Empresariamento da Vida: A Função do Discurso Gerencialista nos Processos de Subjetivação Inerentes à Governamentalidade Neoliberal
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Empresariamento da Vida - Aldo Ambrózio
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO PSI
À memória de tia Maria Brózio, que sempre me ensinou a buscar forças onde elas pareciam não existir e cuja dolorosa morte irrompeu-se no desenrolar deste trabalho desenvolvido simultaneamente ao outro necessário à elaboração do seu luto.
À memória de Henrique Marcusso, que me lembrou, antes de partir com Ezra’eil ( ), que havia me conhecido com coragem.
À Izolina Pereira Ambrózio e Pedro Ambrózio, cujo amor gerou o corpo e a forma subjetiva que expressa as palavras que compõem este estudo.
AGRADECIMENTOS
Uma vida, uma obra, uma pesquisa ou um trabalho qualquer são constituídos tanto por suas miríades de pequenos corpos que lhe dão a consistência e o gradiente de abertura aos afetos que os prendem ao mundo quanto pelos encontros com os quais se povoa das intensidades necessárias para que subsista aos obstáculos que a matéria e este mesmo mundo explodido aos pedaços lhe apresenta.
Personalizar esses encontros, às vezes, torna-se difícil, porque retemos em nossas consciências somente as alegrias e tristezas que deles resultam e também porque as outras pessoas e ideias com as quais nos encontramos já são, elas mesmas, uma miríade de outros corpos, afetos e intensidades. Assim, a tentativa de agradecimento, elencada nas linhas que seguem, mover-se-á na perspectiva de nomear aqueles encontros que antes e durante a elaboração deste estudo permitiram que o corpo e a forma subjetiva, por meio dos quais as forças que nele falam vieram a se expressar em corpos linguísticos, fossem habitados por alegrias das quais necessitou para suportar o desassossego trazido pelos problemas ao qual o estudo fez referência. Portanto, o uso do pronome pessoal em primeira pessoa que se seguirá se dá muito mais por uma questão de conveniência do que pelo fato de tomar-se como um Eu
portador de uma identidade e que fala unicamente a partir dela.
Um primeiro encontro ocorreu em uma data bem anterior às condições que permitiram a existência deste livro. Foi em uma manhã de sexta-feira do mês de agosto de 2002, em uma pequena cidade do norte do estado do Espírito Santo, denominada Nova Venécia, durante um evento de formação de professores municipais. Nessa época, o sujeito que aqui escreve lecionava Matemática aos alunos de ensino fundamental em uma das escolas do referido município. Terminava a especialização em Finanças Corporativas na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e fora aprovado em um concurso público da Petrobrás como Administrador Júnior. Estava até contente em adentrar para uma carreira burocrática que, certamente, corroeria por completo as possibilidades de variação que posteriormente se apresentariam. Conheci, então, o professor Romualdo Dias, a quem agradeço o desvio da rota rumo à burocracia e também o acordar no dia seguinte sentindo-me como o personagem Gregor Samsa de Kafka: cheio de pequenas perninhas que não conseguia controlar ou saber para que serviriam e que me trouxeram a estranheza necessária às desterritorializações que daí seguiram.
Um segundo encontro ocorreu durante o mestrado em Administração, também realizado na Ufes, no transcorrer dos anos de 2003 e 2005, que tinha por área de concentração a relação entre as tecnologias de gestão e os processos de subjetivação. Conheci, desta feita, a professora e agora amiga, Vânia Maria Manfroi, a quem agradeço o panorama inicial sobre as leituras referentes aos processos de subjetivação e também o encontro com um texto do filósofo e professor Peter Pál Pelbart, que sinalizou, de súbito, a atmosfera que englobaria todo o prosseguimento das inquietações e estudos dos quais me ocupei a partir de então.
Um terceiro encontro, talvez um dos mais fortes e significativos, ocorreu em uma noite de quarta-feira do mês de março de 2005, em uma van que fazia o translado de professores embasados em Vitória-ES e que lecionavam em uma faculdade da cidade de Linhares – ES; tal encontro ocorreu na véspera do dia da defesa de minha dissertação. Ao comentar a temática desta para outros professores na van, aproximei-me de um deles que, a partir de então, acompanhou e intensificou todos os demais encontros que a partir daí se deram. Refiro-me a Davis Moreira Alvim. Desde o primeiro dia em que conversamos, já pressentíamos que uma parceria imediata aconteceria: foi como dois rios que ao cruzarem suas águas intensificam mutuamente seus fluxos! A ele gostaria de agradecer por todas as manhãs em que nadávamos juntos e conversávamos horas a fio na ilha do Socó na praia de Camburi, as noites que passamos lado a lado compartilhando alegrias ou tristezas que às vezes nos visitavam, inquietações, movimentos de estranhamento do mundo que nos cercava, risadas em situações irrespiráveis para nossas composições e, acima de tudo, o deslocamento que nos trouxe à PUC-SP e que, posso afirmar, tornou possível a composição de nossos trabalhos com certa problemática que nos era próxima.
Ainda, na cidade de Vitória-ES, gostaria de agradecer ao amigo Mateus Toscano, que foi uma das primeiras pessoas a me dar a mão em momentos de dúvida e dificuldade. A ele agradeço todo o apoio no decorrer do curso de especialização e no mestrado, além das boas e agradáveis conversas que tecemos várias vezes sozinhos em algumas noites na praia de Manguinhos: uma garrafa de vinho, o ressoar das ondas e muita filosofia sendo construída pelos afetos.
Tenho muito a agradecer também, nessa cidade, aos amigos Jair Ronchi Filho e Arthur Viana. Ao primeiro agradeço imensamente os encontros agradáveis e carinhosos realizados no decorrer de almoços deliciosos frente a paisagens acolhedoras em meio às quais muitas vezes foram trocadas dúvidas, discutidas certezas que depois de uma conversa se esfumaçavam, e trocadas também muitas experiências que possibilitaram o amadurecimento de alguns conceitos que operam neste estudo. Ao segundo, além do acolhimento em um momento difícil, também gostaria de agradecer por todas as gargalhadas que demos juntos ao saborearmos deliciosas cervejas nos bares onde sempre nos encontrávamos.
Na cidade de São Paulo, gostaria de agradecer os encontros com o filósofo e professor Peter Pál Pelbart, que em suas aulas conseguiu ser ainda mais instigante que em seus textos e livros que eu já conhecia. Ao professor Luiz Orlandi, pelo silêncio que me ajudou a traçar um rumo singular nesta pesquisa. Ao professor Edson Passetti, por muitas aulas por meio das quais ficou visível o riso de Michel Foucault. Ao professor Márcio Fonseca, pelos cursos que facilitaram muitas páginas do segundo capítulo deste livro.
Gostaria de agradecer, também, o encontro com o professor, poeta, escritor e amigo Paulo Vasconcelos, que me acolheu em uma cidade que desconhece um pouco esse verbo e que teve a paciência de acompanhar todos os desvios de humor que seguiram a escrita da pesquisa inicial que resultou neste livro. Os anos de companhia também são dignos de gratidão, mostram que, apesar de o mundo ser cada vez mais agenciado pelo interesse e pela concorrência, ainda existe a possibilidade de um convívio com o qual se possa produzir algo de comum. Ademais, também agradeço uma leitura atenciosa apontando alguns erros de escrita e de metodologia.
Aos amigos Henrique Schuler, Anselmo Dantas e Henrique Marcusso, gostaria de agradecer pelos momentos felizes e descontraídos que sempre marcaram as vezes em que estivemos juntos. E a Henrique Marcusso, que se foi de uma maneira rápida e inesperada, gostaria de agradecer pelo cuidado e presteza com o qual desenvolveu o Abstract da tese que serviu de base para este livro.
À minha irmã Rosa Ambrózio, gostaria de agradecer pela doçura que marca nossa convivência e que assegurou grande parte dos tons poéticos que correm as linhas desta obra.
À Miriam Aparecida Herrera Fernandes, faltam palavras para agradecê-la na condução de minha presença no mundo, que junto a ela iniciei um processo de análise. Não sei se o falar e o escrever dariam conta dessa gratidão.
Ao amigo Luiz Nogueira também é difícil emitir um agradecimento em palavras. É uma companhia que às vezes em seu silêncio e acolhimento fazem mais do que milhões de frases escritas. Imagino que continuaremos juntos nesse embate com o presente e na escuta do sofrimento humano a que nos propusemos ao iniciar o percurso de ocupar o lugar social de psicanalistas.
À professora Margareth Rago também é difícil agradecer. Por onde começar? Pela admiração do seu trabalho acadêmico e político junto a um pensador com o qual compartilhamos afinidades? Pelo pedido de encaminhamento da tese para divulgá-la junto aos seus orientandos? Pela insistência em me convencer a tornar público este estudo junto a um conjunto maior de sujeitos que necessitam urgentemente pensar a vida no momento contemporâneo? Pelo lindo e cuidadoso prefácio que precipita o leitor no âmago daquilo que será tratado na densidade dos conceitos e na extensão do número de páginas? Enfim, talvez seja necessário agradecê-la por tudo isso e muito mais que poderá vir como fruto dessa escrita!
Por fim, ao professor Giuseppe Cocco, agradeço pela aceitação em ter participado de minha banca de defesa e ter, com suas observações, contribuído com o desenrolar de um processo de investigação de si e do mundo que somente dá seus passos iniciais.
APRESENTAÇÃO
Como retomar um texto escrito seis anos atrás? Como pensar em sua atualidade quando se fala repetidamente que as palavras, as teorias e os objetos perdem a validade em uma temporalidade sempre curta e imediata? Como ainda insistir em sua temática principal sabendo-se que ele havia sido pensado como uma crítica a um estado de coisas que se pretendia superar?
São perguntas difíceis que o humilde escriba se coloca para encetar uma expectativa de apreensão de um trabalho no qual ele depositou muitas forças, esperanças e, principalmente, assumiu muitos riscos.
Muitas coisas aconteceram entre a primeira publicação deste texto num contexto de doutoramento e sua atual vinda a lume na forma de um livro. Primeiramente, é digno de nota que o momento em que ele foi elaborado e as questões que ele apontava não estavam ainda visíveis o bastante para que ele fosse considerado com a devida importância.
Naquele período, ainda se pensava de forma demasiada que as resistências por si mesmas produziriam uma linha de fuga para os dispositivos de exercício de poder, sendo assim, a apreensão do funcionamento de uma apropriação da vida numa operação de captura das condutas individuais na forma do empresário de si parecia desnecessária, já que se acreditava que a vida por si mesma produziria suas próprias saídas. Esquecia-se que o cuidado de si e a coragem da verdade anunciadas por Foucault eram trabalhos a serem realizados pelo sujeito se desejasse tomar um percurso diferente daquele exigido pelo exercício dos dispositivos de poder.
Desse modo, mesmo que, na perspectiva de pensamento daqueles que primeiramente leram este texto, uma série de movimentos de luta por liberação tenha varrido o mundo entre os anos de 2011 e 2014 em uma aposta de aprofundamento da democracia; que crises sistêmicas tenham produzido a percepção de que a governamentalidade neoliberal se arrefeceria em favor de um modo de governo do Estado e das condutas individuais mais pluralistas e libertárias, talvez por ironia das coisas, o inimigo contra o qual este estudo foi elaborado continuou firme, e, parece a este humilde escriba, reforçou ainda mais os mecanismos de apropriação das potências vitais em favor de um aprofundamento do controle das vidas individuais dos sujeitos.
Em vez de terem surgido sociedades menos desiguais e mais livres como se apostou muito em se falar de um pós-neoliberalismo, o efeito contrário parece ter sido o que mais se repetiu. As lutas no Oriente Médio parecem ter aprofundado as crises e expropriação das riquezas daqueles países juntamente às produções de suas populações. As ocupações nos Estados Unidos da América parecem ter tido como termo a subida à presidência de um sujeito inacreditavelmente conservador. Os levantes na América Latina acabaram por derrubar em cadeia uma série de governos progressistas e tê-los substituído, de uma maneira obscena, pelos mesmos personagens que antes deles expropriavam o continente na jogada neoliberal. Na Europa, os efeitos das lutas e levantes também parecem ter aprofundado uma tomada conservadora da condução política de suas populações.
Assim, parece que este livro continua com uma força de atualidade ao apontar o problema para o que se pensa ser o elemento primordial que confere ao neoliberalismo o poderio de conseguir sempre retornar vitorioso sobre aqueles que tentam entender o seu funcionamento e lhe criticam os efeitos nefastos: refiro-me aqui ao discurso gerencialista!
Desse modo, o leitor que aceitar o convite e decidir acompanhar o desassossego deste escriba até as linhas finais, será apresentado a este discurso e ao como ele serve de elo entre uma tomada do poder sobre a vida que no mesmo passo em que aglutina sob mecanismos de controle diversos um conjunto também diferenciante de sujeitos tomados na forma de populações, cuida, com a atenção semelhante, também da conduta de cada um deles em sua individualidade e no como eles mesmos exercitam o afeto de si por si mesmos.
Um discurso que permite dar explicações racionalizadas tanto para o modo de como governar os Estados nos momentos das sucessivas crises econômico-políticas experimentadas nos anos posteriores aos 1980 quanto no como cada sujeito, na sua solidão e sofrimento, fabricados por esses mesmos Estados, deve se conduzir na perspectiva da busca de um modo de vida que lhe aplaque a angústia de desejar e correr os riscos inerentes a uma posição desejante qualquer.
Um discurso que, ao criar a fantasia da existência de uma sociedade sem conflitos entre suas diversas divisões e diferenças, forja um imperativo de felicidade e liberdade que, em vez de levar cada um dos sujeitos a reconhecer sua própria divisão e reconhecer a existência e diferença do outro, muito pelo contrário, contribui para a negação da própria divisão e na projeção dos conflitos no outro gerando tanto um aprofundamento do sentimento de dor, isolamento e fracasso quanto na operação de uma absurda culpabilização do outro como responsável por essa infelicidade e sofrimento.
Enfim, um discurso que, simulando e sugerindo uma ideia de paraíso alcançado pela transformação da própria vida em elemento de acumulação de capital e gozo privado de um pacote de mercadorias e serviços, acaba, na pragmática de sua operação, produzindo um inferno em que cada vez mais sujeitos ficam subordinados a uma vida vazia, empobrecida tanto de experiência como da própria possibilidade de instituição de uma apropriação dos bens e serviços distribuídos pelo sistema de trocas. Abole-se o espaço no qual possa acontecer uma experiência comum entre sujeitos diferentes para se instaurar uma ditadura do privado de uns em detrimento da privação de muitos.
Não tenho a pretensão de oferecer respostas prontas para a complexidade que a problemática deste livro aponta, no entanto espero que ao levantar o problema, possa, ao menos, contribuir para que o leitor que me acompanhar talvez se identifique com algumas inquietações e possa forjar armas potentes que contribuam para uma luta por um modo de vida mais inclusivo e que permita a invenção de uma posteridade que seja menos cruel que aquela que recebemos das gerações que nos antecederam, pois, como disse Deleuze¹,
Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas [...] Será que já se pode apreender esboços dessas formas por vir, capazes de combater as alegrias do marketing? Muitos jovens pedem estranhamente para serem motivados
, e solicitam novos estágios e formação permanente; cabe a eles descobrir a que estão sendo levados a servir, assim como seus antecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas.
Passar a lança no sentido de que aqueles que vêm a usem e possam continuar lançando-a para os próximos, era uma questão dos gregos que acreditamos suceder em termos de civilização, espero que ainda continue sendo a nossa questão no sentido de continuarmos construindo espaços e instituições que sustentem a possibilidade de existência dos que virão depois de nós!
São Paulo, 09 de Junho de 2018.
Aldo Ambrózio
Psicanalista pelo Instituto SEDES Sapientiae, Pós-doutorando em História Cultural pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.
PREFÁCIO
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.
Manoel de Barros
Uma atmosfera kafkiana percorre este livro, que nos propõe uma arqueologia do discurso gerencialista e uma análise de seus efeitos perversos nos modos de produção da subjetividade operantes no presente. Recorrendo a um modo literário para abordar o inominável e adentrar nossa atualidade, tendo em vista enfrentar as trágicas dimensões que a caracterizam, o autor evoca algumas cenas e personagens de Franz Kafka, a começar por Gregor Samsa, famosa e assustadora figura do caixeiro-viajante subitamente transformado em inseto monstruoso, em A metamorfose.
Nesse clima inquietante e sinistro, Ambrózio procura descrever os violentos processos de normalização e, principalmente, de gerenciamento da vida, que nos atingem por meio de sofisticados dispositivos de poder, implementados na era neoliberal. Poder e vida, produção biopolítica dos corpos e das subjetividades, arte de governo das condutas e destruição da potência das forças vitais: desses temas sombrios ou, como diz o autor, dessas forças diabólicas
que nos ameaçam e que nos afetam, fala este instigante estudo, defendido como tese de doutoramento em Psicologia Clínica, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 2011.
Acompanhado de Michel Foucault e de Gilles Deleuze, Ambrózio parte das relações constituídas na esfera do trabalho para rapidamente chegar ao âmago da questão que deseja examinar, a saber, a captura dos fluxos e o gerenciamento da vida por forças reterritorializantes, muito além do espaço da produção. Assim, o autor nos faz conhecer mais de perto o movimento pelo qual a vida – seja na dimensão de zoé (vida natural comum a todos os viventes), seja na de bíos (vida política qualificada), como diferenciou Giorgio Agamben – tem sido cada vez mais submetida a uma gerência contínua e ininterrupta, na