De Memórias nos Fazemos
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Sobre este e-book
Em novembro de 2022, José Saramago, o único Nobel de língua portuguesa, completaria cem anos. Na mesma data, a editora Rua do Sabão publicou "De Memórias nos Fazemos", de Violante Saramago Matos.
Composto com delicadeza, o livro consiste em narrativas da única filha de José Saramago, que lembra desde episódios da infância até o dia em que viajou com o pai e Pilar del Rio para Estocolmo a fim de acompanhar a entrega do prêmio máximo da literatura. Fala da vez em que contou ao pai estar apaixonada pelo namorado, e o quanto gostava da barba de Che Guevara dele. O pai perguntou se gostaria do rapaz também sem a barba. Conta dos cachorros que tiveram, e de que forma alguns apareceram nas obras do pai. Relembra quando esteve presa, em Caxias, por protestar contra as guerras coloniais, e lá recebia as visitas de um preocupado pai.
O livro ainda contém material inédito: bilhetes, páginas de fax assinadas, fotos e e-mails trocados por pai e filha. Alguns trechos trazem comentários do próprio José Saramago sobre o modo como a filha escreve, em um precioso compêndio de dicas que nos permite visualizar o modo como o Saramago pensava a literatura.
Já li. Só duas palavras: muito bem. E algumas mais: a franqueza, a clareza, aquela força que nos permite fugir da obsessão do eu. Só terás que cuidar um pouco mais do estilo, que, aliás, tem coisas interessantes. Em suma, estou contente.
Beijo grande.
Pai
Trata-se de palavras, de expressões que a um ouvido sensível aparecem como pequenas agressões ao contexto. Tens de ser tu a reconhecê-las, não eu a apontá-las. Sabes que não gosto nada de dar sentenças. E até pode ser que eu não tenha razão. Em todo o caso, se, numa leitura mais atenta ao como se diz do que ao que se diz, não sentires que tropeçaste, então deixa estar o que está.
Beijo.
Pai
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De Memórias nos Fazemos - Violante Saramago Matos
Ao meu pai, aqui transcrevendo o que antes escrevi.
ESCADA
Depressa ou devagar
sós ou acompanhados
a apoiar uns ou a apoiar-se neles.
Lanço após lanço,
sem empurrar na subida,
procurando com esforço
o nosso,
chegar lá
a um novo patamar da escada
– É assim a vida.
Parar quando é preciso,
recuar quando se impõe.
Vencer obstáculos,
evitar degraus partidos
entre patamares.
Querer chegar é o que nos alimenta
e nos mantém,
mesmo que haja que ir buscar
quem ficou para trás
– É assim a vida.
Até que os degraus faltem
e não haja mais acima.
– Foi assim a vida.
Que tenha sido vida e não um faz de conta!
(Escritas da Pandemia com caneta e pincel,
Violante Saramago Matos)
NOTA DE ABERTURA
Tenho ocupado uma parte significativa destes últimos tempos a reler alguns livros do meu pai, como se tivesse sido precisa esta releitura para que umas entrelinhas ficassem mais preenchidas e certas incompreensões resolvidas.
Talvez porque o próprio tempo que temos vivido o tenha proporcionado, a presença dele tem sido mais constante em citações, reposição de entrevistas antigas, lives de debate e seminários. Li ou vi alguns. Relembrei outras. Recordei conversas, nossas e de outros. Recuei anos.
Sem dar por isso, nos dois curtos parágrafos que iniciam esta nota, situei-me nestes tempos
, estes que temos sido obrigados a viver. E para que não nos percamos neles, nos tempos, na ansiedade que provocam, numa incerteza que inquieta, talvez o melhor seja aproveitar o tempo que nos sobra de coisas que não podemos fazer, para pensar em tanto a que nem sempre damos a devida atenção.
Queremos que a vida recupere o seu ritmo. Mas precisamos de saber que, dessa recuperação, na sua forma e conteúdo, da sua essência ou da ausência dela depende, mais de que o ritmo, a própria vida. Compreender quem temos sido e escolher como queremos ser pode tornar-se num primeiro pequeno passo para sermos melhor.
Mais do que escritor considerado, mais do que inovador de uma forma de escrita em que lemos como se o ouvíssemos, José Saramago foi um pensador, um cidadão comprometido. Alguém que, pensando, não escondia o que pensava, concordando ou discordando, não se fechava no silêncio. Alguém para quem o Nobel, mais que reconhecimento, foi responsabilidade cívica, sem outras culpas que não a de virar pedras... de onde podem sair escondidos monstros.
Este ano, 2022, fará cem anos que em novembro nasceu um menino em casa pobre, na Azinhaga. Foi a 16, mas como houve um atraso no registo, e para não pagar uma multa para que não havia dinheiro, foi declarado nascituro no dia 18. Mas 16 de novembro ficou! E por uma estranha coincidência, foi no dia 18 que deixou de estar.
Tinha todas as condições para não ser quem acabou por ser. Mas foi! Foi na vida, no modo, no tempo, nas convicções, na literatura, no mundo. E foi meu pai, a quem fui buscar muitas das memórias que guardo, de livros que me acompanham e sobre os quais me debrucei, de caminhos por onde me levou, direta ou enviesadamente. Ou de forma bem mais simples e clara, aqui fica muito do que aprendi com ele, que é alguma coisa do que lhe cheguei a dizer.
Algures no tempo certo encontrou-se com a minha mãe. Desse encontro, dessa vida conjunta, nasci. De ambos herdei caraterísticas, com ambos aprendi a ouvir, a ver. Cada um no seu jeito de ser, cada um no seu caminho.
Com ela converso de vez em quando. Está lá, dentro dos quatro eixos de uma moldura, de bata de trabalho vestida, mão na roda da prensa da gravura, preparada para a tiragem de outra prova, mais uma entre tantas que fizeram a excelente gravadora que foi. Dela, muito discreta, quem sabe se descrente da sua dimensão, posso dizer que me ficou um mundo inteiro de afetos e abrigo, uma imensa falta de jeito para me pôr em bicos de pés, mas ficou ainda mais um extraordinário exemplo de força e coragem.
Dele, há muito tempo que guardo na gaveta da mesa de cabeceira um papel com um pequeno excerto, porque gosto de conversar consigo como se não fosse meu pai, gosto de fazer de conta, como diz, de que somos simplesmente duas pessoas que se querem muito, pai e filha que se amam porque o são, mas que igualmente se quereriam com amor de amigos, se o não fossem. É estranho que tenha tanto a ver connosco, com a nossa vida, estamos em tantas daquelas palavras. Pois é, e quando escrevi, não dei por isso. Foi pouco mais que isto o que, um dia, dissemos sobre este livro, A Caverna. E foi suficiente.
Voltei, repito, a ler o meu pai e retive frases, excertos, que me fizeram anotar, refletir, descobrir. E voltar a textos já escritos.
Mas, repito, para além do pensador e do escritor, sempre tão justa e condignamente recordado e reconhecido, houve um pai. Com quem vivi os primeiros vinte e três anos de vida. Que me ensinou a ler quando me ofereceu A maravilhosa viagem de Nils Olgerson através da Suécia e Coração. Que me chamou várias vezes para conversas sérias e inesquecíveis. Que me apoiou, quando foi preciso. Que, sem retóricas nem palmadas, me ensinou valores e princípios. Um pai com quem a palavra cumplicidade
era a que melhor definia a nossa relação. Com quem me zanguei