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Corporeidade No Espectro Autista: Contribuições Da Fenomenologia Da Percepção
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Corporeidade No Espectro Autista: Contribuições Da Fenomenologia Da Percepção
E-book175 páginas2 horas

Corporeidade No Espectro Autista: Contribuições Da Fenomenologia Da Percepção

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Sobre este e-book

Disse Merleau-Ponty que "a verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo". Esse é o legado que sua Fenomenologia da Percepção me proporcionou: reaprender a ver (e a ler) o universo autista junto com autistas, adentrando seus modos de perceber pelo espectro de seus olhares e linguagens de seus corpos (seres-no mundo). Eis a tônica e o convite deste livro.

Meu desejo é que o olhar sensível se multiplique frente às condições humanas denominadas necessidades educacionais especicias ou específicas, certa de que assim seremos educadores, pesquisadores, profissionais de saúde, familiares, colegas e, antes de tudo, pessoas mais comprometidas com a aceitação, compreensão e valorização das diferenças.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de mar. de 2023
ISBN9786525033945
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    Corporeidade No Espectro Autista - Ana Beatriz Machado de Freitas

    INTRODUZINDO A PROPOSTA, A FILOSOFIA E O MÉTODO

    A presente obra é resultante de uma tese de doutorado em Educação que objetivou desvelar modos de percepção de pessoas diagnosticadas autistas, descritos pela perspectiva dessas pessoas (FREITAS, 2015).

    Partimos da premissa de que pessoas com algum tipo de comprometimento sensorial - dentre as quais as pessoas com transtorno do espectro autista (TEA) - percebem o mundo de forma qualitativamente diferenciada em relação àquelas que não apresentam essas alterações.

    O filósofo Maurice Merleau-Ponty assinala que existe uma consciência perceptiva. Ao enunciá-la, não propõe cisão com o intelecto; pelo contrário, busca somente fazer ver o laço por assim dizer orgânico entre a percepção e a intelecção (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 55). O ser humano só pensa/intelectualiza - e, antes, só existe - a partir de referências experienciadas/percebidas pelo corpo no mundo vivido (contextos socioculturais, relacionais, ambientais, linguísticos, inter e intrapessoais). Portanto, o qualitativo das percepções depende dos modos como o corpo habita o mundo e é por ele habitado, de como é sensibilizado. Daí a denominação corporeidade, que aqui adotamos.

    Nessa perspectiva teórica, estudos com enfoque na percepção de pessoas com deficiências sensoriais – cegas, surdas, surdocegas e aquelas com perdas de três ou mais sentidos – mostram que essas condições específicas de corpo-no-mundo (corporeidades) implicam diferenciais perceptivos (PORTO, 2002; DONATO, 2012; MASINI, 1994, 2003; MASINI et al., 2012; MARQUES, 2007, 2008). Todavia, em relação ao espectro autista, poucos estudos são encontrados sob o referencial de Merleau-Ponty e, dentre eles, não foi identificado o enfoque da percepção compreendida pela perspectiva de autorrelatos de pessoas com autismo.

    Assim, a proposta de pesquisa foi desafiadora e exigiu criteriosa seleção bibliográfica dos autores com TEA, uma vez que é comum pairar a dúvida se essa autoria é legítima. Se o espectro caracteriza-se, em linhas gerais, por limitações significativas na capacidade de estabelecer interações e de se comunicar, como esperar que uma pessoa com autismo revele sua percepção de forma que seja acessível ao outro (leitor)?

    Por outro lado, questionávamos: essa dificuldade adviria somente da nebulosidade do espectro ou do embotamento da nossa percepção dita normal? A surdocegueira tinha o estigma do inacessível, da permanência do indivíduo em um mundo de trevas, até a notoriedade de Helen Keller, como intelectual, comunicadora, ativista e autora (inclusive de sua autobiografia, publicada aos vinte anos de idade)¹.

    Na esfera do autismo, Temple Grandin faz-se notar com semelhante destaque. Cientista respeitada, Ph.D. em Ciência Animal, desenvolveu equipamentos, realiza assessoria e palestras, escreve livros e artigos científicos e frequentemente assinala seu sucesso profissional à condição de ser autista, às suas características quanto ao modo de pensar e perceber (GRANDIN, 1992, 1995, 2006; GRANDIN, JOHNSON, 2006; SACKS, 1995). Autorreflexões como essas eram consideradas até bem pouco tempo impensáveis para uma pessoa diagnosticada autista.

    Certamente essas duas mulheres não constituem amostra de uma maioria, mas presentificam potenciais, potenciais creditados e fomentados por professores (Destaque para Anne Sullivan, na relação com Keller, e dr. Carlock para com Grandin). Suas trajetórias questionam e rompem teorias diagnósticas e prognósticas, e dessas rupturas essas autoras puderam trazer a público seus trabalhos, escritos, experiências e linguagens. Neles está presente o diferencial – e os desafios - de ser e se relacionar em um mundo que não lhes é de imediato acessível e compreensível de maneira similar ao percebido pela maioria das pessoas, em virtude de peculiaridades e possibilidades de experiência acedidas pelo corpo.

    Em Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty sublinha que a experiência motora de nosso corpo [...] nos fornece uma maneira de ter acesso ao mundo e ao objeto, [...] que deve ser reconhecida como original e talvez como originária (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 195)². Ou seja, um original que exprime um modo de existir. Assim, como o objetivo da tese era desvendar qualitativos da percepção do espectro autista pela perspectiva de quem os experiencia, isto é, pelo que afeta/impacta primordialmente o corpo da pessoa com TEA, a fenomenologia de Merleau-Ponty constituiu-se a principal interlocutora do trabalho.

    Consoante a ela, o método adotado foi fenomenológico. Isso significa que não houve um roteiro predeterminado, com sequência de procedimentos válidos em caráter universal, como o seria na clássica objetividade da ciência. A fenomenologia, como postulam Husserl (2001) e Merleau-Ponty (1945/2011), busca descrever a realidade do modo como se apresenta (fenômeno) ao pesquisador. Para tanto, é preciso por em suspenso explicações e análises que seriam naturais, preestabelecidas, seja pela ciência, seja pelo cotidiano, inclusive as próprias crenças. Vem a esse encontro a reflexão de Masini (1994): não existe ‘o’ o ou ‘um’ método fenomenológico, mas uma atitude – atitude do ser humano para compreender o que se mostra, livre de preconceitos ou de definições.

    Por certo as definições do conhecimento formal e do cotidiano estão presentes, haja vista que estão no mundo, assim como nele estão o pesquisador e o fenômeno. O desafio está em não estar a serviço da ratificação do conhecido. Em nosso caso, não se pretendeu confirmar ou negar critérios diagnósticos ou de teorias sobre o autismo, mas desvelar meandros da condição de ser autista e compreendê-los.

    Partimos da seguinte interrogação: de que modos a condição de ser autista – de um corpo que se faz existente sob características autistas - intervém na maneira de perceber e se relacionar no mundo?

    Teoricamente, estaríamos no terreno das respostas, dada a atuação desta autora no âmbito da Educação Especial como psicopedagoga e professora e, nessa trajetória, ter conhecido vários sujeitos com TEA, mas o fenômeno insistia, como diz Boemer (1994), em pedir iluminação. Segundo a literatura clínica, maneirismos corporais das pessoas diagnosticadas autistas, como o movimento em pêndulo, o ato de tapar os ouvidos, a fuga de ambientes ruidosos e a fixação do olhar em certos objetos seriam comportamentos inerentes ao transtorno e evidências importantes para a confirmação do diagnóstico. Entretanto (novo questionamento), ainda que o sejam, o que enunciariam (linguagem)?

    Começamos por revisitar, no solo da Educação Especial, concepções desenvolvimento humano constituintes desse campo de estudo e que prosseguem constitutivas dos diagnósticos e prognósticos que se endereçam a educandos com deficiência. Do tradicional modelo médico aos atuais princípios de educação inclusiva e perpassando o valioso resgate da literatura de Vygotsky (1993) sobre desenvolvimentos atípicos, identificamos que a dimensão do corpo (para além do funcionamento orgânico) é ainda um tema escasso na literatura científica, principalmente quanto a condições neurodiversas.

    Diante das lacunas, consultamos experiências documentadas em pesquisas: testemunhos de pessoas cegas, surdas e surdocegas, os quais subsidiaram estudos sobre corporeidade sob o enfoque fenomenológico (MASINI, 1994, 2002; MASINI et al., 2012; PORTO, 2002; MARQUES, 2007, 2008). O autismo não é elencado entre as condições de deficiência sensorial (na acepção de perda ou baixo funcionamento de um ou mais sentidos), mas nele figuram alterações sensoriais importantes, como a hipersensibilidade a certos cheiros, sons, alimentos e texturas. Todavia, ainda que literatura enumere essas características, raramente foca a totalidade identitária de corpo no mundo, tal qual nas pesquisas mencionadas neste parágrafo.

    Prosseguindo, se constatamos que muito se diz sobre o TEA - e que a partir desse conhecimento foram propostas pedagogias e terapias -, também identificamos que pouco ainda se diz sob, ou seja, por dentro, pelo viés de ser autista, apesar do destaque midiático e científico notório nas últimas duas décadas - entrevistas, vídeos, filmes, livros e sites em que pessoas com TEA aparecem como protagonistas, algumas com fama mundial por seu ativismo e publicações, como Temple Grandin, Donna Williams e Tito Mukhopadhyay.

    Temple Grandin diz de si e da história do autismo, tanto pelo pioneirismo e extensão de sua obra, quanto pelo destaque pessoal e profissional alcançado, e ainda por ter se tornado pesquisadora autodidata sobre autismo. Nisso, faz referência às próprias experiências e às de outras pessoas com TEA em que revela a diversidade e os qualitativos do espectro. Esses motivos e o acesso bibliográfico nos levaram a priorizar seus escritos para descrição e submissão ao diálogo com as indagações da pesquisa e com os autores da fundamentação teórica, especialmente com a Fenomenologia da percepção (MERLEAU-PONTY, 1945/2011). Nesse entrelaçamento figura-se o olhar – tanto o olho concreto, enquanto capacidade visual aguçada e preponderante de perscrutar e neurofuncionar, quanto o olho metafórico da abstração sensível. No fundo, duas faces da (e na) mesma corporeidade.

    Por fim, redigimos as Considerações sob a metáfora de uma arqueóloga que escavou um fenômeno, mas sem a ilusão de ter desvendado o sítio. Dos contributos para a Educação, chamamos atenção para a acuidade do olhar e para o cuidado frente a leituras patologizantes: será que estamos suficientemente inclusivos frente aos sentidos e intenções manifestos por uma corporeidade que foge ao foco de nossas lentes?


    ¹ Para conhecerem, vejam . Acesso em: 25 set. 2014.

    ² A obra Fenomenologia da Percepção foi publicada em 1945. A fonte consultada data de 2011. Por se tratar de um clássico, fazemos a referência no formato (1945/2011), condizente à ABNT.

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    PROPOSIÇÕES DE EDUCAÇÃO PARA PESSOAS CONSIDERADAS (Negativamente) ESPECIAIS

    A educação da pessoa com deficiência foi e ainda tem sido norteada pelo campo da Saúde. As referências teórico-científicas que partem do conhecimento das condições orgânicas influenciam a Educação Especial e constituíram seu campo científico, desde as premissas que enfatizam o papel do amadurecimento do organismo até as que ressaltam a importância do ambiente (incluindo a educação) e, mais amplamente, das mediações socioculturais para potencializar o aparato biológico. Portanto, cumpre conhecer um pouco desse histórico, teorias e concepções, haja vista que olhar de negatividade (centrado no déficit) tem raízes históricas que por vezes nos condicionam a um modo de enxergar.

    1.1 Marcas do modelo médico

    A educação de pessoas com desenvolvimento atípico em razão de uma condição orgânica diferenciada esteve, historicamente, muito mais atrelada ao campo de estudos da Saúde do que da Pedagogia. As instituições para a educação de pessoas com deficiência se constituíram à parte do sistema educacional comum (regular), sob o pressuposto de que esse alunado não aprenderia senão sob certas condições e intervenções especialmente orientadas a partir do conhecimento do quadro clínico. Assim, o diferencial de uma escola especial estaria no acompanhamento médico ou de uma equipe clínica e na proposição de um currículo, atividades, recursos pedagógicos e metodologias desenvolvidos em consonância com o nível de capacidade orgânica avaliado.

    A perspectiva inclusiva de educação, segundo a qual todos os estudantes devem estudar juntos nas escolas comuns (regulares) dos sistemas de ensino e entendendo-se que as escolas e sistemas precisam atender a todas as diferenças na diversidade, é uma contraposição muito recente. A lógica das escolas especiais começou a ser questionada na década de 1960 em alguns países europeus (MENDES, 2006), e somente a partir de 1994, com a Declaração de Salamanca - Sobre Princípios, Políticas e Práticas na Área das Necessidades Educativas Especiais (UNESCO, 1998), os conceitos de escola e

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