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Formação do Estado e Horizonte Plurinacional na Bolívia
Formação do Estado e Horizonte Plurinacional na Bolívia
Formação do Estado e Horizonte Plurinacional na Bolívia
E-book612 páginas8 horas

Formação do Estado e Horizonte Plurinacional na Bolívia

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Sobre este e-book

O livro Formação do Estado e Horizonte Plurinacional na Bolívia busca compreender e explicar as influências das tradições Liberal, Indianista e Nacional-Popular bolivianas na construção do atual Estado Plurinacional da Bolívia, inaugurado com a Constituição de 2009. Entendidas como matrizes políticas que deixaram um legado de demandas e agendas inconclusas, mas também elementos e símbolos de aquisição de legitimidade, o livro busca reconstruir a trajetória das três tradições ao longo da história boliviana e como a memória delas influenciou os contornos e as possibilidades de redefinição do novo Estado. A hipótese subjacente é a de que esse Estado Plurinacional, em sua tentativa de resolver a forte crise de legitimidade dos anos 2000-2005, nutre-se fortemente das agendas das três matrizes – seja intencional e deliberadamente, como no caso do Indianismo e do Nacional-Popular, ou de maneira reticente, como no caso do Liberalismo –, de forma a tentar reconciliar o Estado com sua altamente heterogênea formação social. É possível perceber o quanto de fato persistem no experimento refundador atual e na prática política corrente do país uma mescla heterogênea, com distintas ênfases das agendas, e práticas das três matrizes políticas, representadas, sobretudo: no apego à democracia como valor e procedimento; no reconhecimento étnico-cultural trazido ao interior do Estado com a incorporação potencial por este de formatos institucionais comunitários e a preservação de espaços autônomos de deliberação; na busca por participação política mais direta por parte do povo e na ênfase relativa à soberania popular sobre os recursos naturais do país e um maior intervencionismo estatal na economia.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de out. de 2018
ISBN9788547314378
Formação do Estado e Horizonte Plurinacional na Bolívia

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    Formação do Estado e Horizonte Plurinacional na Bolívia - Clayton Mendonça Cunha Filho

    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição - Copyright© 2018 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    Aos meus pais e irmãos, por toda a confiança sempre depositada, e a Alexandra Elbakyan, sem cujos esforços muito da pesquisa científica no mundo subdesenvolvido seria impossível.

    AGRADECIMENTOS

    A tentativa de elencar a todos que de alguma maneira contribuíram para o sucesso de qualquer empreendimento carrega sempre consigo o risco de ver-se traído pela memória e acabar cometendo a injustiça de esquecer-se de mencionar alguém que merecia ter sido mencionado. Ciente de tais riscos, peço desde já desculpas àqueles a quem deveria agradecer e porventura venha a olvidar.

    Agradeço, primeiramente, a Cesar Guimarães, meu orientador acadêmico de mestrado e doutorado, pela confiança e pelo incentivo sempre presentes, e a Ximena Soruco, coorientadora durante meu estágio de doutorado-sanduíche na Universidad Mayor de San Andrés (Umsa), em La Paz. Agradeço também ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela bolsa que me permitiu dedicação plena ao doutorado, à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), pela bolsa que me permitiu a realização do mencionado estágio de doutorado-sanduíche entre março e agosto de 2013, e ao Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso), pela bolsa-prêmio concedida em 2010 nos marcos do concurso de bolsas de investigação científica Estado y formas de participación y representación en América Latina y el Caribe contemporâneos, categoria B3, que também contribuiu com a realização deste estudo. Agradeço ainda à Embaixada da Bolívia no Brasil e ao Excelentíssimo Embaixador José Kinn pelo financiamento parcial da publicação desta obra.

    Agradeço também a toda minha família, em especial a meus pais, Clayton e Sulamita, e meus irmãos, Marlos e Thiago, por todo o apoio e carinho sem os quais todo esse esforço teria sido impossível. Agradeço, em especial, também a meu primo de sangue e irmão de coração, Leonel Gois, com quem tive o prazer de dividir um apartamento durante parte significativa de minha estadia no Rio de Janeiro para o doutorado de cuja tese resultou a presente obra.

    À professora Maria Regina Soares de Lima e a todos os colegas e ex-colegas do Observatório Político Sul-Americano (Opsa), pelos vários anos de convivência, aprendizagem e colaboração acadêmica, cabendo menção especial aos meus grandes amigos Fidel Pérez Flores e André Luiz Coelho, com quem tenho e tive o prazer de compartilhar interesses acadêmicos comuns e a coautoria de diversos trabalhos que, espero, continuarão ocorrendo; Josué Medeiros, que gentilmente se ofereceu para ler e comentar os capítulos desta obra em um momento crucial; e Guilherme Simões Reis e Flávio Pinheiro, que além de grandes amigos e companheiros de aulas e bares, gentilmente me hospedaram, quando preciso foi, no Rio de Janeiro e em São Paulo, respectivamente.

    A Cesar Zucco e Daniela Campello, pelo grande exemplo acadêmico e humano que representaram na minha trajetória, e a todos os demais professores do Iesp-Uerj com quem tive o prazer e a honra de cursar disciplinas durante esse período, com especial menção a Fabiano Santos e Breno Bringel.

    Aos meus amigos David Rêgo, Flávio Carvalhaes, Ismael Pimentel, Alexis Cortés, Victor Mourão, Marcelo Martins, Daniela Vairo, Florencia Antía, Lorena Granja, Pedro Costa Jr., Tiago Moreno, Rogério Raposo, Guilherme Montenegro, Hector Ferreira, Helena Martins e Tiago Régis, a quem sempre serei grato pelos diversos momentos de conversas, apoio, cervejas e cachaças compartilhadas em diversos momentos desta trajetória e sem as quais este estudo tampouco teria sido possível. E a Débora e toda a família Thomé, que por muito tempo foi e de certa forma sempre será também a minha.

    Aos meus amigos bolivianos Gilber Mamani, Andrea China Terceros, Tania Paz, Carlos, Ariel e Tony de la Rocha, e especialmente a Angela Guerra e toda sua família, sem cuja companhia e presença a estada em La Paz durante 2013 teria sido certamente muito menos alegre e mais pesarosa.

    Ao professor da Universidad Mayor de San Simón (UMSS), Fernando Mayorga, por toda a disposição em ajudar-me com contatos e ideias durante minha estadia boliviana, apesar de sua agenda bastante concorrida. Ao então coordenador do departamento de Sociologia da Umsa, Eduardo Paz Rada, pela acolhida durante o estágio de doutorado-sanduíche. E aos professores Farit Rojas Tudela, da Universidad Católica Boliviana (UCB), Fernando Garcés (UMSS) e Fernando García Yapur (PNUD-Bolívia) por me concederem parte de seus concorridos tempos para a realização de conversas cujos insights e informações aportadas foram também cruciais para este estudo, além de Xavier Albó, a quem por minha culpa não fui capaz de buscar durante minha estadia em La Paz, mas que muito gentilmente respondeu com extrema celeridade a consultas e aos questionamentos por correio eletrônico quando já havia regressado ao Brasil. Agradeço ainda a Andrey Schelchkov, Pablo Stefanoni e Marta Irurozqui, alguns de cujos trabalhos inspiraram e iluminaram ideias deste livro e que muito gentilmente também me responderam a questionamentos por correio eletrônico sobre fontes bibliográficas, inclusive facilitando-me o acesso a versões digitais de alguns textos importantíssimos aqui utilizados.

    Agradeço ainda a meus colegas bolivianistas Sue Iamamoto, Ana Carolina Delgado, Renata Albuquerque de Moraes, Rodrigo Santaella Gonçalves, Aiko Ikemura e Danilla Aguiar por todas as conversas e trocas de ideias, aqui e alhures, sobre essa paixão acadêmica compartilhada pela Bolívia.

    Ao Nelson Syozy, por sua inestimável ajuda técnica na edição de algumas das imagens e figuras aqui reproduzidas.

    E a todos aqueles outros que por inúmeras razões, diretas ou indiretas, contribuíram para o êxito desta obra, mas cujos nomes não foram citados, meus agradecimentos e minhas sinceras desculpas pela impossibilidade de me lembrar de todos.

    In thinking about the state, we should not set aside the features of the society it addresses and is constituted by, but consider the ways in which societal features influence political institutions and mores.

    Ton Salman

    El componente de la memoria colectiva en el registro ideológico es sin duda más grande de lo que por lo común se supone.

    René Zavaleta

    As historians recognize, nation-building projects are not plucked from the heavens of pure ideas or political imaginaries but are rooted in the earth of social history.

    Brooke Larson

    Se sostiene hoy una presunción no solo injusta sino falsificadora del pasado, al suponer que la Constitución de 2009 es una construcción ideológica nacida exclusivamente de la insurgencia de los movimientos populares del período 2000-2005. En realidad fue un doble camino de toma de conciencia; el que siguió el Estado a partir de la Revolución [del 52] y la comprensión de la complejidad cultural en 1994 y la insurgencia de sectores intelectuales del mundo andino y de los llanos que entendieron que no se podía continuar con poderes subrogados y delegados.

    Carlos Mesa

    APRESENTAÇÃO

    Entre 2003 e 2005, a então República da Bolívia viveu convulsivos processos políticos que lhe levaram à renúncia sucessiva de dois presidentes empossados, de dois sucessores da linha constitucional antes mesmo de sua posse e à convocação das eleições gerais antecipadas de 2005, nas quais pela primeira vez se elegeria Evo Morales. A crise política, entretanto, perduraria e se acirraria nos primeiros anos do novo governo em uma polarizada confrontação que somente começaria a se resolver em favor dos novos ocupantes do poder institucional a partir de fins de 2008¹, mas, sobretudo, após a promulgação da nova Constituição Política do Estado (CPE) em 2009 e a respectiva fundação do atual Estado Plurinacional da Bolívia. Mas se o referido quinquênio foi frequentemente lido internacionalmente como uma grande revolta das maiorias indígenas subalternizadas do país, e o novo Estado evoca em seu caráter plurinacional essa diversidade étnica e cultural que de fato ascendia ali a posições de primeiro plano político, esta era uma verdade parcial que ocultava raízes igualmente profundas de outras duas grandes matrizes históricas da política boliviana: o liberalismo e o nacional-popular.

    Assim, o presente livro busca compreender e explicar a formação do atual Estado Plurinacional da Bolívia a partir do entroncamento das influências e dos legados das tradições Liberal, Indianista e Nacional-Popular bolivianas. Entendidas como matrizes políticas que deixaram um legado de demandas e agendas inconclusas, mas também elementos e símbolos de aquisição de legitimidade política, o livro busca reconstruir a trajetória das três tradições ao longo da história boliviana e como a memória destas influenciou os contornos e possibilidades de redefinição desse novo Estado. A hipótese subjacente é a de que o Estado Plurinacional, em sua tentativa de resolver a forte crise de legitimidade dos anos 2000-2005, nutre-se fortemente das agendas dessas três matrizes – seja intencional e deliberadamente, como no caso do Indianismo e do Nacional-popular, ou de maneira reticente, como no caso do Liberalismo –, de forma a tentar reconciliar o Estado com sua altamente heterogênea formação social.

    Reconstruindo o caminho das três matrizes ao longo da história boliviana, é possível perceber o quanto de fato persistem no experimento refundacionista atual e na prática política corrente do país uma mescla heterogênea e com distintas ênfases das agendas e práticas das três matrizes políticas, representadas sobretudo no apego à democracia como valor e procedimento; no reconhecimento étnico-cultural trazido ao interior do Estado com a incorporação potencial por este de formatos institucionais comunitários e a preservação de espaços autônomos de deliberação; e na busca por participação política mais direta por parte do povo e na ênfase relativa à soberania popular sobre os recursos naturais do país e um maior intervencionismo estatal na economia.

    Sendo o Estado Plurinacional da Bolívia um experimento político recente e ainda em aberto sobre o qual foram depositadas enormes expectativas de transformação e emancipação social, seria certamente temeroso apontar julgamentos mais definitivos sobre seu eventual êxito nas finalidades para que fora proposto. Mas a compreensão de suas profundas raízes históricas pode, sem dúvidas, ajudar a iluminar as razões dos indícios crescentes de legitimidade desse novo Estado num país perenemente marcado pela instabilidade política, bem como os recentes sinais de dificuldades, e é para com esses objetivos que espero ter contribuído com a presente obra.

    Clayton M. Cunha Filho

    PREFÁCIO

    Não deveria ser necessário explicitar a importância de um trabalho que traz para o Brasil uma radiografia das correntes político-ideológicas que percorrem a política boliviana, e uma leitura das suas articulações recentes. Mas o leitor brasileiro não tem uma obra dessas características à mão. Adentrar-se para além dos destaques jornalísticos exige, para o público interessado nessa temática no Brasil, viajar para a Bolívia ou se situar no campo de estudos andinos por meio de autores especializados não brasileiros de difícil acesso. Por isso, a publicação em livro da tese de doutorado de Clayton Mendonça Cunha Filho, defendida em 2015 no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (antigo Iuperj), merece um destaque especial por disponibilizar para um novo público uma introdução necessária à política do país andino.

    O trabalho de Clayton integra-se aos aportes de uma geração de pesquisadores de universidades públicas brasileiras que nos últimos anos realizaram com esforço e autonomia consistentes pesquisas de doutorado com foco em processos políticos de outros países. Esses trabalhos são uma base que vai se consolidando para contar com um conhecimento sobre esses processos feitos aqui, e tem nutrido debates políticos e acadêmicos na contramão dos automatismos de feudos universitários, agendas de instituições ou políticas estatais. Essa produção traz para o Brasil – e não só – aquilo que um processo político mostra como aspectos significativos no momento em que a pesquisa é realizada, sem determinações e pesos de um cânone ou tradição consolidada de estudos. Por isso, o debate que aqui apresentamos é muito atual, contém a experiência de como a política é vivida na Bolívia, e apresenta assim discussões em andamento com potencial de fazer sentido em outros contextos.

    O livro agora publicado é um estudo sério que mergulha com cuidado nas fontes do debate histórico boliviano e expressa um interesse genuíno de esquerda em pensar no Brasil a realidade política sul-americana sem um olhar autocentrado ou interessado nas temáticas consagradas localmente e aberto, assim, à força da política indígena e popular dos Andes. Afinal, o gesto político de dedicar uma tese de doutorado ao estudo da política boliviana, e não apenas aos interesses da política brasileira na região, tem um valor até para quem queira pensar o Brasil e a política brasileira.

    A política andina abre debates que são próprios, embora sejam bons de serem pensados em outros lugares, como vem ocorrendo por parte dos movimentos indígenas e parte das esquerdas interessadas por formas políticas que articulam movimentos e evocam ou constroem o povo para abrir um momento de mudança. A base ideológico-política que Clayton Mendonça Cunha Filho apresenta permite acompanhar de forma não superficial ou impressionista os desenvolvimentos recentes vinculados às formas institucionalizadas da autonomia territorial camponesa-indígena, o sistema de organização das competências dos distintos níveis de governo; ou debates que dizem respeito ao reconhecimento da diferença e a tradições políticas nacionais construindo ou se opondo à ideia da nação monocórdica, presente como projeto por trás de toda nação e foco atual de várias lutas por existência e diferença.

    O livro se constitui, assim, numa obra importante e de referência para quem busque se situar no movimento da história política da Bolívia, assim como para quem busque chaves políticas de leitura para pensar a América do Sul, e o desafio de uma nação indianizada, indígena ou colonial. Com os indígenas e camponeses andinos, o livro acompanha a imaginação da possibilidade da plurinacionalidade, contra a nação como homogeneidade colonial republicana. Também os obstáculos e mudanças de rumo vividos recentemente, na hora em que distintas tradições políticas se encontram.

    A revisão da história política da Bolívia se apresenta no livro num jogo entre três tradições políticas que percorrem os episódios de mais destaque na vida pública do país. O recorte permite entender os lugares comuns com que a política é feita nessas terras. Esse percurso histórico apresenta um resumo sobre o pensamento social, as sucessivas revoltas, as articulações políticas e o passado como ferramentas presentes para entender o momento político aberto com a chegada do Movimiento Al Socialismo, de Evo Morales (MAS) ao governo. É esse último acontecimento o lugar onde surgem as inquietações que levam a escrever este estudo, como momento em que as tradições mapeadas se encontram, ou chocam, determinando limites e possibilidades de um momento político excepcional. A história da Bolívia é revisada aqui para reconstruir as forças que interagiam com mais intensidade nesse momento recente, e não em outro.

    A leitura comentada da história boliviana vai costurando as aproximações e os distanciamentos do liberalismo-constitucional; o indianismo comunitário; e a vertente do nacional popular. Esse tecido apresenta um bom mapa sobre o processo político boliviano, desde a independência, e conduz ao recente processo constituinte que deu lugar, em 2009, à promulgação de uma nova Constituição que declara a plurinacionalidade do Estado. Essas três vertentes são as que permitem fazer inteligível a matéria da qual é feita a política boliviana, ontem e hoje. A leitura histórica, a análise política e a descrição dos processos políticos, assim, permitem entender o que estava em jogo na hora de repensar o país e propor um novo arranjo, no momento em que camponeses e indígenas se convertem em voz política de peso, e se sentam junto a aliados a imaginar um novo pacto com os partidos da oposição, expressão em grande medida dos setores políticos que sempre governaram contra camponeses e indígenas, e especialmente contra os últimos, aqueles cuja presença constitui a novidade da Assembleia Constituinte convocada em 2006.

    Por trás de difíceis negociações, de um processo constituinte que não ia pra frente e encontrava inúmeros obstáculos que pareciam sem solução possível aparente, além de contradições no seio do próprio bloco político indígena camponês originário, a história política da Bolívia se expressava num embate de forças que prevaleceram por trás dos artifícios sem materialidade do autonomismo regional separatista, do socialismo do nome do partido de Evo e algumas trajetórias dos seus quadros, da retórica plurinacional ou bolivariana grandiloquente. Muitos símbolos são evocados num processo político em movimento, mas na observação cuidadosa e informada pela história é possível fazer uma espécie de decantação, não para pretender olhar por trás dos símbolos, onipresentes na política, mas para entender quais símbolos, discursos, programas e ações nos deixam encontrar as tradições duradouras que reapareceram mostrando o peso da linguagem com que a política Boliviana é feita.

    Assim, o velho nacionalismo reencarnava com rosto indígena, e o liberalismo voltava na força do estabelecido, nos princípios que ainda regem as instituições republicanas do país, embelecidas com o léxico da plurinacionalidade e o comunitário, mas com uma materialidade das formas anteriores que, depois de serem questionadas no momento da revolta, voltariam com determinação. Uma política estatista de inclusão social de fato se opôs às políticas dos anos ‘90, mas na concretude de um processo político, o liberalismo, o indianismo e o nacionalismo se mostrariam interdependentes na definição do tipo de arranjo que prevaleceria. Essa leitura deixa de lado clivagens que são fundamentais para entender outras épocas? É possível que liberais vs conservadores, ou que o socialismo tenha demarcado o processo político num outro momento. Mas num país onde a maioria da população descende diretamente das populações originárias preexistentes à conquista, faz todo sentido fazer uma releitura na chave da política que aparecia em 2006, em que o centro era a tradição comunitária indígena, com dois contrapontos analisados também neste livro.

    O trabalho de Observatório Político que Clayton Mendonça Cunha Filho conduz não nega as particularidades dos acontecimentos políticos nem outras articulações políticas presentes, mas situa o processo político nas tensões duradouras contra as quais de fato ideólogos ou comunicadores estatais tentaram impor interpretações. Nesse triângulo, é crucial constatar um movimento de deslocamento do centro político, no qual o centro simbólico não se constitui em centro institucional e o que seria uma reparação histórica da Bolívia indígena se estaciona aquém do que um governo de mudança anunciava como novo marco.

    Independentemente da retórica e do simbolismo anunciando a abolição da república por decreto, pouco após a promulgação da nova Constituição e no seu preâmbulo, em que também é superado o neoliberalismo e a colonialidade, um fundo político puxava silenciosamente para um lugar que os anos mostrariam depois como ponto neurálgico de consolidação, longe de uma imaginação política que colocava o comunitário indígena como novo centro.

    O projeto de descolonização mostrava seu ímpeto, como expressão de movimentos iniciados décadas atrás, como reação katarista à reforma agrária nacionalista e ao pacto camponês da ditadura, articulado com a reivindicação e luta indígena por território nas últimas duas décadas. Depois de séculos de subordinação, ao mesmo tempo, um indígena chegava ao topo do poder numa votação massiva. Nesse ponto, abre-se o grande problema a ser analisado na leitura e análise do recente processo político da Bolívia.

    A tradição do indianismo comunitário daria nome às novas instituições, mas depois seria enterrada na marginalidade. Não porque não pudesse ter sido verdade, mas porque o processo político se orientaria a partir de então sobre as bases das outras duas tradições sempre presentes que o livro revisa, quando o peso do liberalismo e do nacionalismo popular deixaria para trás como sonho de juventude a possibilidade de pensar instituições comunitárias e indígenas para um novo tipo de Estado. Isso não ocorreu, e as palavras inspiradas nessa tradição ficariam como ruínas onipresentes evocando o momento de emergência e avanço das lutas andinas do início de século, num processo político que desconheceria as forças com que chegou ao Estado e aprovou uma nova Constituição. O indianismo comunitário continuaria aí, mas como mito fundante e não como forma política ou presença da comunidade no espaço do poder estatal.

    A conjuntura da Bolívia Plurinacional se encontraria como uma nova articulação dos elementos fundamentais da política boliviana, repetindo esquemas de funcionamento já vistos na própria independência; com Melgarejo; Daza, as alianças da guerra federal, Pando; Villarroel; o socialismo militar, a revolução de ‘52 ou o vice-presidente indígena de Sanchez de Lozada, Victor Hugo Cárdenas. Nesses casos, o encontro de tradições sempre acabou mostrando como eles não interagem num equilíbrio harmonioso, com hierarquias e exclusões recorrentes das forças sociais concretas por trás da tradição indianista comunitária.

    No fundo, a força de cada tradição está além dos símbolos, porque refere a forças políticas ou sociais concretas, e por isso vemos no jogo de tensões como índios e comunários são convocados na hora da revolta por frações das elites em disputa. Mesmo que possa existir uma proximidade verdadeira por parte do nacionalismo, com homens vindos de baixo que o interpretam, os de baixo serão necessariamente deixados à margem no momento de estabilização dos novos regimes e processos políticos. Independentemente de que puderam ter alguma participação como massa mobilizada, evocada ou receptora de promessas, a acomodação do nacionalismo popular no andar de cima, militar, eclesiástico ou de tribunos da plebe marcará uma e outra vez, na história da Bolívia, como em outros lugares, o destino subalterno de uma política comunitária que se imagina então se valendo por si, alimentando suas versões mais radicais e utópicas que, também, encontrará limites políticos numa realidade na qual a interrupção da sua autonomia é um dado concreto das relações sociais e econômicas atuantes, e da vida da nação mestiça, como realização resultante do governo das elites.

    A leitura Evista do último processo é diferente dessa reconstrução que aqui faço. Uma articulação enunciada do lugar do novo poder político aproxima o olhar nacional popular do olhar comunitário indígena, como clausura de um ciclo de opressão aberto séculos atrás e como algo que seria possível sem interferência das elites ou poderes estabelecidos. Essa narrativa, formulada a partir do Estado, nasce como marco interpretativo que oculta o pacto e acordo com as elites que se concretiza por vários caminhos (político, econômico, de assimilação de práticas e modos de funcionamento), ficando sem concretizar uma reflexão sobre os limites políticos do processo em que, ao mesmo tempo, a aliança com os atores políticos indígenas que funcionou na época das mobilizações e até a assembleia constituinte, é rompida.

    Na própria Assembleia Constituinte e depois, desentendimentos do governo com as organizações indígenas seriam simultâneos à reconciliação do governo com setores empresários do Oriente e agentes políticos da antiga oposição, enquanto o MAS consolidava seu poder político e o controle das instituições e poderes de governo. Com menos ambiguidade do que inicialmente, o governo de Evo seguiria um caminho que prometia industrialização e desenvolvimento antes do que pensar a partir da comunidade, e as diferentes formas econômicas e políticas da complexa formação social boliviana.

    O processo se reencontrava, assim, com os outros momentos da história boliviana, notariam vários observadores, e a Bolívia Plurinacional mostraria uma imagem de ruptura entre as tradições do indianismo comunitário (convertida em mito ou oposição política marginalizada), do liberalismo, e do nacionalismo popular. Alguns veriam também que o indianismo comunitário era agora estatal e desenvolvimentista. Mas isso seria mais difícil de sustentar quando o governo enfrentaria o movimento indígena de terras altas e baixas, e preferiria direcionar suas políticas para uma nova classe média (indígena?).

    Os símbolos e as visões políticas do indianismo, que influencia a política há décadas em várias direções por meio dos sindicatos do campo e movimentos culturais e políticos no trânsito urbano-rural, continuariam presentes no novo Estado. Mas eles também estariam na oposição, denunciando traição e com a possibilidade de uma institucionalidade indígena comunitária anunciada, mas não desenvolvida. A política de organizações de ayllus ou de territórios indígenas voltaria a ter que ser pensada de forma autônoma. A justiça e democracia comunitária, a plurinacionalidade a partir de autonomias indígenas, o Bem Viver como alternativa ao desenvolvimento, não formariam parte da agenda do governo do MAS, que perderia características movimentistas, num processo de centralização que contrastaria com a forma em que movimentos e organizações indígenas abriram um momento político de mudança e construíram como encontro de visões diferentes a proposta de plurinacionalidade no contexto do processo constituinte.

    O desafio do percurso proposto por Clayton, mas também dos que leiam o livro e busquem a partir daí construir uma interpretação do processo histórico boliviano, é o de entender de que são feitas as linhas principais da política, e qual é o jogo que prevalece entre eles. Numa dinâmica que não é alheia aos processos políticos de outros lugares da América Latina, a força comunitária dos que trabalham a terra atua de forma invisível do ponto de vista da institucionalidade liberal, como fonte de transformações ou de possibilidades não liberais e republicanas, que podem se encontrar, eventualmente, com uma voz nacional popular que de forma barroca conjugue os mundos sociais dos de baixo, mas num processo que mostrará um limite, quando o nacionalismo e os compromissos da elite que o representa mostre o caráter contrário à comunidade, como instrumento político da ordem, do mundo moderno e capitalista, perto do povo em alguns momentos, mas como força que o enquadra e organiza em aliança com as formas liberais com as quais disputa, mas nunca se desentende totalmente, nem supera ou impugna.

    Na guerra federal, na independência, na revolução de ‘52 o povo foi convocado e foi protagonista de rupturas políticas consideráveis. Quem administraria o regime resultante, depois da ruptura, seria o responsável por delimitar novamente as fronteiras da sociedade política. Dessa última vez seria diferente? Pessoas de pele morena e origem humilde habitariam de fato os escritórios do Estado. A plurinacionalidade seria evocada em todo ato estatal. Ela não teria relação de continuidade, no entanto, com ideias que circularam na assembleia constituinte na direção de refazer o mapa da Bolívia e questionar as formas do poder colonial. A recuperação dos materiais que configuram a realidade Boliviana deve evitar o risco de considerá-las como independentes. Todo nacionalismo precisa de um povo para organizar e homogeneizar desde cima, todo liberalismo constrói seu outro de forma subordinada, como mito burguês da individualidade e da liberdade sempre atrelado a um regime de propriedade excludente das comunidades ou possíveis arranjos de articulação coletiva dos de baixo.

    Essa dinâmica que se apresenta uma e outra vez na história do país é retomada a partir de 2009, como consagração de um regime que evoca o mito indígena de forma cínica, na medida em que o limita a instâncias folclóricas e culturais, à moda do multiculturalismo, e o combate, em termos de organização econômica e social, dando vazão à expansão e à organização econômica capitalista de país periférico que mais uma vez fragmenta a territorialidade comum, abrindo-a para a intervenção da exploração capitalista da terra, de minerais, de organização para o trabalho. Na narrativa Evista, na versão que recupera elementos andinos de forma simbólica, ou na de origem classista, da esquerda branca que nega a diferença e a comunidade a partir de discursos estatistas de inclusão social ou de progresso econômico dirigidos à classe média, finge-se que o retorno do Katari e a revolução social estão em curso.

    Numa formulação na qual os elementos que formam a política boliviana se sintonizam e equilibram, fundidos numa articulação virtuosa, o governo da Bolívia busca interferir na interpretação histórica que começa a ser feita sobre a última década. O trabalho de Clayton é fundamental para que leitores do Brasil se envolvam em acompanhar esse processo. A perspectiva histórica permite situar a Bolívia Plurinacional numa longa história de desencontros entre o Estado e a comunidade, com alguns momentos de proximidade e tentativa de incorporação de forma não subordinada. Longe das leituras de clausura de um processo que na verdade leva décadas, ou de síntese, da mesma forma em que as teorias estatais da mestiçagem apresentavam o encontro de raças e culturas.

    Se levarmos a sério a comunidade não apenas como uma tradição de pensamento e crítica política, mas como possibilidade de vida e lógica organizativa diferente, alheia à representação e ao Estado republicano do liberalismo, encontramos um terceiro lugar para pensar as tensões de processos políticos, para além do Estado paternalista e da promessa de liberdade que para os de baixo significa expropriação de terras, fragmentação da riqueza comum, e violência exercida pelos agentes do Estado. Ao mesmo tempo, vemos claramente as tradições do nacionalismo e do liberalismo encontrando-se na ideia de sujeito, de progresso, de tudo que a comunidade pode, ainda, como utopia ou vigência, servir de base para pensar uma ruptura com a política das elites.

    Como realidade demográfica e formato de colonização, no entanto, é possível encontrar na Bolívia uma realidade indígena que já faz parte da vida urbana moderna, das relações de mercado e aspirações políticas a ser realizadas longe da comunidade ancestral, nas suas manifestações atuais do campo e também urbanas, reinventadas ou de territórios autônomos a ser recuperados. Podemos ver aqui uma forma indígena que perde seu caráter selvagem de ruptura e de fato se integra na política moderna das instituições estatais. Nesse lugar, não estaríamos falando da comunidade contra o Estado, mas de forças políticas também desejantes de uma ordem política nova e com força de ruptura. O trabalho de Clayton Cunha Filho leva essas forças em consideração, e nelas encontra algumas chaves para pensar a realidade boliviana, inclusive no ponto em que o movimento indígena consegue operar como pensamento nacional e os caminhos políticos do possível deixam um pouco de lado os dramatismos, cinismos e utopias que tanto o Estado, na construção de narrativas, ou os projetos do indianismo, pensando a partir da comunidade, continuam desenvolvendo como temas que sempre retornam na política desse lugar.

    Pensando no pequeno proprietário indígena, ou ainda na resistência da língua e formas de vida comunitária na cidade e dentro da política nacional, abre-se a possibilidade de pensar um encontro do nacional popular com a tradição indianista comunitária. Isso existe claramente na política da Bolívia e em alguns devires – não todos – do indianismo katarista. Nesse lugar, é possível imaginar uma das formulações do projeto plurinacional. A fusão de horizontes, no entanto, provavelmente não saiu viva ou assumida como possibilidade para os que decidiam em nome do processo político indígena, originário, camponês da Assembleia Constituinte. O Pacto de Unidad, como encontro de organizações camponesas e indígenas era esse lugar, tanto antes como depois tornado impossível, quando a consolidação do Evismo teria que passar por sobre os direitos indígenas que acabam de ser conquistados.

    Nesse ponto, o estudo de Clayton abre uma importante discussão. Ela não se resolve neste livro, porque é um problema político aberto que na política boliviana ainda encontrará formas de se expressar quando seja o momento. Mas com a história política da Bolívia, esse problema aqui está bem colocado para leitores que estejam dispostos a pensar a política para além do pragmatismo do instituído. O problema é se a comunidade, como elemento de ruptura, poderia ser uma realidade consistente para pensar e viver com outras leis, diferentes das da inexorabilidade do desenvolvimento capitalista e a organização política liberal. Para alguns, a sociedade existente tem fundamentos liberais e apenas podemos, com o povo do nacional-popular e o índio da comunidade, colocar-lhe alguns limites? Ou existe uma natureza das coisas comunitária que consiga mostrar a fragilidade do liberalismo como imposição inorgânica que nunca se realizará mais do que como mito, como mistificação capitalista? A pergunta é se a realidade é nacional e liberal, e é nossa tarefa pensar o mito da comunidade como possibilidade; ou se o liberalismo republicano da divisão de poderes, propriedade e sujeito emancipado é, aqui e em qualquer lugar, algo nunca realizável, nos pondo na obrigação de encontrar caminhos de emancipação?

    Possivelmente, toda ordem social será sempre um arranjo. Nesse sentido, é imprescindível pensar a Bolívia como encontro de horizontes e tradições políticas. É possível que o Estado Plurinacional não seja síntese virtuosa e que sempre haja assimetria entre essas tradições. Os indígenas e os de baixo serão mais uma vez deixados de lado. A política boliviana, no entanto, só existe como conexão, mistura combinatória de formas políticas, imagens possíveis do social, e jogo de elites algumas vezes invadido pela força da diferença ou dos de fora. É isso o que certamente faz da Bolívia um mundo político imprescindível de ser considerado, no Brasil e em qualquer lugar.

    Salvador Schavelzon

    Professor de Antropologia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp),

    autor de El nacimiento del Estado Plurinacional de Bolivia. Etnografía de una Asamblea Constituyente (CLACSO/Plural Editores/CEJIS/IWGIA, 2012) e Plurinacionalidad y Vivir Bien/Buen Vivir: Dos conceptos leídos desde Bolivia y Ecuador post-constituyentes (Ediciones Abya-Yala/CLACSO, 2015)

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    Sumário

    INTRODUÇÃO

    capítulo 1

    A matriz política do liberalismo-constitucional

    1.1 Das reformas bolivarianas à consolidação da República Oligárquica

    1.2 Do auge ao colapso da República Oligárquica: conflitos intraelite e aceleração das contradições no sistema

    1.3 Ocaso e restauração oligárquica: interlúdio militar e democracia

    pactuada

    1.4 Auge e queda do novo modelo: consolidação gonista, crise e colapso

    1.5 Horizontes do liberalismo-constitucional boliviano

    capítulo 2

    A matriz política do indianismo-comunitário

    2.1 Indigenismo, Indianismo e horizontes políticos indígenas na Bolívia contemporânea

    2.2 Da Colônia à República: estruturação e persistência do regime de convivência

    2.3 Tentativas de extinção e resistência comunitária: da grande ofensiva republicana à crise do sistema oligárquico

    2.4 Eu os faço meus representantes: o sindicalismo camponês, da interlocução subordinada à reemergência étnica autônoma

    2.5 Horizontes da matriz indianista-comunitária

    capítulo 3

    A matriz política do nacional-popular

    3.1 Origens da matriz Nacional-Popular na Bolívia

    3.2 Da consolidação da república oligárquica à crise do Chaco

    3.3 Do Socialismo Militar à Revolução: ascensão do nacional-popular

    boliviano

    3.4 A Revolução de 1952: auge e queda do nacional-popular

    3.5 O Estado de 52 e o paradoxo senhorial: reconstituição oligárquica

    e ocaso do nacional-popular boliviano

    3.6 O quinquênio 2000-2005 e o renascimento do nacional-popular

    boliviano

    3.7 Horizontes da matriz nacional-popular

    capítulo 4

    A construção do horizonte plurinacional

    4.1 Do colapso do Estado à refundação constitucional: a constituinte

    como entroncamento institucional das três matrizes

    4.2 A construção do horizonte plurinacional como redefinição abigarrada

    da Nação Boliviana

    4.3 Construção estatal abigarrada e novas instituições assimétricas: as autonomias como chave e a constituição como cadeado

    Conclusão

    Utopias, Realpolitik Plurinacional e Tensões

    Remanescentes

    REFERÊNCIAS

    INTRODUÇÃO

    Conta-se que, durante uma visita à França nos anos 1970, o líder comunista chinês Zhou Enlai foi perguntado sobre sua opinião acerca da importância histórica da Revolução Francesa, ao que teria respondido que era ainda muito cedo para saber².

    Com essas mesmas palavras, iniciei a escrita de minha dissertação de mestrado em Ciência Política defendida em 2009 no então Iuperj e com elas decidi iniciar a introdução da tese de doutorado defendida em 2015 no atual Iesp-Uerj e que deu base a este livro, porque a intenção com que tinham sido utilizadas naqueles contextos mantém-se praticamente inalterada neste de agora: enfatizar as dificuldades inerentes à análise e estudo de temas extremamente recentes e de resultados ainda inacabados e em andamento. Se naquele trabalho de mestrado busquei estudar os elementos de legitimidade com os quais o governo de Evo Morales (então ainda em seu primeiro mandato) procurava construir seu bloco histórico em busca de transformações na excludente sociedade boliviana a partir da memória dos legados das matrizes políticas indianista e nacional-popular, na tese e neste livro procuro compreender e explicar a formação do Estado Plurinacional da Bolívia inaugurado com a Constituição de 2009.

    Em grande medida um desdobramento direto daquela dissertação original, este livro busca aprofundar a compreensão do legado e das agendas históricas obtidas ou inconclusas das duas matrizes políticas ali estudadas, e agregar uma terceira – a do liberalismo – para compreender os contornos político-institucionais assumidos pelo novo Estado Plurinacional.

    A inclusão da matriz liberal como objeto de investigação desta pesquisa não é, contudo, um desdobramento óbvio e natural na medida em que o novo Estado Plurinacional foi construído após um conturbado processo de lutas sociais – que para muitos representou uma verdadeira revolução³ –, tendo precisamente o (neo)liberalismo como representação daquilo que se buscava transformar e superar. Mas ainda que os atores que refundaram o Estado tenham buscado fazê-lo reivindicando de maneira mais ou menos explícita a memória, os projetos e legados das matrizes indianista e nacional-popular e negando o liberalismo, a posição central ocupada por este ao longo de quase toda a história política boliviana⁴ fez com que, apesar de todo o peso oligárquico a ele associado, tenha deixado um conjunto de símbolos, procedimentos e modelos de aquisição de legitimidade política dos quais a refundação plurinacional dificilmente poderia escapar. Tal como descrito por Marx⁵, a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.

    Assim, o presente livro busca compreender o novo Estado Plurinacional da Bolívia a partir não apenas das duas grandes matrizes políticas insurgentes⁶ – o nacional-popular e o indianismo-comunitário –, que em suas histórias de contestação ao excludente Estado liberal-oligárquico deixaram uma memória cujo resgate permitira a construção dos fundamentos de legitimidade do bloco histórico liderado por Evo Morales e seu partido Movimento Ao Socialismo (MAS)⁷, mas também a partir da inclusão na análise da própria matriz liberal-constitucional. O objetivo será mostrar como as três grandes matrizes políticas da história boliviana deixaram legados, agendas e marcos de legitimidade que se

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