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Aulas sobre Shakespeare
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E-book607 páginas8 horas

Aulas sobre Shakespeare

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Sobre este e-book

Entre outubro de 1946 e maio de 1947, com frequência semanal, Auden dá uma série de aulas na New School for Social Research de New York, dedicadas ao teatro e aos Sonetos de Shakespeare. Mas engana-se quem imagina terem sido seminários sisudos e exclusivos para doutorandos em literatura inglesa: Auden voltava-se para um público diversificado, agitado e entusiasmado de não menos do que quinhentas pessoas — tanto que era comumente obrigado a «berrar a plenos pulmões» e pedia àqueles que não conseguiam ouvi-lo para não levantarem a mão «porque eu também sou míope». Armado apenas da edição Kittredge das obras de Shakespeare, da vastidão prodigiosa da sua cultura e do seu incomparável humor — mas principalmente da convicção de que a crítica é uma conversa improvisada —, Auden falava o que lhe vinha à cabeça, encantando a todos. Mas também perturbando-os com a sua destemida falta de escrúpulos típica do outsider: em vez de enfrentar as Alegres matronas de Windsor, ele fez ouvir Falstaff, afirmando que a peça não tinha outro mérito que não o de ter servido de inspiração a Verdi. E chegando à Megera domada advertiu que não se deteria muito ali porque era um fracasso total — partindo da crítica ferina para um excursus sobre a farsa, que ia do Grande ditador de Chaplin a irresistíveis considerações sobre a guerra entre os sexos. Mas é talvez na aula dedicada a Antônio e Cleópatra, a obra preferida, que conseguimos apreender as razões da apaixonada adesão do público, pois, mesmo no papel de crítico, Auden permanece essencialmente um poeta, capaz de falar a todos — com a mesma milagrosa leveza que atribuía a Shakespeare.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de set. de 2022
ISBN9786559980420
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    Aulas sobre Shakespeare - W.H. Auden

    Henrique VI, Partes 1, 2 e 3

    ¹

    [9 de outubro de 1946]

    Henry James, numa resenha de alguns romances, disse que «Sim, estão presentes circunstâncias do interesse, mas onde está o interesse?».² A primeira pergunta a fazer: qual é o interesse, o tipo central de excitação que induz um autor a escrever uma obra, ao contrário dos estímulos marginais que podem tê-lo divertido no caminho. Na peça de crônica, que é histórica, não mito ou ficção, o interesse central é a busca de causas e padrões, uma representação não apenas do acontecimento, mas de sua causa e de seu efeito. The Mirror for Magistrates³ foi o principal exemplo elisabetano desse tipo de história, e passou por muitas edições e suplementos entre 1559 e 1587. A obra consiste em solilóquios imaginários dos fantasmas de estadistas britânicos famosos, de Ricardo II a Henrique III. Os elisabetanos acreditavam que a tarefa do cronista era determinar causas. Qual o padrão de retribuição? Em que medida a fortuna é condicionada por causas extra-humanas, pelas estrelas? Como o clima influencia a política, como as pessoas são afetadas pelas estrelas e pelos humores, e pelos equilíbrios particulares de seus temperamentos? Nosso interesse por história é semelhante nesse aspecto, se não idêntico. Apesar do dado humano, porém — sentimentos que nascem por apetites, paixões e desejos —, a habilidade e a livre escolha permanecem os interesses dominantes da escritura histórica.

    Em The Mirror for Magistrates, o personagem de Salisbury, que aparece logo no começo de Henrique VI, pergunta-se se foi um ato justificável Henrique IV ter executado seu pai por ter tentado restaurar Ricardo II, o rei legítimo, no trono. Ele conclui que o propósito do pai foi

    bom, sem dúvida.

    Qual causa será mais digna de um cavaleiro

    do que salvar seu rei, e auxiliar herdeiros?

    Porém ele conclui que os meios empregados foram violentos, e portanto constituíram um vício: «Deus odeia o rigor, mesmo em prol do que é certo». Sob que condições é permissível uma rebelião contra o príncipe? E qual é o caráter apropriado para um príncipe? Os elisabetanos acreditavam que o rei não devia ter ordenado que se cometesse um crime na rebelião contra um usurpador, e que, quanto mais tempo um rei passa no trono, menos direito há de se rebelar. Se o rei é um tirano — em outras palavras, se conquistou o trono pela violência —, a rebelião é apropriada. Nas discussões entre Henrique VI e Eduardo VI, a questão da abdicação voluntária é, por isso, importante.

    Os personagens em Henrique VI estão subordinados à ação. O interesse principal é a natureza do corpo político, daquilo que mantém sua saúde, daquilo que o destrói. Henrique VI retrata a degeneração de uma sociedade. Qual é a natureza do corpo político? Hoje definimos sociedade como a associação voluntária de duas ou mais pessoas com o fim de buscar um objetivo comum: por exemplo, jogar um jogo de xadrez ou dançar valsa. Supõe-se que o indivíduo pertence a uma sociedade por livre escolha, que ele compartilha seu propósito comum e que está disposto a atender suas obrigações não expressas — não perder a cabeça, por exemplo, se não ganhar um jogo de xadrez. O corpo político grego, a pólis, a cidade-Estado, como Atenas, consistia em homens adultos nativos e excluía mulheres, crianças, escravos e estrangeiros. A família é uma sociedade que consiste em adultos e bebês — os gregos teriam excluídos os bebês —, e os pais também formam uma comunidade não social. Os bebês, que não têm capacidade de governar-se a si mesmos, precisam ser governados por meio de força e de fraude,⁴ a força incluindo tanto as recompensas quanto as punições.

    No corpo político medieval, o Estado era uma comunidade não social atravessada por veios de socialidade. Ele era dividido em estamentos e composto de pessoas que não eram cidadãos por vontade própria, mas pessoas que por acaso estavam num lugar em particular. Algumas eram soberanos, o resto súditos, e o governo seguia o costume e depois a legislação. Uma esposa era súdita da soberania do marido, uma pessoa podia ser súdita de um senhor e o soberano podia conceder liberdade a seus súditos. A visão moderna é que o modelo grego de sociedade é o ponto de chegada desejado. A organização social medieval é vista como um começo que dialeticamente se transforma no outro e é sempre um berçário para o outro, pois as barreiras de classe são permeáveis para cima e há uma correspondência entre os governantes e os governados em seu modo de vida.

    A Idade Média enxerga o Estado como organismo natural, paralelo à natureza, e as correspondências feitas entre os dois são levadas bem longe. A ordem é natural, e a sociedade humana existe como parte de uma grande cadeia de ser que se estende de Deus aos animais e à natureza inanimada. Como afirma John Fortescue,⁵ há uma correspondência entre alto e baixo, quente e frio, e tudo ocupa uma posição tanto inferior quanto superior. Assim como toda a cadeia do ser é regulada por Deus, a raça humana, especificamente, também é. Fortescue sustenta que o homem pode descer na cadeia e transformar-se no animal mais próximo de sua própria sensualidade. Os gregos, bem como a Idade Média, viam a natureza como o macrocosmo e o homem como microcosmo, com uma relação teleológica entre os dois. No Renascimento, excluindo Shakespeare, e no século XVIII entendia-se que Deus fez a natureza e o homem fazia máquinas. Hoje, a natureza é estudada por cientistas, e o homem por historiadores.

    Henrique VI consiste em três peças que tratam do colapso. A classe governante não consegue governar a si mesma. Henrique VI consegue governar seu próprio eu, que é imanente, mas não outros eus, que são transientes, e a peça mostra uma sociedade que resvala numa horda não social. Henrique V foi um sucesso — depois vamos discutir a visão pessoal que Shakespeare tem dele. Henrique IV foi um usurpador. Ricardo II foi um mau rei, mas não era um tirano. Henrique VI, o rei criança, oferece uma oportunidade — não é obrigatório que as coisas deem errado.

    Em Henrique VI, Parte 1, somos inicialmente apresentados a duas gerações. Gloster e Bedford são irmãos do falecido rei, e Gloster é um personagem bom. No começo, o personagem mau — ambicioso demais — é o bispo de Winchester, depois cardeal, que é uma geração mais jovem do que Gloster. A disputa entre Gloster e Winchester é funesta. Três mensageiros aparecem — como no Livro de Jó. O primeiro informa a perda das províncias; o segundo, a união dos franceses e a coroação do delfim; e o terceiro, a captura de Talbot graças à covardia de Sir John Fastolfe. No final da cena de abertura, todos os personagens vão para o lado do bem, à exceção de Winchester, que fica para tramar como obter poder. Na cena seguinte, Joana d’Arc é apresentada. Sugere-se que ela foi mandada para punir os ingleses e ser o «látego dos ingleses» (Parte 1, I.ii.129 [Dramas, p. 334]). Nos duelos entre Joana e Talbot, Joana é representada ora como bruxa, ora como rival heroica. Ela mostra que é bruxa ao inverter a ordem natural e vencer Carlos num duelo. O prefeito de Londres emite uma proclamação contra a disputa violenta entre Gloster e Winchester. Nas três cenas restantes do Ato I, Salisbury é morto pela arma de um menino, Talbot perde seu primeiro duelo com Joana por meio da bruxaria dela, e Joana e os franceses entram triunfantes em Orléans. No ato seguinte, o jogo vira. Talbot faz um ataque noturno repentino e expulsa os franceses.

    Somos então apresentados à disputa entre as casas da rosa vermelha de Somerset e a da rosa branca de Ricardo Plantageneta, mais tarde duque de York. No início a disputa não diz respeito à dinastia, mas à restauração dos títulos de Ricardo, apesar da suspensão de seus direitos. Somerset pergunta a Ricardo se a execução por traição de seu pai Ricardo, conde de Cambridge, não permanece «manchando-te,/ corrompendo-te, e excluindo-te do quadro/ da nobreza da terra» (Parte 1, II.iv.92-93) [Dramas, p. 344]). Plantageneta responde que

    Acusaram meu pai, porém contra ele

    nada ficou provado. Muito embora,

    de fato, o houvessem condenado à morte

    como traidor, traidor não foi, jamais.

    (Parte 1, II.iv.96-97 [Dramas, p. 344])

    e que ele merece a restauração de seus títulos. Ele tem razão nessa discussão. Suffolk, quando Ricardo lhe pede para julgar o caso, sai pela tangente, dizendo:

    Sempre fui estudante preguiçoso

    no que respeita à lei; por não ter nunca

    podido submeter-me ao seu talante,

    obriguei-a a dobrar-se a meus caprichos.

    (Parte 1, II.iv.7-9 [Dramas, p. 343])

    Warwick é astucioso em sua argumentação:

    Dos falcões, qual se libra a mor altura;

    dos cachorros, qual uiva com mais força;

    dos corcéis, qual tem marcha mais marcial

    das jovens, qual é de olhos mais brilhantes…

    É possível que em todos esses casos

    eu decida com algum conhecimento;

    mas em julgar coisas sutis não cio;

    sou tão bisonho nisso como um gaio.

    (Parte 1, II.iv.11-18 [Dramas, p. 343])

    Warwick, porém, puxa a rosa branca de Ricardo. Suffolk escolhe a rosa vermelha de Somerset.

    A apresentação do tio de Ricardo, Mortimer, prisioneiro e moribundo, na cena seguinte (Parte 1, II.v), recorda a atmosfera de uma era anterior e de uma injustiça anterior, a usurpação da coroa de Ricardo II por Henrique IV e a negação dos direitos de Mortimer. Este incentiva Ricardo, mas ele ainda busca apenas «ver-me ao sangue reintegrado» (Parte 1, II.v.128 [Dramas, p. 345]). A desordem se espalha entre os homens de Winchester e Gloster, que tenta resolver a querela. Ricardo tem seus títulos restaurados, mas a disputa com Somerset mantém as coisas fervendo. Numa batalha em Rouen, primeiro Joana triunfa, depois Talbot, e em seguida Joana conquista Borgonha com um apelo ao patriotismo francês que não combina com sua ideia como bruxa. Em Paris, Talbot retira a jarreteira de Sir John Fastolfe, os ingleses ficam sabendo que Borgonha passou para o lado de Carlos, e vemos uma querela entre Vernon e Basset (Parte 1, IV.i), a sequência inteira sugerindo um contraste entre a unidade francesa e o dissenso inglês. Em Bordéus, Talbot e o filho são mortos por causa da rivalidade entre Somerset e York, que os impede de ir ajudá-lo. Talbot agora é traído não por covardia nem pelas «forças da França», mas pelo dissenso civil inglês, «a fraude inglesa» (Parte 1, IV.iv.36 [Dramas, p. 360]). As guerras com a França tinham sido iniciadas por Henrique IV e Henrique V para distrair a atenção dos direitos de Ricardo II. Como essas guerras não tiveram sucesso, agora surge a tentativa de buscar a paz com a França por meio do casamento de Henrique VI com a filha de Armagnac. Joana perde poder e é capturada. Suffolk dá força a Margarida de Anjou, sua candidata a rainha de Henrique, em parte porque ele deseja aumentar seu poder controlando-a. Henrique comete o erro de aceitar Margarida, assim alienando tanto Gloster quanto York. O erro de Henrique é a fraqueza diante de uma natureza mais apaixonada e mais inteligente do que a sua. Nenhum assassinato, nenhuma traição são representados em Henrique VI, Parte 1 — supondo que a morte de Talbot não seja deliberada.

    A Parte 2 é, dramaticamente, a mais satisfatória das três. Ela mostra a queda de Gloster, e também a melhora na fortuna de York, bem como o declínio em seu caráter. Henrique VI, York, Gloster: cada qual tem algumas das qualidades necessárias para um bom rei. York tem a melhor reivindicação do título e a personalidade mais vigorosa. Ele combina o leão e a raposa.⁶ Henrique é fraco e desinteressado, um pelicano. Gloster combina o leão e o pelicano, não a raposa, e exibe sinais claros de deslealdade. Dois lados se formam: no primeiro, Gloster, Salisbury, York e Warwick; no segundo, Winchester, Buckingham, Somerset e Suffolk. York tem finalidades distintas em mente. Tanto Buckingham quanto Somerset esperam se livrar de Winchester e disputar entre si. O casamento de Henrique e Margarida de Anjou traça a linha. Agora a bruxaria é inglesa, não francesa. A duquesa de Gloster recorre à bruxaria para obter poder, e Suffolk e o cardeal lhe proporcionam um agent provocateur. As massas começam a dizer que o duque de York é o legítimo herdeiro da coroa. Um aprendiz acusa seu mestre de alta traição por fazer essa sugestão, dando a Gloster a oportunidade de concluir que Somerset, não York, deveria ser regente da França, assim alienando York. A duquesa de Gloster é pega praticando bruxaria, e o duque de Gloster é forçado a deixar o cargo de protetor, contra o bom juízo de Henrique. O episódio de Simpcox, um homem pobre cuja afirmação de que sua visão foi restaurada por milagre é facilmente denunciada, justapõe o uso de falsa magia, por causa da pobreza, ao uso de magia de verdade pela duquesa, para obter poder. York faz com que Salisbury e Warwick reconheçam seu direito de ser rei, e permite que Suffolk e os lancastrianos se livrem de Gloster, que é assassinado. Warwick fica chocado, e usa a oportunidade para se livrar de Suffolk, que é banido. O cardeal, que também é responsável pelo assassinato de Gloster, morre aterrorizado. Suffolk é executado por piratas. Ele mesmo tinha agido como bandido.

    York então incita a rebelião de Jack Cade,⁷ o que proporciona algumas das melhores cenas da trilogia. A sociedade termina no Lumpenproletariat, com Cade como líder. Ele ataca os advogados e propõe uma utopia comunista para congregar os que o apoiam:

    CADE: Sede bravos, portanto, que o vosso capitão é valente e vai proceder a uma reforma geral. De futuro, sete pães de meio pêni serão vendidos apenas por um pêni; as canecas de três aros passarão a conter dez, sendo considerado felonia beber cerveja fraca. Todo o reino ficará sendo propriedade comum e meu palafrém irá pastar em Cheapside. Quando eu for rei… Sim, porque hei de ser rei…

    TODOS: Deus guarde Vossa Majestade!

    CADE: Obrigado, bom povo!… não haverá necessidade de dinheiro; todo mundo há de comer e beber à minha custa. Farei que todos usem uniforme, para que se comportem como irmãos e me honrem como a seu senhor.

    DICK: A primeira coisa que devemos fazer é matar os magistrados.

    CADE: Está em meu programa. Pois não é lamentável que a pele de uma ovelha sirva para fabricar pergaminho e que esse pergaminho, uma vez garatujado, sirva para matar uma pessoa? Dizem que a abelha dá ferroadas, mas eu afirmo que é a cera da abelha que o faz, porque já me aconteceu selar alguma coisa uma só vez, sem nunca mais poder ser dono de mim mesmo.

    (Parte 2, IV.ii.69-90 [Dramas, p. 411])

    Um escrivão é trazido prisioneiro:

    SMITH: O escrivão de Chatham. Ele sabe ler, escrever e contar.

    CADE: Oh, monstro!

    SMITH: Surpreendemo-lo, quando preparava cópias para crianças.

    CADE: Miserável!

    SMITH: Traz no bolso um livro com letras encarnadas.

    CADE: Então é feiticeiro.

    DICK: Sim, e sabe também redigir obrigações e escrituras judiciais.

    CADE: O homem me dá pena. Por minha honra, parece honesto; só virá a morrer, se eu descobrir nele alguma culpa. Chega mais para cá, maroto, que eu vou examinar-te. Como te chamas?

    ESCRIVÃO: Emanuel.

    DICK: É o que se costuma escrever no início das mensagens. Mau sinal para vossa causa.

    CADE: Deixai o caso comigo. Costumas assinar teu nome, ou usas algum sinal particular, como o fazem as pessoas de bem?

    ESCRIVÃO: Graças a Deus, senhor, recebi educação suficiente para saber assinar meu nome.

    TODOS: Confessou! Confessou! Levai-o logo! É vilão e traidor.

    CADE: Levai-o logo, digo. Enforcai-o com a pena e o tinteiro pendurados ao pescoço.

    (Parte 2, iv.ii.92-117 [Dramas, p. 412])

    Pouco depois, um soldado é morto por chamar Cade pelo nome:

    CADE: O dono da cidade agora é Mortimer. E daqui, sentado no marco de Londres, eu determino e ordeno que, neste primeiro ano de nosso reinado, a fonte que mija não verta senão vinho por conta da cidade. Doravante será considerado traição darem-me outro nome além de lorde Mortimer.

    (Entra um soldado, a correr.)

    SOLDADO: Jack Cade! Jack Cade!

    CADE: Prostrai-o morto!

    (Matam-no.)

    (Parte 2, IV.vi.1-9 [Dramas, p. 415])

    A multidão, o «bando» [Dramas, p. 417, rubrica] de Cade, perde na sequência o poder de escolha, cedendo sucessivamente aos discursos de Clifford e Cade. Clifford desafia a multidão a declarar sua adesão ao heroico Henrique V e também ao rei atual, e todos respondem: «Deus proteja o soberano! Deus proteja o soberano!» (Parte 2, IV.viii.19 [Dramas, p. 417]). Cade responde: «Como! Buckingham e Clifford, sois assim tão valentes? E vós, miseráveis campônios, acreditais no que eles estão dizendo? Quereis ser enforcados com o perdão à volta do pescoço?». Todos então gritam: «Ficamos com Cade! Ficamos com Cade!» (20-23, 35 [p. 417]). Clifford outra vez invoca Henrique V e o medo que a multidão tem dos franceses, e todos gritam: «Viva Clifford! Viva Clifford! Seguiremos o rei e Clifford!» (56 [p. 418]). Cade foge e acaba morto por Alexandre Iden de Kent, um cidadão privado satisfeito que contrasta com ele e é aquilo que Henrique VI gostaria de ser caso não precisasse ser rei. No último ato da Parte 2, York volta, rebelando-se. Warwick e Salisbury se mostram traiçoeiros com Henry, segue-se a guerra civil e acontece a primeira batalha de santo Albano. O velho Clifford é morto e seu filho jura vingar seu sangue. No final da Parte 2, Eduardo e Ricardo, os filhos de York, aparecem pela primeira vez.

    A terceira parte de Henrique VI é difícil porque representa a desordem total e fica um pouco tediosa. Warwick se juntou a York, e a terceira parte abre com a sugestão de Henrique de que ele fique no trono até a morte e York o suceda. A rainha Margarida diz que não, e se prepara para a luta. Na batalha de Wakefield, Margarida vence, Clifford mata o jovem conde de Rutland, negando seu pedido para viver, e ele e Margarida zombam de York, por fim o apunhalando. Mais uma vitória lencastriana é informada, na segunda batalha de santo Albano. O jovem Clifford é morto.

    Faz-se um paralelo deliberado entre a terra amontoada pelas toupeiras sobre a qual York é obrigado a se postar em Wakefield antes de ser morto (Parte 2, I.iv.67-69 [Dramas, p. 439]) e a terra amontoada pelas toupeiras sobre a qual Henrique depois se senta em Towton enquanto observa a batalha flutuante e imagina como estaria contente se fosse um simples pastor:

    Quem me dera que morto eu já me achasse!

    Assim Deus o quisesse. Neste mundo

    tudo é aflição, tudo pesar profundo.

    Oh, Senhor, quero crer que fora a vida

    muito para invejar, se eu mais não fosse

    do que um simples pastor e me sentasse,

    em cômoros, tal como o faço agora,

    a observar o relógio atentamente

    e ver como os minutos se sucedem,

    quantos são necessários para uma hora,

    quantas horas se somam num só dia,

    quantos dias um ano inteiro fazem,

    quantos anos a vida humana alcança.

    (Parte 3, II.v.19-20 [Dramas, p. 446])

    Logo depois do monólogo de Henrique, «Entra um filho que matou o pai, arrastando o corpo» e depois «Entra um pai que matou o filho, com o corpo nos braços» (Parte 3, II.v.54, 78 [Dramas, pp. 447, 448]). Shakespeare se baseia nessas técnicas ritualísticas no começo da carreira, abandona-as no meio e as retoma nas últimas peças.

    Henrique vai para a Escócia, Eduardo manda Warwick cortejar a filha da França, e Margarida faz seu próprio apelo à França. Nesse ínterim, Henrique é capturado, e Eduardo, que foi proclamado rei, corteja lady Grey, uma viúva, e se casa com ela — e aqui se trata de uma demonstração de luxúria, não de fraqueza. Warwick muda de lado, surpreende Eduardo e remove sua coroa. Ricardo arquiteta a fuga de Eduardo. Clarence passa para o lado de Warwick. Eduardo surpreende Henrique. Na batalha de Barnet, como Clarence mudou de lado, Warwick é derrotado e morto. A rainha Margarida e o jovem príncipe Eduardo são capturados, e o rei Eduardo, Clarence e Ricardo apunhalam e matam o príncipe na frente de Margarida. Ricardo também quer matar Margarida, mas é detido. No entanto, ele mata Henrique. «Fui também fadado», diz ele, «para fazer o que te faço agora.» Ele exulta enquanto Henrique sangra: «Como! O sangue ambicioso dos Lencastres/ cai para o chão? Pensei que se elevasse» (Parte 3, V.vi.57, 61-62 [Dramas, p. 477]). No mesmo monólogo, ele também diz que «não tenho/ piedade e desconheço o amor e o medo», e proclama que

    Não tenho irmãos; de irmão sou diferente.

    Esta palavra «Amor», que os barbas-brancas

    chamam divina, pode ter guarida

    nas pessoas que em tudo se assemelham,

    mas não em mim, que eu sou sozinho: eu próprio.

    (Parte 3, V.vi.67, 80-83 [Dramas, p. 478])

    Ricardo também tem um monólogo bem mais longo na cena anterior, em que Eduardo corteja lady Grey, na qual matuta seu futuro. É o primeiro grande monólogo de Shakespeare. Depois de relacionar os obstáculos entre ele e o trono, Ricardo diz:

    Bem: concordemos que não há coroa

    para Ricardo. Então, que outra ventura

    poderá conceder-lhe o mundo todo?

    Transformarei em céu o belo colo

    de uma mulher, com ricos ornamentos

    o corpo cobrirei, e com palavras

    e olhares renderei damas galantes.

    Oh, pensamentos miseráveis! Fora

    mais fácil conquistar vinte coroas.

    O amor me repudiou ainda no ventre

    de minha mãe. De medo que eu ficasse

    sob o seu regimento delicado,

    peitou a natureza criminosa

    para que me deixasse o braço seco

    como galho sem seiva, e uma montanha

    invejosa no dorso me pusesse,

    de onde a deformidade zomba à grande

    do meu corpo, estas pernas me deixasse

    desiguais, afastando-me de toda

    proporção, como ainda informe filho

    de urso, que à mãe em nada se parece.

    Ele conclui o monólogo afirmando seu desejo da coroa:

    […] e eu me vejo qual pessoa

    que num bosque de espinhos se encontrasse,

    quebrando, a um tempo, espinhos, e por eles

    sendo quebrado, a procurar caminho,

    mas dele cada vez mais se afastando,

    sem saber como possa obter ar puro,

    sempre enleado a lutar em desespero:

    desta arte eu me atormento, só com o fito

    de apanhar a coroa da Inglaterra.

    Hei de livrar-me, alfim, deste martírio,

    muito embora precise abrir caminho

    com um machado sangrento. Sim, que eu posso

    vir a matar, matar, enquanto rio,

    gritar «Viva!» ao que o peito me compunge,

    banhar o rosto com fingidas lágrimas

    e adotar aparência condizente

    com qualquer situação. Mais marinheiros

    afogarei no mar do que a sereia;

    sem vida vou deixar muito mais gente

    do que me olhar, do que o próprio basilisco;

    mostrarei a eloquência de Nestor;

    como Ulisses, serei astuto e fino;

    qual Sinão, ganharei mais uma Troia.

    Ao camaleão eu posso emprestar cores,

    muito mais que Proteu mudar de formas,

    ao próprio Maquiavel servir de mestre.

    Posso tudo isso e não consigo o trono?

    Ora, hão de ver que dele eu vou ser dono.

    (Parte 3, III.ii.146-62 [Dramas, p. 455])

    Ricardo é o primeiro grande personagem de Shakespeare.

    D. H. Lawrence diz,⁹ num de seus poemas, que fica maravilhado quando lê Shakespeare, que «gente tão banal» possa falar «com palavras tão lindas!».

    Lear, velho besta, você até pensa

    que as filhas deviam ter feito pior

    com aquele gralha, aquele bocó.

    E Hamlet, tão chato, a não mais poder,

    malvado e não me toques, sempre a verter

    as falas mais lindas sobre o alheio foder!

    Macbeth e senhora deviam ir lavar roupa:

    que ambição suburbana, e que carnaval

    ao matar Duncan com o punhal!

    Essa gente de Shakespeare, que tacanha, que horror!

    Mas as falas, tão bonitas! Que nem luz de neon.¹⁰

    A visão de Lawrence dos personagens de Shakespeare não me parece inteiramente injusta, mas também não é muito satisfatória. Afinal, não somos todos filhos da puta? Os poemas de Kipling mostram os personagens de Shakespeare por toda parte, em verso sáfico.


    1 Esta aula foi reconstituída a partir das anotações de Alan Ansen. No começo da aula, Auden anunciou que haveria uma hora extra de aulas às 14h30 nos sábados. Ansen não fez nenhuma anotação na aula de abertura do curso, que aconteceu em 2 de outubro de 1946.

    2 Citação ligeiramente errada de uma passagem que critica Arnold Bennett, em Henry James, «The New Novel». Auden tinha citado a frase em 1933 numa resenha de Violet Clifton, The Book of Talbot, e usou-a no primeiro verso de um de seus primeiros poemas, «O Love, the interest itself in thoughtless Heaven» [Oh, Amor, o interesse no Céu irrefletido] (1932). Veja Edward Mendelson, Early Auden (Nova York: Viking, 1981), pp. 163-4, e Fuller, Auden: A Commentary, op. cit., p. 147.

    3 Org. L. B. Campbell (Cambridge: Cambridge University Press, 1938), p. 145. Ansen observa que Auden mencionou quatro edições diferentes: 1555, 1559, 1563 e 1587.

    4 Forza e Froda são os dois modos do pecado, que em última instância derivam de Aristóteles, no esquema ético do Inferno na Divina comédia de Dante.

    5 Auden provavelmente se refere a The Law of Nature, de Fortescue, traduzido do latim por Chichester Fortescue, em The Works of Sir John Fortescue (Londres: Chiswick Press, 1869, 2 vols.), vol. 1, pp. 185-372.

    6 Maquiavel personificava a «força» e a «fraude» nas figuras do leão e da raposa. The Lion and the Fox é o título de um livro de Wyndham Lewis (Londres: Grant Richards, 1927) que Auden cita em sua aula de conclusão.

    7 Ansen registra que «Auden cita com prazer as falas comunistas e contra advogados de Cade».

    8 Apesar de o texto de Auden remeter a II.v, na tradução de CAN o texto se encontra em II.iv. A referência permanecerá nas citações subsequentes. [N. T.]

    9 D. H. Lawrence, «When I read Shakespeare», em Pansies (Londres: Martin Secker, 1930), citado em dh, pp. 176-7.

    10 No original: «Lear, the old buffer, you wonder his daughters/ didn’t treat him rougher,/ the old chough, the old chuffer.// And Hamlet, how boring, how boring to live with,/ so mean and self-conscious, blowing and snoring/ his wonderful speeches, full of other folk’s whoring!// And Macbeth and his Lady, who should have been choring,/ such suburban ambition, so messily goring/ old Duncan with Daggers!// How boring, how small Shakespeare’s people are!/ Yet the language so lovely! like the dyes from gas-tar». [N. T.]

    Ricardo III

    ¹

    [16 de outubro de 1946]

    Henrique VI é uma história geral. Ricardo III concentra-se num personagem individual: o personagem de um vilão. Há uma diferença entre um vilão e alguém que simplesmente comete um crime. O vilão é uma pessoa extremamente consciente e comete um crime em sã consciência, apenas pelo crime. Aarão, em Tito Andrônico, é um dos primeiros exemplos do vilão em Shakespeare. Barrabás, em O judeu de Malta, outro vilão cruel, é um exemplo em Marlowe.² Na aparência, esses personagens — um judeu, um mouro, um corcunda — estão todos fora da norma. Barrabás anuncia:

    Quanto a mim, saio à noite pela rua

    a matar os doentes sob os muros:

    às vezes vou envenenar um poço.³

    Aarão, depois de ser capturado, lamenta não ter feito «dez mil» outros males:

    Agora mesmo amaldiçoo o dia —

    e creio que bem poucos caem dentro

    do círculo maldito — em que eu deixasse

    de praticar qualquer notória infâmia,

    como seja: tirar a alguém a vida,

    ou, quando menos, maquinar-lhe a morte,

    violar uma donzela ou dar a ideia

    para tal fim, sob falso juramento

    contra algum inocente fazer carga,

    entre amigos semear a odiosidade,

    fazer que do alto caia e se arrebente

    o rebanho do pobre, às altas horas

    da noite incendiar medas e celeiros,

    para aos donos gritar que com suas lágrimas

    as chamas apagassem.

    (V.i.125-35 [Tragédias, pp. 110-1])

    E Ricardo se gaba, como vimos, em seu longo monólogo na terceira parte de Henrique VI, de ser capaz de «matar, matar, enquanto rio»; de que «mais marinheiros/ afogarei no mar do que a sereia»; de que «sem vida vou deixar muito mais gente/ do que me olhar, do que o próprio basilisco», e «ao próprio Maquiavel servir de mestre» (III.ii.182, 186-187 [Dramas, p. 455]).

    O monólogo de abertura de Ricardo em Ricardo III é semelhante ao anterior, ainda que haja uma ligeira diferença de tom. Dizendo ser «cunhado por maneira tão grosseira», e «carecente de dotes insinuantes», ele anuncia que não foi feito para «declarar-me/ a um espelho amoroso»; e

    não conheço outra maneira de passar o tempo,

    a não ser contemplando a própria sombra,

    quando o sol a projeta, ou comentando

    minha deformidade. Se não posso

    tornar-me o amante que divirta os dias

    eloquentes e alegres, determino

    conduzir-me qual biltre rematado

    e odiar os vãos prazeres de nossa época.

    (I.i.14-16, 25-31 [Dramas, p. 485])

    O monólogo de Ricardo III não é diferente do discurso de Adolf Hitler a seu Estado-maior em 23 de agosto de 1939,⁴ em sua total ausência de autoengano. A ausência de autoengano impressiona porque a maioria de nós inventa razões plausíveis para fazer algo que sabemos ser errado. Milton descreve essa racionalização no Paraíso perdido em Eva, tanto antes de ela comer o fruto da árvore proibida quanto depois, quando ela justifica induzir Adão a comer:

    Eu o amo tanto que com ele as mortes todas

    eu viveria, sem ele vida nenhuma.

    (PL.IX.832-33)

    Eva faz essa profissão de amor por Adão no instante em que, efetivamente, planeja matá-lo.

    Os vilões são especialmente interessantes para os artistas, e há mais exemplos deles na arte do que na vida. Como a linguagem é o meio da literatura, as pessoas utilizáveis nas obras literárias têm de ser pessoas conscientes. Elas pertencem a um de dois tipos: (1) pessoas que não são realmente conscientes, mas que são assim apresentadas; e (2) pessoas com boa formação, pelas quais os artistas têm uma inclinação natural. É por isso que a maioria das obras sobre camponeses é entediante — obras literárias consistem em grande parte do que dizem outras pessoas. Os filmes se dão melhor com gente menos articulada. O drama acentua o problema literário: os personagens nas peças precisam ser mais explícitos verbalmente do que nos romances ou na vida, e, se racionalizam, confundem a plateia. O drama elisabetano, além disso, tem a convenção de os personagens saírem de si mesmos e tornarem-se um coro. Isso torna ainda mais importantes os personagens altamente conscientes. Ricardo sempre exibe uma consciência de seu fim último enquanto se livra de seus inimigos: «meu pensamento vai mais longe./ A coroa me prende, não Eduardo» (Henrique VI, Parte 3, IV.i.125-26, [Dramas, p. 462]). Os vilões, por serem personagens maus interessantes, valem mais do que pessoas simples.

    Olhemos agora o monólogo de Ricardo em Ricardo III em que ele acorda no Campo de Bosworth, depois de sonhar com os fantasmas das pessoas que matou:

    Medo de quê? Não há ninguém por perto.

    Ricardo ama Ricardo; eu sou eu mesmo.

    Haverá aqui dentro um criminoso?

    Não… Sim: eu próprio. Então, foge depressa.

    Mas, fugir de mim mesmo? Justifica-se:

    poderia vingar-me. Como! Eu próprio

    de mim tomar vingança? Amo-me muito.

    Por quê? Por algum bem que eu me fizesse?

    Oh, não! Antes me odeio, por odiosas

    ações que pratiquei. Sou um miserável!

    Minto: não o sou. Não digas, tolo, coisas

    feias de ti! Oh, tolo, não te adules!

    De mil línguas distintas é dotada

    minha consciência; uma por uma, as línguas,

    conta uma história à parte, e todas elas

    me chamam miserável. O perjúrio

    em seu mais alto grau, crimes horrendos

    em seu mais alto grau, todos os crimes

    nos mais variados graus, me gritam do alto

    do tribunal: Culpado! Criminoso!

    Desespero; criatura alguma me ama.

    Se eu morrer, nenhuma alma há de chorar-me.

    Aliás, por que o fariam, se eu não tenho

    piedade de mim próprio?

    (V.iii.183-204 [Dramas, p. 539])

    Esse monólogo demanda uma glosa. Existem dois sentidos diferentes do uso contínuo que Ricardo faz dos termos «eu» e «eu/mim mesmo», e uma olhada em Peer Gynt, de Ibsen,⁵ pode ajudar a distingui-los. Quando Peer está no reino dos trolls, querendo casar-se com a filha do rei dos trolls, o rei lhe diz que entre os homens costuma-se dizer «Homem, sê fiel a ti mesmo!», mas que entre os trolls o ditado é «Troll, a ti mesmo sê — bastante!». Os trolls amarram uma cauda em Peer, servem-lhe comidas estranhas e apresentam-lhe um espetáculo de danças feias. Quando Peer reage dizendo a verdade a respeito do que vê, apesar de suas melhores intenções, o rei dos trolls tenta convencê-lo a cortar o olho para tornar-se como os trolls e «curar essa natureza humana problemática». Peer se recusa. Ele só quer fazer algo que possa desfazer. A verdade sempre se mete.

    Existem dois polos do eu: o eu essencial e o eu existencial. Hunter Guthrie⁶ observa que, ao falar da essência de uma coisa, ele refere sua natureza. O eu essencial tem uma responsabilidade pessoal para com seu nome e deve viver à altura dele. O eu essencial é sempre potencial, um eu no processo de realização. É também um eu que, por ser baseado numa natureza humana comum, é central para a comunicação, e é mutuamente compreensível e universal. A existência não é necessária para o eu essencial — os personagens dos livros têm eus essenciais, nossos amigos mortos têm eus essenciais. É uma característica da essência querer vir ao ser, à existência, e essa característica é exibida na ansiedade do fraco em tornar-se forte, do potencial em tornar-se real. O eu essencial quer ser autossuficiente — internamente, pela compaixão, externamente, pelos outros eus. Seu método para lidar com ameaças externas é absorver, aniquilar ou fugir. Ele deseja a autorrealização. Assim como a fome está para a comida, e o desejo de conhecimento está para o conhecimento, assim o eu essencial está para o potencial que deseja realizar. Ele quer admiração e teme um objeto externo mais forte. Os ideais do eu essencial também são relativos. Para os gregos, os ideais do eu eram força, beleza e estar livre da tristeza. O propósito das práticas religiosas, para o eu essencial, é impedir o interesse hostil de objetos externos mais

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