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Inclusão, Diferenças e Alteridade: A Experiência no Encontro Com o Outro
Inclusão, Diferenças e Alteridade: A Experiência no Encontro Com o Outro
Inclusão, Diferenças e Alteridade: A Experiência no Encontro Com o Outro
E-book341 páginas3 horas

Inclusão, Diferenças e Alteridade: A Experiência no Encontro Com o Outro

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Sobre este e-book

Inclusão, diferenças e alteridade: a experiência no encontro com o outro é o enredamento que se dá neste livro. Pressupondo a inclusão escolar como um dispositivo da governamentalidade neoliberal, que quer capturar a todos para seus jogos de mercado, este livro pretende mostrar que a entrada da alteridade deficiente na escola está também proporcionando um encontro com o outro. Ao trazer a "questão das diferenças" como um enunciado que perpassa as pedagogias da escola, a inclusão escolar sugere uma experiência que, no encontro com o outro, produz um tipo de subjetividade sensível às diferenças. Essas subjetividades são capazes de propor novos modos de viver com o outro, afastando-se dos processos de normalização e de condução do outro à mesmidade.

É uma leitura interessante para aqueles/as que desejam pensar a inclusão escolar para além das práticas normalizadoras que querem fazer do outro – o sujeito com deficiências – um outro eu. Torna-se instigante porque está marcada pelas investigações da autora sobre as práticas de inclusão em uma realidade escolar, as quais conduzem os(as) professores(as) a uma experiência com o outro que aponta um limiar ético da alteridade.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento26 de set. de 2019
ISBN9788547318673
Inclusão, Diferenças e Alteridade: A Experiência no Encontro Com o Outro

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    Inclusão, Diferenças e Alteridade - Neusete Machado Rigo

    autora

    SUMÁRIO

    I PARTE

    DAS TECITURAS E DOS ENREDAMENTOS

    1

    TRAJETÓRIAS E EXPERIÊNCIAS

    2

    DAS PERSPECTIVAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS E SUAS FERRAMENTAS

    3

    DOS ENREDAMENTOS ENTRE INCLUSÃO, DIFERENÇAS E PEDAGOGIA

    3.1 SOBRE GOVERNAMENTALIDADE E INCLUSÃO 

    3.2 A INCLUSÃO ESCOLAR 

    3.2.1 A inclusão escolar como um acontecimento discursivo

    3.2.2 A inclusão escolar como um dispositivo biopolítico 

    3.3 AS DIFERENÇAS: EMERGÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS 

    3.3.1 Da necessidade de subverter a diferença representada

    3.3.2 As diferenças e a questão do Outro 

    3.4 A PEDAGOGIA COMO INSTRUMENTO DE UMA GOVERNAMENTALIDADE

    3.4.1 Na pedagogia, um governamento que não se efetiva

    3.4.2 A governamentalidade operando na pedagogia pelos processos

    de subjetivação

    II PARTE

    EFEITOS DE UMA GOVERNAMENTALIDADE NA PEDAGOGIA

    4

    O DISPOSITIVO DA INCLUSÃO ESCOLAR E SUA PRODUTIVIDADE

    4.1 MARCAS DA INCLUSÃO NA PEDAGOGIA DA ESCOLA 

    4.2 DAS LINHAS PRODUTIVAS DO DISPOSITIVO DA INCLUSÃO 

    4.2.1 A inclusão como processo de sensibilização que produz

    subjetividades inclusivas 

    4.2.2 A inclusão que normaliza e conduz o Outro ao Mesmo 

    4.2.3 Do dispositivo da inclusão escolar, um enunciado sobre as diferenças 

    5

    ENUNCIADOS QUE FISSURAM O DISPOSITIVO DA INCLUSÃO EM DIREÇÃO ÀS DIFERENÇAS

    5.1 PONTOS E AMARRAS DE UMA GOVERNAMENTALIDADE 

    5.2 OS EFEITOS DOS ENUNCIADOS DAS DIFERENÇAS 

    5.2.1 O encontro com o Outro que se faz como pedagogia que hospeda 

    5.2.2 A pedagogia que se fissura para fazer da alteridade um limiar ético 

    III PARTE

    SOBRE ALTERIDADE: DO ENCONTRO COM O OUTRO E DA EXPERIÊNCIA QUE PRODUZ SUBJETIVIDADES SENSÍVEIS ÀS DIFERENÇAS

    6

    PEDAGOGIAS QUE PRODUZEM ENCONTROS COM O OUTRO

    6.1 ENCONTROS QUE DESCONSTROEM MODOS DE REPRESENTAÇÃO 

    6.2 O LIMIAR ÉTICO DA ALTERIDADE NA EXPERIÊNCIA COM O OUTRO 

    REFERÊNCIAS

    I PARTE

    DAS TECITURAS E DOS ENREDAMENTOS

    Nessa primeira parte, discorro sobre minhas trajetórias e envolvimentos com a inclusão escolar, para esclarecer sobre as inquietações que impulsionaram esta escrita. Faço aqui um esforço teórico para situar o/a leitor/a na complexa tecitura que se dá entre três fios: a inclusão escolar, as diferenças e a pedagogia. Para isso, apoio-me em perspectivas teóricas e conceitos que problematizam a inclusão escolar como uma verdade desse tempo e como um dispositivo que conduz formas de vida; as diferenças como emergências na contemporaneidade; e a pedagogia como produtora de subjetividades, que tanto reforçam processos de normalização e de anulação do Outro, como também toma a questão das diferenças como um desafio permanente para que o outro possa ocupar o seu lugar, e não um lugar no lugar do outro.

    CAPÍTULO 1

    TRAJETÓRIAS E EXPERIÊNCIAS

    Existem momentos na vida

    onde a questão de saber se se pode pensar

    diferentemente do que se pensa, e perceber

    diferentemente do que se vê,

    é indispensável para continuar a pensar e refletir.¹¹

    Esse momento da vida, ao qual Foucault se refere na epígrafe acima, é para mim resultado das experiências que me afetaram ao atuar em espaços de gestão municipal, coordenando processos de inclusão escolar na educação básica provocados pela Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva/2008. E, ainda, compõem essa experiência as atividades de ensino, pesquisa e extensão que desenvolvi como docente no ensino superior.

    A escrita deste livro se dá a partir dessas experiências que foram constituindo minha subjetividade e, simultaneamente, dando certo contorno à minha postura de pesquisadora acerca dos problemas relacionados aos processos de inclusão escolar. Assim como Meyer e Soares¹², também compreendo que

    [...] pensamos, falamos e escrevemos a partir de determinados lugares; […] que estes lugares são móveis e instáveis, uma vez que se delineiam pela tessitura entre referenciais teóricos e interesses políticos, exigências acadêmicas e emoções.

    Por isso, apresento, inicialmente, os deslocamentos que fui fazendo/sofrendo para chegar à problemática em que se enreda esta escrita.

    Minhas relações com a inclusão escolar passam por diferentes espaços profissionais e, em cada um deles, percebo a importância das experiências que vivi, para provocar em mim o interesse em olhar um pouco mais sobre ela na configuração do presente. Estive diretamente envolvida com as políticas de inclusão, desde o ano de 2009 em espaços da administração pública e nos de ensino, pesquisa e extensão na universidade: a) na gestão pública: atuei como protagonista na construção de uma política municipal para a inclusão escolar; b) na academia: no ensino, por trabalhar em cursos de licenciatura disciplinas relacionadas à educação inclusiva; na pesquisa: pelo envolvimento em projetos de investigação sobre o contexto das políticas e práticas pedagógicas desenvolvidas por municípios e escolas nos processos de inclusão; e, principalmente, nos trabalhos de extensão universitária, pelas vivências nos espaços escolares, por intermédio de projetos relacionados à formação de professores e inclusão escolar.

    Para explicar como essas experiências foram provocando deslocamentos no meu pensamento, transformando-o em outras ideias e compreensões, motivadoras para a escrita deste livro, apoio-me em Larrosa quando diz que:

    A experiência é isso que me passa. […] um acontecimento ou, dito de outro modo, o passar de algo que não sou eu, […] que não depende de mim, que não é uma projeção de mim mesmo, que não é resultado de minhas palavras, nem de minhas ideias, nem de minhas representações, nem de meus sentimentos, nem de meus projetos, nem de minhas intenções, que não depende nem do meu saber, nem de meu poder, nem de minha vontade. […] Mas, supõe […] algo que me passa. Não que passa ante mim, ou frente a mim, mas a mim, quer dizer, em mim. A experiência supõe um acontecimento exterior a mim. Mas, o lugar da experiência sou eu. É em mim (ou em minhas palavras, ou em minhas ideias, ou em minhas representações, ou em meus sentimentos, ou em meus projetos, ou em minhas intenções, ou em meu saber, ou em meu poder, ou em minha vontade) onde se dá a experiência, onde a experiência tem lugar.¹³

    A experiência transformou-me como sujeito da experiência, porque ela é uma relação com algo que não sou […] é uma relação em que algo tem um lugar em mim […] é uma relação em que algo passa de mim a outro e do outro a mim¹⁴. E o meu encontro com o Outro é tanto com aquele (professor/a, aluno/a da educação especial ou não) que vive nos espaços institucionais pelos quais percorri até o momento lidando com a inclusão, como também com o Outro (pesquisadores, teóricos) que encontrei nas leituras que empreendi ao longo dessas trajetórias.

    As leituras, longe de serem âncoras para amparar as aflições que iam desestabilizando-me nas ações que empreendia, eram a tentativa de estabelecer releituras para continuar a pensar, porque sempre existe um texto já escrito e já lido que temos de aprender a ler de outro modo¹⁵. Elas foram produzindo experiências, constituindo minha subjetividade e, ao mesmo tempo, dando forma aos referenciais teórico-metodológicos aos quais fui me aproximando. Obviamente, não traziam respostas às minhas inquietações, embora tenha que reconhecer que, em alguns momentos, estava em busca delas, mas fui percebendo com Larrosa que a experiência da leitura trazia até mim a esperança de que elas pudessem ajudar a formar ou transformar meu próprio pensamento, a pensar por mim mesma, com minhas próprias ideias, pois a experiência supõe travessia, supõe uma saída de si para outra coisa¹⁶.

    Uma experiência é sempre inenarrável e indescritível porque é singular. Assim, com o propósito de trazer à luz algumas nuances dessa experiência, apresento-a em três atos de tempos e espaços e, em cada um deles, descrevo curvas, esquinas, perigos, abandonos e encontros que a constituíram.

    Primeiro ato: durante quase 30 anos de atuação como pedagoga, em escolas e órgãos de gestão pública na educação básica, estive envolvida com processos político-pedagógicos interessados em romper com práticas tradicionais e conservadoras. Conduzida por referenciais e princípios democráticos e, por isso, engajada na luta pela educação para todos, em um determinado momento, encontrei-me completamente envolvida com a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva/2008, quando estava coordenando o departamento pedagógico da Secretaria de Educação de um município da região noroeste do estado do Rio Grande do Sul. A responsabilidade implícita nessa função pública capturou-me de tal forma, que não tinha como escapar dos compromissos exigidos pelo sistema de ensino para a implementação da política nacional de inclusão. Participei efetivamente do empreendimento de esforços para a construção de uma política municipal de educação especial para a rede de ensino desse município, que pudesse dar conta dos aspectos político-administrativos e pedagógicos inerentes a uma política pública.

    Nesse momento, atuava sob os efeitos de um poder – político-administrativo e científico – que produzia a inclusão como uma verdade sendo aplicada a todo um corpo social (escolas, famílias e outras instituições administrativas, políticas e jurídicas) e fazia de mim instrumento desse poder/saber. Porém ainda não tinha visibilidade da complexa rede dos efeitos produtivos de um poder de Estado neoliberal sobre o processo de inclusão escolar. Por meio de discursos morais e éticos, assegurados, principalmente, de forma científica pela Psicologia e pela Medicina Clínica, como expertises que encorajavam a Pedagogia a ampliar sua condição, a inclusão parecia materializar-se no trabalho que vinha desenvolvendo. A cada dia, mais professores se envolviam, novas práticas surgiam e, consequentemente, mais alunos eram identificados como público da educação especial e, por isso, formava-se uma demanda urgente sobre a gestão da inclusão escolar.

    Todavia, esse movimento provocou reestruturações na rede municipal e levou-me a buscar conhecimentos sobre a educação especial. Na minha formação e atuação como educadora nunca havia sentido necessidade deles, pois nas escolas comuns onde atuei como professora e gestora, esses conhecimentos não eram necessários, afinal, as crianças com deficiências não estavam lá, estavam nas escolas especiais, e o entendimento era de que lá era o lugar delas. Mas, no momento em que me deparei com a política nacional na gestão, tudo foi mudando. Quanto mais saberes eu buscava, mais poder detinha para exercê-lo sobre os demais sujeitos, e maior era o envolvimento e a rede de ações, táticas e estratégias que criávamos (na secretaria de educação) para garantir a inclusão das crianças que eram identificadas como público da educação especial.

    Porém, ao aproximar-me de pesquisas e leituras filiadas em discussões que tratam da inclusão na contemporaneidade sob o contexto das políticas neoliberais, passei a suspeitar do que vinha pensando e fazendo a respeito da inclusão escolar. Esses estudos levaram-me a compreender que, além de princípios éticos e morais presentes nos processos de inclusão, há também um viés político que não pode ser ignorado, se quisermos nos manter afastados de posturas ingênuas, enquanto investimos esforços nessa direção.

    Compreendi que a inclusão das pessoas com deficiências na escola comum é, também, uma estratégia para capturar a todos, para que ninguém fique fora do jogo econômico do neoliberalismo contemporâneo, pois para ele a inclusão de todos é uma necessidade. A inclusão é condição para que os indivíduos possam participar dos jogos de mercado, desenvolvendo-se competitivamente, pois tanto os ditos normais quanto os ditos anormais interessam ao neoliberalismo. Como Menezes¹⁷ apresenta em suas pesquisas, o Estado neoliberal tem interesse em investir na produção de subjetividades inclusivas, tanto por meio de processos de normalização dos sujeitos com deficiências, quanto por visualizar a inclusão como diretriz de conduta dos indivíduos para a seguridade da vida em sociedade, mobilizando a todos para que se envolvam e, assim, façam com que ela aconteça.

    Nesse sentido, observando as práticas que vínhamos empreendendo para que a inclusão se efetivasse nas escolas comuns desse município, percebi o quanto estávamos envolvidos com práticas normalizadoras. Então, passei a me preocupar com o que estávamos colocando em funcionamento com a implantação da política de inclusão, porque se entrássemos nessa lógica sem nos darmos conta do que estávamos fazendo, estaríamos alimentando a perversa pretensão neoliberal. Mas, enfim, seria possível nos mantermos afastados dessa armadilha?

    Para mim, vinda do campo das lutas sociais, sempre protagonizando a democratização da sociedade, a igualdade de direitos, a conquista desses para todos e, entre eles, o direito à educação, tornava-se difícil entender e aceitar que nas regras do neoliberalismo contemporâneo está a não exclusão. Esse alerta colocou-me à espreita para pensar os esforços que vinha empreendendo em prol da inclusão das crianças e adolescentes com deficiências nas escolas comuns.

    Nas diversas atividades em que participei, no conjunto das escolas, em momentos de formação continuada e no acompanhamento das suas práticas escolares, foi possível observar convencimentos e resistências em relação à inclusão escolar como efeitos de um poder-saber em funcionamento. Percebi, nas práticas dos professores, o poder em ação, produzindo saberes, novos poderes, resistências e subjetivações. Podia perceber que, ali, no meio do caminho, surgia um problema que provocaria meu pensamento, porque estava duvidando de um sentido consensual, de uma concepção partilhada, que tinha o cheiro de algo natural¹⁸, ou seja, havia algo mais a ser pensado sobre a necessidade da inclusão. Como Deleuze¹⁹, ao dizer que o meio não é uma média, mas é o lugar onde as coisas adquirem velocidade, como um riacho que rói suas margens e adquire velocidade no meio, não no início e nem no fim, foi no meio desse caminho que comecei a questionar sobre a necessidade e a possibilidade da inclusão escolar.

    Segundo ato: como docente em cursos de licenciatura na universidade, estive envolvida com projetos de extensão e de pesquisa sobre a inclusão escolar, tendo em vista que os municípios e as escolas de sua abrangência estavam influenciados pelas políticas educacionais vigentes e demandavam à universidade tarefa conjunta. De fato, o poder que essa verdade – a inclusão – produzia não estava somente na educação básica, mas no enredamento da universidade como uma expertise, como mais um instrumento para colocá-la em funcionamento. Como efeito das experiências de leituras, Foucault ajudou-me a alargar compreensões sobre a verdade ao dizer que ela é deste mundo; ela é produzida nele, graças a múltiplas coerções e, nele produz efeitos regulamentados de poder²⁰. Assim, não restrita à universidade como instrumento dessa verdade, também identifiquei a estrutura jurídica da Promotoria da Justiça Regional da Educação, que envolvia, regionalmente, os municípios numa ação integrada de planejamento e monitoramento das suas ações para a garantia do direito à educação e, entre elas, estava a inclusão como meta a ser alcançada por todos os municípios.

    Os municípios encontravam-se tensionados pela Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva/2008, principalmente pelo recebimento das salas de recursos multifuncionais e a necessidade de implementá-las. Todavia, em generalizado estado de desconhecimento sobre o tema, buscavam apoio nos trabalhos de extensão da universidade.

    A experiência, à qual estava subjetivada até o momento, permitiu-me perceber o poder de uma verdade que estava induzindo a ação dos gestores, centrada na forma de um discurso científico e numa constante incitação econômica e política e ainda, produzida sob o controle, não exclusivo, mas dominante²¹. Nesse caso, de um lado, por um aparelho político-jurídico, representado pela Promotoria da Justiça Regional de Educação e, de outro, por um aparelho político-administrativo, o Estado e sua política de inclusão escolar. Era visível como esse poder político-jurídico-administrativo se expandia nos espaços escolares dando continuidade aos efeitos do poder que, como feixes, atuavam de forma ilimitada, estruturando o campo de ação dos outros²², ou seja, conduzindo a ação dos gestores escolares, professores, alunos e, provavelmente, suas famílias.

    Terceiro ato: trabalhos com atividades de extensão concentraram minha atuação em uma única escola e, por isso, destinando mais tempo em seus espaços, pude perceber o esforço que ela dispendia para ser uma escola inclusiva. O discurso da inclusão estava circulando por todos os espaços dessa escola. Ela debruçava-se na revisão e reorientação da sua proposta pedagógica e dos seus planejamentos de ensino, na formulação da proposta de formação continuada aos professores, na organização da sala de recursos multifuncionais, nas transformações arquitetônicas para a acessibilidade, na produção de tecnologia assistiva, e ainda, na formação inicial de professores, no Curso Normal²³ em funcionamento nessa escola.

    Existia, portanto, um conjunto de práticas que intensificavam um discurso sobre a inclusão, os quais estavam direcionando meus interesses de estudo. Porém, em um deslocamento de pensamento, observei que se dispersavam nesse contexto enunciados²⁴ sobre a questão das diferenças associadas ao discurso da inclusão. Minha experiência de pensamento passou a se engajar no interesse de colocar em funcionamento um outro modo de pensar, de analisar, de atribuir sentidos e, principalmente, de interrogar o contexto da inclusão escolar e suas relações com as diferenças. Assim, passei a olhar mais detidamente sobre as relações entre a inclusão e as diferenças e compreender que a regra da não exclusão, discutida por Foucault²⁵, como uma estratégia do neoliberalismo do Estado moderno, que associa o social ao econômico, está presente também nas políticas de inclusão. Essa regra da não exclusão tem como função garantir a seguridade social e, associada ao poder econômico, defende a inclusão dos sujeitos (pela não exclusão) aos jogos do mercado. É uma regra que associa o social ao econômico e cada indivíduo é identificado como um potencial produtivo, consumidor, e necessário às malhas produtivas do capital, por isso a não exclusão passa a ser interessante ao mercado. De acordo com essa perspectiva é imprescindível que as diferenças sejam convidadas a participar e circular entre nós, porque elas alimentam a competitividade que produz um capital humano que estará sempre se reatualizando para manter-se como diferencial.

    Assim, fui percebendo que aquele envolvimento que eu tinha com a inclusão, numa perspectiva ética, no início dos meus afetos²⁶ com ela, quando ainda estava na Secretaria Municipal de Educação, foi se alterando pela força da experiência do pensamento. A problemática em torno dela me dizia outras coisas. Como passei a ver o que não via antes? É sobre esse modo de ver a inclusão e as possibilidades de convívio com o outro que vou tecendo esta escrita.

    CAPÍTULO 2

    DAS PERSPECTIVAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS E SUAS FERRAMENTAS

    Uma crítica não consiste em dizer que as coisas não estão bem como estão.

    Ela consiste em dizer sobre que tipos de evidências,

    de familiaridades,

    de modos de pensamentos adquiridos e

    não refletidos repousam as práticas que se aceitam.

    […] A crítica consiste em […] mostrar

    que as coisas não são tão evidentes quanto se crê,

    fazer de forma que isso que se aceita como vigente em si,

    não o seja mais em si.²⁷

    Para fazer uma crítica sobre o que vinha pensando e fazendo em relação aos processos de inclusão, não poderia fazê-la sem utilizar-me de algumas lentes teóricas que pudessem tornar visíveis outras questões ou outros ângulos de observação. Utilizando-me de estudos que problematizam e ampliam compreensões éticas e políticas sobre a inclusão escolar e as diferenças, fiz da experiência da leitura²⁸ possibilidade para revisar as visibilidades construídas até o momento, para continuar pensando.

    A escrita deste livro segue uma metodologia que se associa às pesquisas qualitativas em educação como um campo investigativo que se afasta da rigidez, porém não ignora a rigorosidade para desenvolver a ciência como um exercício de compreensão da realidade num determinado contexto, com um certo propósito e, em uma dada contingência²⁹. Para tecê-la, tomo como referência especialmente a realidade de uma escola pública de educação básica que oferece curso destinado à formação inicial de professores, em nível médio. Descrevo e analiso práticas levantadas nessa realidade a partir de projetos de extensão e de pesquisa que desenvolvi nessa escola no período de 2013 a 2016. Os dados consistem em excertos retirados de documentos da escola e de documentos político-normativos dos sistemas de ensino nacional e estadual, além de depoimentos dos sujeitos da escola, obtidos em momentos de formação continuada e de reuniões pedagógicas promovidas pela própria escola, e registrados em um diário de campo. Participei desses como observadora, fazendo registros em um diário de campo. Para fazer essa análise das práticas, utilizo alguns conceitos teórico-metodológicos que encontro no pensamento de filósofos rebeldes³⁰ ou transgressores, como Nietzsche (1844-1900), Foucault (1926-1984), Deleuze (1925-1995) e Derrida (1930-2004), que aparecem assim nominados em algumas literaturas, porque não se limitaram a tratar de questões já conhecidas, mas transgrediram e problematizaram a herança filosófica que vinha orientando o pensamento ocidental. É uma escrita que não se faz na linearidade, mas em deslocamentos e retomadas.

    Além desses filósofos, o pensamento de Lévinas (1906-1995) constitui-se como um fio aproximativo para discutir sobre os efeitos que os enunciados sobre as diferenças podem produzir no encontro com o Outro. O pensamento de Lévinas e Derrida, acerca do acolhimento e da hospitalidade, contribuem significativamente para pensar esse encontro. Embora existam diferenças entre os pensadores citados anteriormente, a filosofia de Lévinas contribui para discutir neste livro a produção de subjetividades sensíveis às diferenças, as quais são somente um possível do impossível que se dá no encontro com o Outro, na abertura para o Outro. Das leituras de Lévinas tomo algumas contribuições de seu pensamento, relacionadas à questão da alteridade e da vulnerabilidade do Eu diante do Outro, que se torna responsável por esse. Lévinas diz sobre a responsabilidade como a estrutura primeira e fundamental da subjetividade, porque a subjetividade não é um para si; é, uma vez mais, inicialmente para o outro³¹.

    Em Totalidade e Infinito³², Lévinas explica como constrói um pensamento que se propõe a compreender o ser como exterioridade para romper com a ideia de totalidade em que se reserva a subjetividade. Ele se contrapõe à ideia do pensamento cartesiano que instituiu a subjetividade como o porto seguro de todas as certezas, propondo sua reconstrução a ser "abordada não a partir da centralidade do sujeito autônomo e soberano, mas, a partir da alteridade do Outro³³. Destituindo o sujeito do império da filosofia do Mesmo ele procura reconstruir a subjetividade não mais na perspectiva do sujeito soberano […] mas, na perspectiva de edificação de uma subjetividade acolhedora, exposta e vulnerável ao Outro"³⁴.

    Ao propor a reconstrução da subjetividade, ele refere-se a uma ética da alteridade possível mediante o acolhimento e a sensibilidade que, no encontro com o outro, transforma-se em vulnerabilidade desse.

    Embora o pensamento de Lévinas sofra certas incompreensões em suas abordagens, sendo identificado como um defensor de uma filosofia moral, ele é tido como um dos mais inovadores do século XX. Sua obra desloca o centro da subjetividade para a alteridade, depondo-a da sua soberania e lançando-a a uma responsabilidade pelo outro, o outro que é infinitamente outro. Isso é para mim e nessa escrita uma questão central para pensar que a experiência da inclusão escolar possa produzir uma ética da alteridade, que sensibiliza pela diferença e acolhe.

    Segundo Mônica Cragnolini³⁵, filósofa argentina, a obra levinasiana não é uma filosofia moral ou edificante, mas a tentativa de pensar a alteridade de forma radical. Lévinas não propõe que pensemos o homem com novas características, mas fala de uma desconstrução dos modos habituais de pensar o homem nos humanismos e nas filosofias do Mesmo, que esquecem ao outro³⁶. Essa filósofa também afirma que, sob essa perspectiva, Nietzsche e Lévinas podem aproximar-se na crítica radical ao modo de conceber o homem nos humanismos. Podem ser considerados como pensadores que tratam da alteridade, pois ambos criticam a subjetividade moderna que busca em si uma totalização.

    A partir dessas perspectivas teóricas, escolho, em especial, das teorizações foucaultianas, três ferramentas teórico-metodológicas – governamentalidade, dispositivo e subjetividade – para discutir sobre os enredamentos entre a inclusão escolar, as diferenças e as pedagogias³⁷ que se constituem nas práticas pedagógicas de uma escola. Além dessas, também utilizo outros conceitos, tais como: biopolítica, enunciado, hospitalidade, desconstrução e experiência.

    Sobre o uso desses conceitos é importante dizer que um conceito não é algo dado, a ser explicado, como geralmente se utiliza dessa noção, mas ele é um operador, algo que faz acontecer, que produz³⁸. Por isso, como Deleuze e Guattari³⁹ nos dizem, os conceitos são criados pelos filósofos para fazer pensar. Gallo corrobora que eles são uma forma de transformar o mundo. São como armas que podemos dispor para fazer a crítica sobre o mundo para instaurar outros mundos. Com eles podemos reagir às opiniões generalizadas:

    […] o conceito não deve ser procurado, pois não está aí para ser encontrado. O conceito é um dispositivo que faz pensar, que permite, de novo, pensar. O que significa dizer que o conceito não indica, não aponta uma suposta verdade, o que paralisaria o pensamento; ao contrário, o conceito é justamente aquilo que nos põe a pensar.⁴⁰

    A seguir, descrevo em linhas gerais a noção que adotei para o uso desses conceitos teórico-metodológicos neste livro, perpassando tanto pela inclusão escolar, quanto pelas diferenças e pela pedagogia:

    Governamentalidade. Compreendida como arte de governar, a governamentalidade é um conceito que possibilita a identificação as relações entre o governamento de

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