Partituras
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Poesia para você
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Partituras - Cassiano Rodka
Ao meu quarteto sinfônico,
Antonio, Beatriz, Clarice e Camila.
Invertido
Me agrada o invertido. De pernas pro ar, virado ao avesso, do lado errado. A estante arrumada me fere os olhos. Prefiro as lacunas de livros emprestados, perdidos, fora do lugar. (Qual o lugar do livro?) Gosto das frases frouxas, ditas sem jeito. Dos tropeços das línguas dos enamorados. (Os apaixonados são todos gagos.) O som de um acorde dissonante. Uma nota errada no piano. (A nota nunca é errada, errado é o pianista.) O embaraço de quem esquece a letra no palco. Mas enrola e reinventa a canção. (Improviso é um erro metido a besta.) A criança que (sabiamente) desenha uma árvore azul e um céu verde. (Daltonismo opcional.)
Gosto de entortar as coisas, deformá-las, vê-las refeitas. Me incomoda o uniforme. (Quatro casais em uma mesa quadrada.) Me agrada o inusitado. (Cinco texugos em uma mesa redonda.) Faz bem fugir às regras de vez em quando. Só é lei porque alguém obedece. (Bula de remédio declamada é poema.) Gosto das cicatrizes, dos cortes, dos arranhões na borda da mesa. (Resultados imperfeitos de ações mal calculadas.) A camiseta manchada, o bolso furado, o botão faltando. (Pequenas lembranças da existência do inesperado.) Definição perfeita da imperfeição humana. O paralelepípedo solto na calçada, o texto inacabad
Voo
Ocomandante Nélson saudou a tripulação e agradeceu a preferência pela empresa. Sérgio olhou pela janela e viu o que acreditava ser a sua cidade natal. O comandante logo confirmou, era Porto Esperança à direita do avião, com 28ºC e a 1.800 metros de distância. Haveria um sorteio de um kit de alguma marca de refrigerante para quatro poltronas. A sua era 13F, péssimo número, jamais ganharia algo. Tornou a espiar pela janela. Porto Esperança. A essa distância, tão pequenina e inofensiva. Observou as várias linhas que formavam o desenho impreciso da cidade. As ruas por onde andava, os prédios, as luzes, uma composição tão bonita e silenciosa quando vista lá de cima. Abriu a mão direita e observou sua palma. A cidade inteira poderia caber ali. Imaginou os carros passando pelas linhas de sua mão e as pessoas correndo por todos os lados. Cada uma com sua pressa particular. Imaginou os edifícios crescendo de seus poros e podia ver as pontes e os viadutos se formando em sua pele. Viu o palácio do governo quase ao centro, bem próximo à igreja da Glória. Mais adiante, via a favela do Cachorro Degolado subindo morro acima até a ponta do dedão. Sua casa ficava exatamente onde antes havia uma pinta. Percebeu então que as linhas de sua palma coincidiam totalmente com as de sua cidade e que ele a tinha de fato na mão. Assustou-se com a coincidência e olhou para os lados, desconfiado de que alguém mais pudesse ter percebido tal coisa. O senhor da poltrona E folheava uma revista enquanto a moça sentada na D analisava a aeromoça dos pés à cabeça. Riu de si mesmo. Pensou no absurdo daquela situação. E riu mais uma vez, vagamente, incerto da graça. Tornou a olhar. Na sua palma, a cidade. Fechou a mão.
O comandante Nélson pedia para que todos permanecessem sentados e aguardassem o sinal luminoso para desafivelarem seus cintos. Poucos, além dele, obedeceram. Todos pareciam ter uma enorme ânsia em sair do Boeing 747. Cada um com sua pressa particular
, pensou ele. Ficou um tempo fitando seu punho cerrado, sem coragem para abri-lo. Por entre seus dedos, enxergava alguns fachos de luz. Olhou pela janela e observou os passageiros saindo. Depois do último degrau da escada, via cada pé tocar o solo e sentia uma coceira na mão. Seguia-os com os olhos e sentia a comichão se espalhando levemente pelo mapa de sua pele. Assustou-se com o toque da aeromoça em seu ombro. Levantou-se com hesitação e pegou sua mala com a mão esquerda. A direita, mantinha firmemente fechada. Desceu a escada e fincou o pé na palma do chão. Olhou para o horizonte