O Sótão
De Artur Amorim
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O Eremita e a Academia
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Edição: Robson Gonçalves
Primeira Edição
Edição do Autor
São Paulo, 2019
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Capa: Osman Hamdi Bey. Teólogo muçulmano com o Corão, 1902.
Imagem de domínio público.
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Dedicatória: A Carl Sagan, velha fonte de inspiração para o estudo da Ciência
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O Sótão
Quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro, desperta
.
Carl Gustav Jung
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Artur Amorim
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O Sótão
Conteúdo
Prefácio do autor ................................................................. 11
Nota do editor ...................................................................... 17
1. O chicote ........................................................................ 23
2. Adentrando o sótão .................................................... 35
3. Rumo a Muhafez ......................................................... 49
4. O primo
reitor ........................................................... 61
5. O grande desafio ......................................................... 77
6. A caminho do sarau ................................................... 89
7. A primeira aula .......................................................... 103
8. Zahra e Sulah ............................................................ 115
9. O poder e o medo ..................................................... 125
10. Liberdade e preconceito ......................................... 137
11. Diante do numinoso ................................................. 147
12. No mercado ................................................................ 159
13. A leveza do átomo .................................................... 167
14. O mestre e o beija-flor............................................ 179
15. A luz e o nada ............................................................ 189
16. Divagações .................................................................. 201
17. Silêncio, silêncio....................................................... 207
18. Quem olha para dentro, desperta ....................... 221
Posfácio ............................................................................... 231
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Artur Amorim
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O Sótão
Prefácio do autor
Amigos leitores.
A arte é uma manifestação de resistência, é um canal capaz de exprimir como poucos o grito interno da alma que, muitas vezes, é um grito reprimido. Mas ela também é uma válvula de escape para muita gente, uma forma de aliviar dores que por vezes também ficam represadas.
Por mais de um motivo, porém, muitas pessoas nem se dão conta de que a arte que produzem é um fenômeno terapêutico. Como professor de escola pública da periferia de São Paulo, frequentemente me defronto com a produção cultural de muitos jovens que expressam, por vezes de maneira inconsciente, seus desejos, esperanças e até mesmo sua revolta social. Eles encontram no funk, no rap, na poesia marginal e até mesmo nos grafites
uma
maneira
de
se
manifestarem
e,
frequentemente sem notar, inspiram outros tantos a produzirem suas próprias manifestações artísticas ao 11
Artur Amorim
mesmo tempo em que ajudam a atenorar a violência social nessas regiões tão carentes.
No meu caso, como professor, inspirado por esse fenômeno social, escolhi fazer arte pondo a mão na caneta e escrevendo. E posso dizer com convicção que o resultado dessa experiência é reconfortante; usar da criatividade e externar os sentimentos no papel é prazeroso. O processo é emancipador; entretanto, como tudo nesse mundo, também é fugaz. A sensação de saciedade se anuvia e o sabor amargo da insatisfação volta a se instalar rapidamente no fundo da garganta.
Mal terminei meu livro anterior, Ánima Mea, e logo se produziu uma sensação de que algo estava incompleto. E a sensação de incompletude se acentuou com a opinião e as críticas de alguns leitores que clamavam por uma continuação da história.
Escrever livros é um processo que, por si próprio, cria vida, se autonomiza. De fato, damos à luz criaturas que por vezes se tornam indomáveis. Quando escrevi Ánima Mea, não pensava em uma série ou continuação. Escrevi aquele texto como um exercício metódico de autoconhecimento; não imaginei em nenhum momento um desdobramento da história. Talvez o leitor não saiba, mas escrever demanda energia e os pensamentos nos consomem, focados como ficam no processo criativo da narrativa. É algo desgastante, um delírio e uma convulsão da alma.
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O Sótão
Passado o processo de criação daquele livro, voltei à minha velha rotina de leitura e passei por um processo de quarentena, recolhido. Conscientemente ou não, me dediquei à busca pela assimilação de mais informação, matéria-prima para novas ondas de criação.
Mas, até que um novo ciclo começasse, foram necessárias várias circunstâncias e conjunturas para que as ideias pudessem desabrochar. Uma delas – na verdade, um dos alicerces do novo texto – exigiu que me libertasse de laços profundos e antigos que me atavam ao movimento espírita. Esse foi um passo fundamental pois, essencialmente, este novo livro é a representação simbólica de minha ruptura com o Espiritismo.
O apelo inicial do novo processo criativo se fez numa conversa com o velho amigo, editor deste livro. De uma maneira metafórica, ele pediu que eu escrevesse um outro volume; disse que eu já tinha visitado os porões da minha alma e insistiu que era hora de uma nova jornada, que era necessário explorar o meu sótão.
Concordei com o velho amigo de imediato, mas, ao mesmo tempo, em meu íntimo, surgiram várias questões; a principal era simplesmente: O que escrever?
Como explorar o sótão de minha própria psique? Que histórias contar de um lugar por onde eu mesmo não sabia se tinha andado a ponto de saber como o descrever?
Por algum tempo, refleti continuamente sobre aquele apelo, mas estava em período de repouso criativo para me refazer do meu último livro. Relaxei e decidi dar 13
Artur Amorim
tempo ao tempo, buscando não cair nas teias da ansiedade. Reconhecia minha própria necessidade de escrever mais um livro, porém me faltava um mote.
Nesse meio tempo, fui assimilando as reações de meus leitores sobre o Ánima Mea e senti que, se eu escrevesse mais um livro, ele deveria ter outro pano de fundo e a história deveria se passar em um contexto totalmente diverso.
Dia após dia, crescia em meu íntimo o desejo de entrar novamente em contato com minha ánima
, o aspecto feminino da personalidade masculina segundo Jung. Sentia que algo havia faltado. O paradoxo estava formado com clareza diante de mim: Como escrever algo em contexto diferente e, ao mesmo tempo, conversar com as amigas papisas que povoam meu inconsciente? Não me perturbei e deixei que o próprio inconsciente resolvesse seus dilemas, mantendo-me aberto às novas ideias que ele me sugerisse.
Foram necessários quatro meses até o estopim criativo. O pequeno-grande mote apareceu por ocasião de um trabalho pedagógico em minha escola, desencadeando o novo ciclo de escrita. Para mim, a nova tarefa parecia como o exercício de juntar os bloquinhos e pinos de montar não utilizados no livro anterior. Costumo dizer que é um processo quântico
de criação, uma ordem que emerge do caos aparente: Pego blocos de conhecimento e junto porções de minhas experiências de cinquenta anos vividos, reúno tudo numa história produzida pelo meu 14
O Sótão
inconsciente, e assim vou seguindo na exploração do meu sótão.
Ao compor a história, não me deixei restringir pela racionalidade e me entreguei à criação com liberdade; o grande objetivo era enfrentar a tarefa de explorar novos recantos da alma, navegar livremente pela imaginação criativa. O resultado dessa aventura, apresento a seguir, neste novo livro. Ele é a resposta a apelos de muitos amigos leitores. Visto de forma abrangente, consegui fazer dele uma continuação do anterior, ainda que em contexto narrativo bem diverso, reflexo da exploração do meu sótão a partir de uma grande reorientação espiritual.
Concluída a tarefa, confesso que a sensação que me envolve é de libertação, de ter conseguido lançar um novo olhar sobre o mundo e de ter reconstruído meu universo interior em meio a um cotidiano totalmente caótico e pós-moderno. Estou convencido de que a maneira de resistir a isso e manter a lucidez, é criar e buscar a conexão com outras esferas, assim como os antigos fizeram em seu mundo de natureza totalmente inóspita e sem o amparo da ciência para explicar as razões do que se passava ao seu redor.
Boa leitura.
São Paulo, 28 de novembro de 2019.
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Artur Amorim
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O Sótão
Nota do editor
O papel do editor pode parecer fácil em um primeiro momento. Moldar, corrigir, conciliar, todas tarefas assessórias. Afinal, o processo criativo cabe ao autor. Em certa medida, isso é uma grande verdade. Mas, tanto nesta obra, O Sótão, quanto na anterior, Ánima Mea, não foi bem assim.
Depois de mais de quatro décadas de amizade sólida e contínua, meu amigo Artur Amorim me lançou o maior de todos os desafios que já tive com a escrita. Editar seus livros tem sido para mim muito mais do que o polimento de um texto ainda não acabado. Eu fui convidado a viajar com ele por províncias pouco conhecidas de seu próprio inconsciente. O que recebi foi uma missão, não uma tarefa.
Nesse sentido, vendo avançar seu processo criativo capítulo a capítulo em uma velocidade alucinante, confesso que fui chamado a refletir também sobre mim mesmo, pois muitas das questões e dos dramas psíquicos 17
Artur Amorim
que ele expõe em seu texto, longe de serem algo estritamente pessoal, são comuns a todos nós.
Ao mesmo tempo, em diversos momentos da narrativa, reconhecemos personagens que encontraram sua inspiração na vida real. E aqui eu não falo apenas das grandes mulheres que ele homenageou, sobretudo no livro anterior. Há figuras que fizeram parte de sua própria história de vida e que, agora, encontraram lugar nesses seus escritos.
Em diversos momentos do meu trabalho, eu me perguntava: Como ele dará forma a um vai-e-vem tão intenso entre ideias, sentimentos, convicções, crenças e referências a aspectos e lances concretos de sua caminhada pessoal? O meio óbvio e, ainda assim, cheio de criatividade, foi o onírico. O sonho dentro de um sonho, forma que deu a ele grande liberdade e, ao mesmo tempo, restringiu ao mínimo as imagens que o inconsciente lançou para o mundo em uma verdadeira erupção criadora.
Mais de uma vez, eu assinalei a intensidade e a rapidez desse processo criativo. Diante de mim, a cada capítulo salvo na nuvem, ressurgia a certeza de que nosso inconsciente está repleto de respostas à espera de que nosso ego faça as perguntas que ele mesmo teme fazer.
Essa é uma crença antiga minha. Sempre fui um junguiano, mesmo sem saber. E, se de minha parte, tenho mergulhado cada dia mais na obra do mestre da Psicologia Analítica, em meu amigo Artur pude ver a comprovação da força, da riqueza e da generosidade do inconsciente quando liberto 18
O Sótão
das nossas amarras mais pesadas. Nesses dois livros, o autor avançou imensamente em seu processo de individuação. Afastou o ego e suas criações impermanentes e o ofereceu em sacrifício ao self, nosso eu autêntico, como diz ele mesmo, nosso ser potencial, escondido nas dobras da psique.
Dos porões em Ánima Mea até O Sótão, esses dois livros – certamente os primeiros de uma série cujo fim eu não consigo nem imaginar – nos oferecem a oportunidade de entrar em contato com uma visão de mundo original, tolerante, universalista e, em grande medida, iconoclasta. Artur certamente tem suas referências, mas condena à morte em seu mundo interior todos os gurus e todos os sectarismos. A leitura ao mesmo tempo flui e incomoda exatamente por isso. Um capítulo concluído pede que se leia o próximo e, quando nos damos conta, estamos caminhando juntamente com o Eremita em uma viagem que não é nem para o mosteiro, nem para a Academia de Muhafez, pois o percurso é a representação simbólica da Grande Jornada para dentro de nós mesmos, com a coragem de fazer as perguntas que o ego quer calar, mas para as quais o self já tem as respostas.
Que venham outras dessas viagens, pois o objetivo da caminhada é trilhar o próprio caminho, já que a meta ainda permanece por de trás dos horizontes de nosso saber tão estreito.
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Gabriel Garcia Molina. Old Keys, s.d.
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1. O chicote
noite lá fora, noite fria. A chuva e a ventania fazem balançar o pequeno carrilhão pendurado na É varanda. Seus canudos metálicos balançam e gotejam, espalhando o som característico noite a fora em tom nervoso, agitado, frenético. Dentro de casa também faz frio e o ar é úmido. De meu pequeno espaço de trabalho na cabeceira da mesa de jantar, observo a chuva cair lá fora. Sentado, cotovelos sobre a mesa, os punhos apoiam e apertam o rosto. Diante de mim,