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Sempre Foi Assim. Assim Sempre Será?
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E-book277 páginas3 horas

Sempre Foi Assim. Assim Sempre Será?

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Sobre este e-book

Waldomiro Manfroi é Doutor em Cardiologia pela UFRGS e foi Professor Titular, por concurso público, da Faculdade de Medicina da UFRGS em 1986. Foi diretor da Faculdade de Medicina da UFRGS em dois períodos, de 1995 a 1998 e de 2001 a 2005. Pró-Reitor de Extensão da UFRGS de 1998 a 1999. É Cidadão Honorário de Porto Alegre, ocupante da cadeira 30 da Academia Rio-Grandense de Letras e da Cadeira 58 da Academia Sul-Rio-Gran-dense de Medicina. Obras do autor Tempo de viver (1992) O último voo (1994) A confissão do espelho (1999) Os demônios do lago (2004) Férias interrompidas (2005) Sinfonia às avessas (2009) Tempo de Viver (2008) Vestígio (2011) Médicos escritores (2013) A Saúde dos Ventos - Vol. I (2015) A neta de Gardel (2016) A Saúde dos Ventos - Vol. II (201
IdiomaPortuguês
Data de lançamento11 de nov. de 2022
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    Sempre Foi Assim. Assim Sempre Será? - Waldomiro Manfroi

    Prefácio

    Waldomiro Manfroi e a força da literatura

    Sempre foi assim. Assim sempre será?, novo romance do médico e escritor Waldomiro Manfroi, chega às mãos do leitor na 68ª Feira do Livro de Porto Alegre. Romance de indiscutível qualidade, ele se inscreve na linhagem da narrativa histórica do nosso tempo.

    Lembro que a professora Maria Lúcia Lepecki buscou estabelecer uma tipologia para a narrativa histórica, que resgata, ressignifica e rompe com a narrativa do século XIX. Enquanto essa age na zona da idealização, a do século XX coloca-se, como disse Benjamin, a contrapelo da história. Os tipos levantados por Lepecki, e foram dez, não dão conta de todas as possibilidades de estruturação e de leitura que a literatura faz da História, iluminando-a com os olhos críticos do presente. Em outras palavras, a literatura lê e corrige a História, não o factual. Todos os grandes acontecimentos do passado estão aí, para serem lidos e não há como mudá-los. Há que se ler esses acontecimentos, reinterpretá-los para o presente.

    (...) Há algo que ninguém pode tirar: termos vivido neste século. Do ponto de vista coletivo, isso é algo que não tem preço (1998). Quem faz essa afirmação é José Saramago. Não há como não concordar com ele! De fato, o século XX é o século do fascínio, porque é o século das grandes transgressões históricas: as duas Guerras Mundiais, o avanço do feminismo, com Simone de Beauvoir, Maio de 68, o feminismo de Betty Friedan, o desfazimento do Império Soviético, a queda do Muro de Berlim, a China que abre as portas para o Ocidente, a contracultura, as comunidades alternativas, os Beatles, que se disseram mais famosos do que Jesus Cristo. A chegada do homem à Lua, o avanço das comunicações e da tecnologia. Nada substitui o fascínio de termos o século que joga com a nossa identidade, que reduz a heroicidade à anti-heroicidade em segundos e vice-versa, que nos coloca diante da grandiosidade pequena ou da pequenez grandiosa da nossa própria humanidade!

    É o século que prepara o século XXI, que, por sua vez, chega trazendo a pós-modernidade através de duas grandes revoluções: a econômica, chamada de globalização, e a cultural, chamada de multiculturalismo, enquanto, na literatura, tudo se redimensiona para os seres humanos universais, e as identidades planetárias não confrontam o individualismo que nos cerca. A História deixa de ser uma cadeia ininterrupta, ela se manifesta seja alternando-se com frequência, seja derramando sobre o humano uma dinâmica rápida e imprevisível. Uma preponderância do presente em relação ao passado também é observada, ainda que trabalhem juntos.

    Nesse processo, questões existenciais que transbordam fronteiras territoriais ganham protagonismo – especialmente as relacionadas à fragilidade humana, como a impotência diante da guerra e a solidão. No entanto, a História segue vigente e importante na literatura.

    É aí que se instaura o excelente romance de Manfroi. O escritor, no início da obra, oferece a direção da leitura a ser percorrida pelo leitor. Ele pactua com o leitor, na medida em que esclarece desde o primeiro momento os acontecimentos que detonarão o processo criativo. Desde A beleza salvará o mundo, de Todorov, até o gênero escolhido: a autoficção, mesclando partes ficcionais com acontecimentos do presente e do passado.

    Diz Manfroi: "(…) fiquei com muitas dúvidas sobre o futuro da humanidade. O que seria do mundo se tal candidato ganhasse a eleição presidencial americana? Um país democrático que vinha avançando sobre suas próprias idiossincrasias, ao eleger um presidente afrodescendente, e que tinha a possibilidade de eleger, na próxima eleição, uma mulher, iria retroceder tanto no cenário político a ponto de ser governado por um reacionário beligerante? As atrocidades provocadas pelo comunismo, pelo fascismo, pelo nazismo e outros ismos do século XX voltariam a imperar a partir de 2016? O mundo seria governado, outra vez, por líderes déspotas que, em nome de uma causa, se achariam no direito de matar milhões de pessoas?" (p. 15).

    Quer dizer, o espaço que coloca na frente do leitor é o mundo.

    O cerne de suas preocupações é a maldade humana. O tempo, a conjunção de passado, presente e a descrença no futuro.

    E, se o conteúdo aponta para a violência da humanidade, a forma como estrutura o texto para recriá-la é muito interessante. O escritor traz o tema como importante contribuição para a reflexão histórica e filosófica sobre quem fomos, quem somos, quem seremos, além de colocar em evidência a sua inquietude estética. O romance é arquitetado com um narrador em terceira pessoa que conta o cotidiano do aposentado Roberto Porto e, simultaneamente, um diário do pesquisador Roberto Porto, onde ficam registradas a violência e a maldade de que o ser humano é capaz.

    Sempre foi assim. Assim sempre será? inicia com a pacata vida do aposentado Roberto Porto, de camisa de manga curta e calça jeans, que vê a suposta sequestradora do menino do parque e decide segui-la. Quando a alcança, numa sala cheia de pessoas estranhas, é surpreendido pela mulher que gritava, apontando para ele: É ele, senhor delegado! É ele, senhor delegado! (p. 22). Percebemos que há uma inversão de papel entre acusador e acusado. E, ao se perguntar se a maldade humana estaria chegando perto de si, abre-se para a construção de uma narrativa ambígua, que só vai se desvendar na última página (ou não). Memórias e a leitura da História registrada no diário ocupam seu tempo, enquanto espera na delegacia, determinando a estrutura circular da obra.

    Quanto ao pesquisador Roberto Porto, ele é um ser inquieto e questionador: Assim que terminou de ler textos sobre as Inquisições, foi tomado por mais dúvidas sobre a importância da sua pesquisa. Que utilidade teria este seu texto para outras pessoas, se tudo podia ser encontrado no Google? Era tarde da noite e havia trabalhado quatro horas corridas no computador. Mas, ao fazer uma rápida viagem de regresso à memória recente para saber por onde havia andado, desde o dia em que acontecera o ato terrorista em Paris, em janeiro de 2015, deu-se conta de uma confortadora realidade: havia aprendido muito. Tinha voltado ao começo do homem na Terra, seguido o caminho do Islamismo, desde o surgimento de Maomé com sua nova religião, viajara pelos diversos países da Europa, da Ásia, bem como seguira o rastro dos califados imperiais islâmicos e as seculares caravanas dos cruzados. Mergulhara nos trágicos julgamentos dos Tribunais da Inquisição. Revivera episódios da Guerra do Suez, da década de 1950, conhecera um pouco do muito que havia acontecido na União Soviética Socialista e na Revolução dos Aiatolás, no Irã. Confortado pelos conhecimentos que havia adquirido, decidiu: não terminaria aí, não! (p. 184).

    Já não há como parar e Roberto Porto continua sua pesquisa em direção à origem da maldade humana. Utiliza-se do rádio, do jornal, do Google, da História, da Literatura, das cartas de George Orwell e Eric Blair. Vai aos textos de historiadores, que transcreve no diário. Vai aos textos que falam da Inquisição Católica, de Antônio Vieira e seus seguidores, do Protestantismo, do Estado Islâmico, do Nazismo, até o governo de Trump e o famoso muro na fronteira com o México.

    Nosso tempo está lá, como causa e consequência, o autor pratica a intertextualidade e dialoga, por exemplo, com Todorov, autor de

    A beleza salvará o mundo, mas também dialoga com a música, com Túlio Piva e Teixeirinha, além do concerto de Verdi.

    Um belo romance este de Waldomiro Manfroi. É a sua décima primeira obra. Nada nele falta ou sobra. Se a literatura atua como um espelho crítico onde o leitor se vê, como quer Sartre, a solidão, o desencontro, a nostalgia e o horror superam qualquer possível crença na correção do passado para o presente. Mais ainda, lança dúvidas sobre o futuro.

    O escritor desvenda a própria crise da historicidade. Não há mais qualquer possibilidade de uma fantasia ideológica cultural, mas a representação de uma realidade legítima, com a patologia sociocultural explícita, como tudo o que favorece o surgimento da maldade, mas não a justifica. E, aí, com muita ênfase, revelam-se as sequelas sociais, os grandes dramas humanos que expõem as marcas de debilidade do humanismo a que Michel Serres se referia. Dizia o filósofo, em uma entrevista, em 1999, que o século XXI seria regido pelas ciências duras, pela tecnologia; segundo ele, perderíamos um certo humanismo e surgiria o quarto mundo. Nem primeiro, nem terceiro, mas o quarto: uma rede de miséria, fome, violência cobriria o planeta. Manfroi, ao procurar a origem da maldade humana, vai aos tempos primordiais e nos coloca diante do quarto mundo. São cenas fortes acompanhadas pelas reflexões de um narrador consciente, que vai chegando, aos poucos, à banalização do mal.

    Depreende-se da leitura de Sempre foi assim. Assim sempre será?, como já disse Júlia Kristeva, que o ser humano não faz a História, mas a História é o ser humano. Isso é nossa força e nossa fragilidade.

    A literatura pode muito, e Waldomiro Manfroi, que dialoga com muita propriedade com Todorov, com A beleza salvará o mundo, no início de Sempre foi assim. Assim sempre será?, sabe bem do poder da literatura. Ela é a representação simbólica da sociedade e da História, mas também tem o papel de intervir nesta mesma sociedade e História. Aliás, é assim a Arte.

    Todorov já afirmava que, como habitantes do século XXI, somos confrontados com dificuldades que a humanidade não teve que resolver no passado, somos levados a caminhar fora das trilhas já demarcadas. Não surpreende que, com frequência, venhamos a errar; nossa busca é legítima.

    É como Waldomiro Manfroi encaminha Sempre foi assim. Assim sempre será?: com sensibilidade e propriedade. Uma excelente leitura para quem quiser tocar na parte submersa das geleiras (lembramos aqui de Piglia). É porque os melhores textos são esses que nos sugam para dentro da realidade representada e da nossa própria realidade.

    É um texto instigante e prazeroso o de Manfroi. A leitura de Sempre foi assim. Assim sempre será? é risco e desfazimento de certezas herdadas e conquistadas. É, por ventura, onde reside o prazer da sua leitura: na inquietação semeada pela concepção do texto. E quem há de negar que este é o melhor da literatura? Fechamos o livro com uma revolução instaurada na leitura dos tempos, desde o paraíso, e na evidência histórica da maldade humana. Fechamos o livro e continuamos habitados por Sempre foi assim. Assim sempre será?

    Porto Alegre, primavera de 2022.

    Imagem

    Jane Tutikian

    Escritora e Prof.ª Titular da UFRGS

    Apresentação

    A primeira ideia para a produção desta obra surgiu-me na manhã do dia 7 de janeiro de 2015, ao ouvir no rádio a notícia sobre o atentado terrorista à sede da revista Charlie Hebdo, em Paris. Preocupado, saí à procura de mais informações na internet. Pouco demorei para encontrar a dimensão do brutal ato: doze jornalistas e um policial mortos por homens encapuzados.

    Nas horas subsequentes, as cenas mostravam a mobilização policial em busca dos assassinos e as manifestações contra o indigno crime. Tão logo o Estado Islâmico assumiu a autoria do atentado, milhões de pessoas desfilavam em defesa da liberdade de expressão. E nos detalhes dos cortejos, câmeras focavam em homens, mulheres, jovens, velhos e crianças, que, indignados e sob a chamada "Je suis Charlie", tomavam as praças e as ruas, mundo afora.

    Mas, ao voltar minha atenção para o título O Sonho de Wadjda, abri o arquivo e vi que estava num filme a alternativa para fugir das más notícias. Depois de assistir à película, dei-me conta que os editores e os jornalistas da revista Charlie Hebdo, mesmo conhecendo a cultura religiosa das famílias praticantes do islamismo, tiveram a ousadia de publicar outra charge que ridicularizava o profeta Maomé. Por certo, não imaginaram receber tamanha reação. E, comparando o filme com os atos de terror, cheguei a pensar que talvez estivesse aí o começo de outro período de maldade humana na Terra. Para encontrar possíveis respostas que me fizessem apagar essa impressão, passei o ano de 2015 pesquisando, em livros, revistas e mídias eletrônicas, fatos que registrassem o comportamento humano malévolo através dos tempos.

    O segundo estímulo, o ficcional, me surgiu no fim de janeiro de 2016, ao ver de manhã bem cedo, um menino brincando num parque da cidade. Foi essa imagem que me instigou a produzir uma narrativa dentro do texto que havia escrito no decorrer de 2015. Tratei de fazer, então, uma costura de fatos históricos da maldade humana através dos tempos, com momentos de reflexão sobre o porquê de um menino estar sozinho num parque tão cedo. No processo da autoficção, fui mesclando partes ficcionais com acontecimentos do presente e do passado.

    Mas, voltando ao contexto das narrativas históricas, optei por trazer para a introdução uma passagem que escrevi em 25 de julho de 2015. E transcrevo-a na íntegra, por entender que ela guarda relação com a terrível guerra que Putin faz agora, ao invadir a Ucrânia.

    O excêntrico empresário Donald Trump teria chance de ser o candidato do Partido Republicano à presidência dos Estados Unidos era a chamada da notícia que lera. Primeiro colocado entre os pré-candidatos do Partido Republicano à presidência dos EUA, Donald Trump tem colecionado pérolas segregacionistas. Quando anunciou sua candidatura em 16 de junho, ele disse: ‘Quando o México manda gente para os EUA, não está mandando os melhores. Eles estão mandando pessoas que têm muitos problemas e estão trazendo esses problemas para nós. Eles estão trazendo drogas, estão trazendo crime, estão trazendo estupradores, e, algumas, presumo, são boas pessoas’. E fez uma promessa: ‘Eu construirei um enorme muro. E ninguém constrói muros melhor do que eu. Acreditem. E eu o construirei a baixo custo. Construirei um grande muro na fronteira e farei o México pagar por ele’.

    Ao ler as absurdas declarações, fiquei com muitas dúvidas sobre o futuro da humanidade. O que seria do mundo se tal candidato ganhasse a eleição presidencial americana? Um país democrático que vinha avançando sobre suas próprias idiossincrasias, ao eleger um presidente afrodescendente, e que tinha a possibilidade de eleger, na próxima eleição, uma mulher, iria retroceder tanto no cenário político a ponto de ser governado por um reacionário beligerante? As atrocidades provocadas pelo comunismo, pelo fascismo, pelo nazismo e outros ismos do século XX voltariam a imperar a partir de 2016? O mundo seria governado, outra vez, por líderes déspotas que, em nome de uma causa, se achariam no direito de matar milhões de pessoas? E na minha memória, em vez de surgirem respostas à pergunta, o que se sobressaía era a última cena do filme O planeta dos macacos, agora com uma diferença: em vez de surgir na tela a face espantada de Charlton Heston, via o sorriso debochado de Donald Trump, ao se deparar com os destroços da Estátua da Liberdade.

    Ao viver essa emocionante passagem, pressenti que algo muito grave podia acontecer em um futuro próximo. Perplexo, vejo agora que apenas errei o nome do possível mentor de mais uma tragédia humana. Em vez de ser o Trump, é Putin quem ameaça a existência de vida na Terra.

    Waldomiro Manfroi

    Agradecimentos

    Meus agradecimentos à bibliotecária Shirlei Galarça Salort, pela revisão das citações bibliográficas, e ao professor Jair Ferreira, pelo olhar arguto no contexto histórico das citações utilizadas.

    I

    Na manhã de 4 de março de 2016, Roberto Porto saiu de casa bem cedo para mais um passeio pelas ruas da cidade. Morava num apartamento, comprado recentemente porque não conseguira se estabelecer na casa da praia, como havia planejado durante anos, por prolongados períodos de falta de água. Mas não havia o que lamentar. Na cidade não faltava água e, mesmo que não pudesse tomar banho de mar, da sacada do apartamento, continuaria vendo uma aprazível baía marítima. Não precisava enfrentar longas filas de carros para fazer compras, consultar médico quando atacado pelos surtos de diarreia e vômitos, que acometiam os veranistas. E por não ter nenhuma preocupação maior com o tempo, levou em sua bolsa o diário que havia escrito nas férias do ano anterior. Caso demorasse com pagamentos de contas nos bancos e na prefeitura, podia, enfim, reler o que havia escrito.

    Vestindo camisa de manga curta e calça jeans, enquanto caminhava absorto, surpreendeu-se ao ver a possível raptora do menino do parque, caminhando, leve e faceira, no meio da multidão. Atônito pelo inesperado encontro, desistiu de tudo o que havia programado para seguir os passos da mulher. E, esgueirando-se por entre a multidão, foi repetindo: Agora ela não me engana como o fizera na vez anterior. Que entrasse em quantas lojas quisesse, aguardaria seu regresso postado na calçada. Caso tomasse, novamente um ônibus, seguiria de táxi atrás do coletivo. Numa das tantas paradas, ela teria que descer. Surgiria, então, o momento de perguntar bem alto para que todos ouvissem: O que fizeste com o menino do parque, malvada?

    Depois de acompanhar a mulher na entrada e na saída de várias lojas, Roberto Porto, obstinado, continuou seguindo-a qual cachorrinha de madama. E, ao ver que ela, mais apressada, ingressou num prédio de porta com vidro fumê, entrou atrás, sem se preocupar em saber que repartição era aquela. Na sala, repleta de pessoas estranhas, de repente, foi surpreendido pelo esbravejar da mulher, que, dedo em riste para ele, repetia:

    − É ele, senhor delegado! É ele, senhor delegado!

    Ao ver que a provável sequestradora do menino apontava o dedo em sua direção e todos os olhares da sala se dirigiam sobre ele, Roberto Porto bem que tentou virar para os lados à procura de outro possível acusado. Mas, ao se certificar de que o dedo da mulher apontava de forma inequívoca para ele, começou a ouvir de sua própria voz: Por que essa ordinária me acusa? Estaria a maldade humana chegando perto de mim agora?

    E tudo se tornou mais confuso, quando um cavalheiro de terno e gravata se postou na sua frente e, depois de se apresentar como sendo o delegado Tadeu, perguntou:

    − O senhor se chama Roberto Porto e é o dono do celular 47 84667323?

    − Sou, sim − respondeu, atônito, tentando esboçar um, mas...

    − Então, o senhor me acompanhe − apontando para outra sala em frente.

    Ao chegarem no recinto de mesa e duas cadeiras, o delegado apenas acrescentou:

    − Aguarde sentado até ser chamado.

    Delegado Tadeu? Delegacia de polícia apinhada de gente estranha? Aguarde sentado?... Estaria sonhando?...

    Ao ver pela divisória de vidro que dezenas de olhos continuavam faiscando para cima dele, Roberto Porto percebeu que enfrentava uma situação bastante confusa. Para atenuar o abismo das dúvidas, lembrou então das vezes em que estivera numa delegacia de polícia. Não tinham sido muitas, mas todas peculiares por serem registro de furtos e roubos em viagens. Mas agora tudo parecia diferente. Qual o motivo? Não tinha sido roubado ou furtado. Não havia perdido documentos... não devia ser com ele... Era engano... logo tudo ficaria esclarecido e ele cuidaria da sua vida. Mas se fosse outra cilada da mulher de olhos amendoados?

    Enquanto procurava por possíveis respostas na sua memória, pousou a bolsa que continha os boletos bancários, o celular e o seu diário ao lado da cadeira e ficou lembrando das experiências que tivera em delegacias de polícia.

    A primeira havia acontecido há mais ou menos 20 anos, durante uma viagem que ele e a mulher realizaram à Europa. Vindos da Bélgica, ao desembarcarem na estação de trem Paris Norte, de repente uma azáfama provocada por homens e mulheres agitou o ambiente da estação. Na sua memória de viagens pretéritas, surgiu, então, uma confortadora lembrança. Alarido semelhante vira e ouvira numa viagem à África do Sul, quando visitaram uma tribo Zulu, perto de Pretória. Pessoas afastadas da terra-natal, agora, cultuavam cânticos das suas origens. Em Paris, tudo era possível, chegou a pensar. Mas assim que constatou o sumiço da bolsa da sua mulher, como que num passe de mágica, entendeu que o alarido era um sinal de alerta mandado para algum comparsa que ocupava pontos estratégicos para o ataque às vítimas. E

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