sou capaz de apostar que a essa altura dona Adelaide já espalhou para metade da cidade que eu estou de volta!

    CAPÍTULO 6

    07 de fevereiro de 2019

    Como eu já imaginava, dona Adelaide não conseguiu guardar segredo de minha rápida estada na cidade. Minha irmã e meu irmão ligaram para a nossa mãe para confirmar que de fato eu estava no Rio, a visitando. Eles não entenderam por que eu não os procurara quando estive na cidade. Inventei uma desculpa, dizendo que eu conseguira adiantar uns exames médicos que eu precisava fazer, mas que eu voltaria a Engenheiro Lopes e os procuraria assim que eu tivesse os resultados e o médico me liberasse.

    Desde a morte de meu pai, minha mãe Celeste fora morar com uma de suas irmãs, minha tia Maria, e seu filho João. A perda de meu pai a abalara tanto que ela passara a aparentar ter mais do que seus 53 anos. Lutou contra uma depressão e passou a ajudar numa igreja, no bairro onde morava.

    Dez dias após eu partir para o Rio, decidi voltar a Engenheiro Lopes. Durante o meu tempo no Rio, fui sendo atualizado do que ocorria na minha cidade natal: o prefeito inaugurara uma nova ala pediátrica no principal hospital da cidade, graças a uma grande doação que recebera; o filho de um vereador importante foi preso por dirigir embriagado e por desacato, mas logo foi solto; e no clube principal começaram os ensaios para o Carnaval, que aconteceria em março. Mas o que mais se comentava na cidade era a compra do colégio TNT por um empresário paulista de nome Dantas. Depois de 65 anos, o colégio deixava de pertencer às famílias Tavares, Nunes e Toledo. Isso fizera com que o início do ano letivo passasse para o dia 18 de fevereiro. Havia muita incerteza sobre quais mudanças seriam implementadas no colégio e uma reunião geral com todos os funcionários fora marcada para o dia 11.

    Era quase meio-dia quando cheguei. Fazia calor e anunciava chuva para o fim da noite. Encontrei na recepção da pousada o mesmo rapaz que me atendera na primeira vez. Assim que ele me viu, me informou que as roupas que eu deixara na lavanderia já estavam no meu quarto e que três pessoas estiveram à minha procura. Ele me entregou os nomes, telefones, endereços e recados dos que me procuraram. Subi até o meu quarto, tomei um rápido banho e me vesti para o almoço. Dei uma rápida olhada na lista e a deixei sobre a mesa do meu quarto antes de sair.

    Isso pode esperar.

    O refeitório não estava tão cheio. Avistei a mesma família que vira na manhã seguinte à minha chegada. Na mesa ao lado estava dona Adelaide conversando com o Dr. Laércio, o advogado que ela dissera estar tratando de negócios com os donos do TNT. Com certeza ela queria mais informações do que as que foram reveladas às pessoas. Informação em Engenheiro Lopes era uma moeda valiosa desde que eu era pequeno. Fui cumprimentá-la e ela, depois de me dar um daqueles abraços apertados, me apresentou ao advogado. Nem perguntou se eu queria almoçar, já foi pedindo para trazer o meu prato. Ela perguntou ao advogado se ele se importava de eu me juntar a eles e, educadamente, ele dissera que seria um prazer.

    – Você não faz ideia do que aconteceu enquanto você esteve fora! – disse ela, sem suspeitar de minhas fontes. – O TNT foi comprado. O Dr. Laércio aqui foi quem tratou de toda a papelada.

    – Não foi bem uma compra – ressaltou o Dr. Laércio. – Consideramos mais como uma sociedade, onde meu cliente detém a maior parte das ações. O objetivo principal foi o de salvar essa instituição, que é um marco da cidade, dos problemas financeiros pelos quais ela passava.

    – Desculpe perguntar, mas quem é esse seu cliente? – perguntei, assim que o meu almoço chegou: a espetacular macarronada de dona Adelaide, acompanhada de carne picada, salada e suco de tamarindo.

    – O senhor Dantas é um empresário bem-sucedido, principalmente no ramo imobiliário. Por vir de uma família de professores, ele também investe em vários colégios. E também é um filantropo, fazendo doações a instituições de caridade, asilos, orfanatos e algumas ONGS.

    – Mas esse não me parece um investimento que dará grandes lucros como resultado – afirmei. – Afinal, essa não é uma cidade como o Rio, e o TNT não é como aquelas grandes redes de ensino.

    O Dr. Laércio me olhou por sobre as lentes dos seus óculos.

    – Só sei o que meu cliente me diz – respondeu. – Eu não preciso saber das razões dele para adquirir um imóvel ou fechar alguma transação financeira. Apenas obedeço às ordens dele.

    – Que Deus abençoe este homem! – disse dona Adelaide, levantando as mãos para o céu. – Eu já tinha escutado que as coisas não estavam bem no colégio e até ouvi rumores de que eles poderiam vir a fechar. – Ela levantou-se da cadeira e perguntou: – E quando conheceremos o senhor Dantas?

    O Dr. Laércio pigarreou.

    – Lamento informar que provavelmente tão cedo não o conhecerão. Ele está com viagem marcada para o Canadá e não sei quando retornará ao Brasil.

    – Mas... e a tal reunião de segunda-feira com os funcionários? – perguntou dona Adelaide.

    – Será presidida por mim e por quem vai cuidar da administração – respondeu Dr. Laércio, levantando-se. – Todos os informes serão transmitidos segundo a vontade do senhor Dantas. – Ele apanhou a maleta do chão e disse, cordialmente: – Se me derem licença, eu tenho uma reunião marcada. Tenham um bom dia.

    Assim que ele saiu, dona Adelaide virou-se para mim e falou num tom baixo, como se fosse segredo:

    – Ele vai ao hotel regularmente. Encontra-se com algumas pessoas que estão hospedadas lá.

    – E como a senhora sabe disso? – perguntei, também num tom baixo.

    – Ora, Thomas! O que não se sabe nessa cidade? – disse ela, sorrindo. – E sua mãe como está? Ela gostou de revê-lo?

    – Minha mãe está bem e ficou feliz ao me ver depois de tanto tempo. Sempre que puder eu vou dar um pulo no Rio; afinal fica só a duas horas de carro.

    Ela colocou a mão em meu ombro e disse num tom melífluo:

    – Pois agora você deveria sair e procurar os seus irmãos e os seus amigos. Revê-los e matar a saudade dos velhos tempos.

    Eu me levantei, olhei em seus olhos e perguntei sem hesitar:

    – Será que eu ainda tenho amigos aqui?

    Dona Adelaide ficou surpresa com a minha pergunta.

    – Que é isso, Thomas? É claro que você tem amigos aqui. O que aconteceu foi há muito tempo.

    – Seis anos e alguns dias, dona Adelaide! – falei com precisão. – Não foi há tanto tempo assim.

    Dona Adelaide segurou as minhas mãos, tentando me confortar.

    – Você deveria esquecer isso, filho. Ficou no passado.

    – Menos para Nair – afirmei, num tom mais sério. – Ela ficou numa cadeira de rodas, lembra?

    Dona Adelaide apertou os olhos, lamentando a lembrança.

    – Pois eu sei de alguém que vai ficar feliz em saber da sua volta! – disse ela, num tom doce.

    – Quem?

    Dona Adelaide fez um gesto como se fechasse a boca com um zíper.

    Claro! Agora ela fica de bico fechado!

    Ela já estava indo em direção à cozinha quando eu a interpelei:

    – A senhora acredita que tenha sido eu?

    Ela não esperava por tal pergunta.

    – Está tudo bem! – disse ao ver que ela ficara sem saber o que dizer. – Não precisa me responder.

    Ela hesitou um pouco antes de chamar meu nome, mas eu já havia saído pela entrada principal.

    Estava na hora de eu rever algumas pessoas.

    CAPÍTULO 7

    Elisa

    Eu sabia que às quintas-feiras minha irmã gêmea atendia em seu consultório, em um dos principais prédios da região norte da cidade. Por ser uma excelente pediatra e trabalhar ali apenas dois dias na semana, sua agenda vivia lotada. Esperei até o último paciente dela ir embora antes de aparecer para Elisa. Não demorou para que uma mulher da minha altura, de olhos azuis e com cabelos claros compridos aparecesse.

    – Eu não sei se te dou um abraço ou um tapa! – disse ela, com um sorriso ao me ver.

    – É assim que você trata o seu irmão mais velho? – perguntei, abrindo os braços.

    – Sem essa! Você só é mais velho do que eu por oito minutos – disse ela, finalmente me abraçando. – E onde estão os seus óculos?

    Essa era uma pergunta que eu ainda teria que responder inúmeras vezes.

    – Eu operei – respondi. – Foi a melhor coisa que fiz.

    Elisa passou a mão em meu rosto com um sorriso em seus lábios.

    – Meu Deus! Como senti a sua falta, Thomas!

    – Eu também! Você não faz ideia! – disse eu, sendo totalmente sincero.

    – Então por que não voltou antes? Ou não deu notícias? – perguntou ela, inconformada com o que aconteceu. – Você só mandou notícias no primeiro ano e mesmo assim foram poucas. Depois sumiu. Não conseguíamos entrar em contato. Você saiu de onde estava, mudou o telefone... nem em redes sociais o encontrávamos. Você não sabe a angústia em que ficamos. Nem sabíamos se estava vivo. Só ficamos um pouco mais aliviados quando recebemos notícias suas quando o papai adoeceu.

    – Lisa – era assim que eu a chamava –, temos muito o que conversar.

    – Pode apostar que temos! – disse ela, virando-se e tirando o jaleco branco. – Você vem comigo e vai jantar lá em casa. E nem adianta dizer que não!

    Eu sorri e aceitei o ultimato dado.

    – Só assim para você finalmente conhecer o seu sobrinho – completou ela.

    Elisa casara no início de janeiro de 2013, antes de tudo acontecer. Quando ela voltou da lua de mel, eu já havia partido da cidade. Meu sobrinho nasceu em 2015 e foi batizado com o nome de meu pai, Otávio, mas era chamado de Tavinho por todos.

    A casa dela ficava há dez minutos do consultório, de carro. Ficava em uma rua a poucas quadras das grandes mansões luxuosas da região. Minha irmã casara com o único filho de Jorge Nunes, um dos donos do TNT.

    Estacionei o carro no portão da frente e entramos. Uma empregada viera nos receber.

    – Lourdes, teremos um convidado para o jantar – disse ela, entregando sua bolsa à mulher que não devia ter mais do que 50 anos. – Esse é o Thomas, o meu famoso irmão desaparecido.

    A mulher cumprimentou-me e seguiu para a cozinha.

    A casa era bem confortável. Tinha dois andares ligados por uma enorme escada com degraus de granito.

    A sala era ampla, com uma porta dupla de madeira dando para a sala de jantar, onde uma mesa em que cabiam facilmente umas dez pessoas ficava bem ao centro. Um corredor levava até um pequeno quarto de brinquedos onde uma mulher na casa dos 40 anos encontrava-se no chão, brincando com um menino de 3 anos. Assim que o garoto viu minha irmã, correu para os braços dela.

    Quem é o amor da mamãe? Quem é? – repetia minha irmã, enchendo de beijos o filho. – Vou te apresentar a alguém muito importante para a mamãe... Esse é o seu tio Thomas! – disse ela, colocando o garoto em meus braços.

    – Lisa... não precisava me dar ele para segurar – disse eu, totalmente sem jeito com o moleque nos braços.

    – Ah, é verdade! – disse ela, pegando o filho de volta e dando para a mulher. – Eu esqueci que você só gosta de criança em foto e dormindo.

    Eu ri, pois eu não esperava que ela se lembrasse do que eu dizia brincando quando mais jovem. Desnecessário dizer que essa frase me rendia toneladas de críticas.

    – Sílvia! Essa criatura insensível é o meu irmão Thomas! – disse Elisa, lançando-me um olhar de reprovação. – Tavinho já tomou banho?

    – Eu estava esperando a senhora chegar.

    Em seguida a mulher levou o garoto por onde viemos. Fomos logo atrás e retornamos para a sala principal, onde me acomodei num enorme sofá vermelho, daqueles em que você afunda de tão macio.

    – Empregada...babá... esse casarão... vida difícil, mana! – ironizei.

    Elisa jogou uma almofada em mim.

    – Deixa de ser bobo! Você sabe que essa casa foi presente do meu sogro – disse ela, sentando ao meu lado. – Reparei que você agora está usando o relógio da maneira correta.

    – Apenas uma das pequenas mudanças que fiz – respondi.

    Desde jovem, eu usava o relógio virado para dentro do braço. Mas, de uns anos para cá, passei a usar corretamente.

    Naquele momento, um homem descia a escada: era o meu cunhado Daniel. Ele tinha 1,90 m aproximadamente, 30 anos de idade, atlético, bronzeado, olhos e cabelos escuros. Formou-se em Direito, mas exerceu a profissão por pouco tempo. Até onde eu sabia, ele vivia da renda da família Nunes.

    – Eu não acredito no que estou vendo! – disse ele, assim que me viu. – Thomas? É você mesmo?

    Levantei e ele me cumprimentou com um daqueles abraços que nos tiram do chão, e voltamos a nos sentar. Confesso que houve uma época em que eu não gostava muito dele, mas ele amava a minha irmã e a fazia feliz, então eu o tolerava.

    Para a sorte dele.

    – Dan – era assim que minha irmã o chamava –, ele vai jantar conosco.

    – Com certeza! – disse ele, batendo em meu joelho. – Quero saber tudo o que você fez enquanto esteve fora. Casou? Foi preso? Foi se esconder com monges tibetanos?

    Dei um sorriso forçado, pela infeliz tentativa de Daniel em ser simpático. Uma coisa que meu cunhado certamente não era para mim: engraçado.

    – Apenas concluí os estudos – respondi. – Lamento decepcionar, mas nada de interessante aconteceu nesses seis anos comigo.

    – Você terminou o seu doutorado? – perguntou Elisa.

    E agora? O que respondo?

    Balancei a cabeça como quem confirma. Eu não estava disposto e entrar em detalhes sobre o que me aconteceu nos últimos seis anos.

    – Então estamos diante de um doutor! – disse Daniel, abrindo os braços. – Isso merece um brinde! – E correu para a cozinha.

    Está gostando da amostra?
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