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Peace And Love, Inc.
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E-book344 páginas4 horas

Peace And Love, Inc.

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Sobre este e-book

>A humanidade tentou, e falhou, resolver os problemas de uma superpopulação galopante. >Veio então uma doença incurável, que mutilou as pessoas e os países do planeta. >O novo mundo sem fronteiras foi entregue aos caprichos das Corps. >A Rede Virtual, mesclada com a realidade graças à neuroestimulação, move a sociedade. >Bem-vindos ao Século XXII. >Iblis, infame hacktivista anticorporativo -- um cibercriminoso, para as Corps -- é surpreendido pela mensagem de uma ex com quem trabalhou no passado, e com quem as coisas não terminaram bem. >Seguir o rastro dela o arremessa de cabeça através das camadas do mundo e de si mesmo, esperando achar algo real. Algo que dê sentido a tudo. >Mas poderá lidar com o que o espera?
IdiomaPortuguês
Data de lançamento8 de mar. de 2023
Peace And Love, Inc.

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    Peace And Love, Inc. - Eduardo Capistrano

    00> WELCOME

    O drone-outdoor piscou bem-vindo em três línguas diferentes antes de um glitch perturbar a tela. Em vez do nome da cidade, surgiu um logotipo: uma mão segurando um globo, sobre o qual orbitava a inscrição Peace and Love, Inc.

    Sob o outdoor, um rio de hovercarros e drones fluía acima de uma manta de smog, parecendo sólida de tão densa. Ao longe, as fuselagens brancas, pratas e pretas se misturavam à fumaça como pixels em uma tela com estática.

    Restava apenas a serpente de luz vermelha dos faróis, rastejando entre torres de metal negro que perfuravam a névoa, as cabeças de incontáveis imortais, esquecidos e congelados, com cabelos de antenas e chaminés, olhos de vidro, e nada a fazer além de fumar, observar e chorar.

    Em direção ao centro, as torres se multiplicavam, cresciam e ganhavam vida, vestiam-se com luzes multicores pulsantes, bradavam com cacofonias de música e vozes. Em procissão, cercavam e estendiam braços-passarelas em adoração aos colossais monolitos no centro da cidade, lordes celestiais em tronos altivos de vidro e metal negro, os maiores, os mais belos, os mais ricos, os melhores.

    Centenas de andares abaixo, o denso smog pulsava com a orgia audiovisual eletrônica de anúncios decadentes em neon, LEDs e hologramas. Enxames de veículos e robôs zumbiam por caminhos invisíveis nos desfiladeiros entre os prédios, quase não desviando das teias de passarelas, cabos e tubos, entrando e saindo por túneis, infestada por metrôs-elevadores, centopeias metálicas incansáveis em seus túneis, correndo para cima, para baixo, para dentro, para fora, ao redor.

    Dentro da fumaça, milhares de edifícios brutos, cubos grosseiros que tentavam pôr a cabeça acima do smog, nas pontas dos pés, e estavam perto, tão perto. Um dia, eles repetiam, um dia estariam tão inchados com sonhos irrealizáveis que ficariam mais leves que o ar, um balão que uma criança soltou sem querer, flutuando para a liberdade do espaço.

    Se erguiam sobre imundície, a deles e a que vinha de cima, despejada sobre as abjetas ruínas do passado, as coisas rastejantes com menos de cinquenta andares. Um dia motivo de orgulho para seus engenheiros e arquitetos, agora eram meros insetos ao redor das fundações monumentais dos colossos que se perdiam nas alturas. Era como visitar a cidade que ali havia cem anos antes, abandonada ao desreparo, sofrendo vandalizações sobre incontáveis vandalizações, e recebendo os pisoteios e os excrementos de colossos indiferentes. A luz do sol não alcançava aquele lugar, não fossem os raros e breves fachos que penetravam pelas camadas de edificações; e o que passava por céu era espesso fumo cinza, sustentado por muralhas negras altíssimas, cortado erraticamente por uma lâmina de vento gélido, soprando gás tóxico e borrifando uma garoa de ácido, óleo, lixo e merda.

    Tinha vários nomes. Cidade Pária. Fundações. Cidade Zero. As Profundezas. O mais comum era Cidade Velha.

    Um prédio, com vinte andares que de algum modo resistiram à destruição, situava-se no que um dia foi uma grande avenida da cidade morta, pontilhada com carcaças de carros enferrujados e depenados. Como todos os outros prédios sobreviventes, era um chamariz para os locais, um castelo sobre o qual os pretensos donos do território reclamavam poder vazio sobre a escória. Reis vagabundos. Imperadores da ruína.

    Os andares inferiores estavam reduzidos praticamente ao esqueleto do prédio, expondo porções de concreto armado até os vergalhões. Na metade superior do prédio, paredes de pé permitiam dizer que haviam apartamentos. Tudo estava coberto por DDDs: doentes, drogados e degenerados. Se foram pessoas algum dia, pouco restava delas: faltavam-lhes extremidades, membros inteiros, feições faciais, identidades, futuros. No que restava de seus corpos, enfiavam qualquer químico que conseguissem. A maioria estava inconsciente, aqui e ali, ou amontoados pelos cantos. Os montes não eram voluntários; os que caíam no caminho eram recolhidos por quem passava e jogados sobre alguma pilha como roupa suja.

    Os que estavam conscientes — ou melhor, os de olhos abertos — sentavam pelo chão ou nos degraus das escadas, curtindo o barato, chorando o fim da viagem, ou fantasiando se haveria uma próxima. Um círculo deles se aquecia ao redor de jatos de chamas violetas vomitadas pelas válvula violada de um cano, saltando como que de uma fratura exposta no chão; outros banhavam-se nos arcos voltaicos entre as pontas de um cabo de energia arrancado de uma parede.

    Nos andares superiores, DDDs um pouco mais funcionais guardavam portas duplas, esbravejando com os que imploravam para entrar e os expulsando aos chutes. Pelas portas se chegava a um aposento amplo formado com o desmoronamento dos pisos de vários andares. No meio de tudo, pilares caídos haviam sido transformados no balcão de um bar, cercado por móveis arruinados que armazenavam, sem distinção, bebidas, drogas, produtos químicos e armas.

    O lugar era, visivelmente, o reduto dos tais drogados mais funcionais. Compartilhavam o laranja e preto nas roupas, cabelos raspados em cima e compridos dos lados, cavanhaques, tatuagens de tigres e palavras em todos os tipos de escrita mongol. A palavra mais frequente era Khan. Tinham próteses no lugar das partes do corpo que faltavam, mas eram coisas velhas e remendadas, com partes faltando e outras tiradas de modelos incompatíveis. Estalavam e rangiam, travavam e davam tiques, soltavam fumaça e faíscas, vazavam fluido.

    Ao redor do bar, os ciborgues bebiam, se drogavam, transavam, e dançavam ao som das batidas secas, distorções elétricas e gritos que chamavam de música. Quatro janelas serviam de banheiro, com os dejetos caindo na rua lá embaixo. Num lado, dois estavam se espancando numa área cercada por grades, assistidos por uma multidão de torcedores e apostadores. Num outro canto, um grupo estava atirando em alvos diante de uma parede: latas, garrafas, ratos, e três homens amarrados e vendados, um deles já caído no chão com a cabeça aberta.

    Acima da sala, um pedaço do piso ainda inteiro circundava o salão abaixo como uma passarela, e dava acesso a alguns apartamentos intactos. Na porta de um deles estava pichado: O DOUTOR e uma placa pendurada com cabos completava a frase, com o lado escrito NÃO ESTÁ para a frente. O doutor provavelmente era o Khan de jaleco ensanguentado que naquele momento, com uma intravenosa enfiada no braço, fodia sem muito ânimo uma das DDDs inconscientes sobre o balcão do bar.

    A sala do doutor causava choque comparado com o bar do lado de fora. Os azulejos respingados de fluidos corporais nas paredes e no chão refletiam as únicas luzes da sala, os brilhos azuis dos incontáveis monitores Philips que cercavam uma mesa cirúrgica no centro. Exibiam gráficos, sequências numéricas, blocos de texto e código, fotografias e vídeos, galerias de objetos em 3D, logotipos diversos, ou apenas estática. Um homem numa cadeira giratória, debruçado sobre a mesa, às vezes erguia as mãos e gesticulava pressionando, beliscando e acenando. Marcava com o pé o compasso de uma música frenética com sintetizadores e bateria eletrônica, que soava como uma sirene.

    — Essa música é apropriada? Não era melhor algo mais calmo? Talvez música clássica.

    Falando com a voz trêmula, o homem deitado na mesa de operação era corpulento, com a cara inchada: alguém acostumado a apanhar e bater. Sua perna esquerda era uma prótese barata da Smith+Nephew, quadradona, o revestimento bege com parafusos aparentes. Seu cabelo loiro liso, muito bem cortado e penteado de lado, parecia infantil e destoava do resto. Mesmo com membros e cabeça amarrados à mesa, às vezes convulsionava com violência, sem que sua expressão de calma, contudo, se alterasse.

    — Não estou exatamente no ânimo para Mozart…

    O homem na cadeira operava sobre um ponto escuro no meio da testa do paciente, ao menos tanto quanto podia entre as convulsões. Tinha na face um óculos nanoscópico da Medtronic, uma armação de metal com objetivas sobre cada olho, que permitia enxergar o que fazia. O ponto era um diminuto chip, um emaranhado compacto de nanocircuitos, arranjados sobre uma área do tamanho de uma moedinha. Vários fios de máquinas próximas, passando por suportes sobre a mesa, se conectavam fragilmente ao chip.

    O operador tinha um chip similar na sua própria fronte. Nada mais de seu rosto estava visível, pois os cabelos estavam cobertos por um gorro, e o nariz e a boca atrás de uma máscara respiratória amarela, pichada com um risco curvo preto: o sorriso de uma smiley face.

    — Esse trabalho analógico chega a me deixar enjoado — disse ele. Debruçou-se novamente e apontou o que parecia uma caneta para a testa do paciente. A nanossolda laser da General Electric fez o chip soltar um jato minúsculo de fumaça, perceptível só com as lentes ampliadoras, diferente do distinto cheiro químico queimado do polímero autorreparável, que saturava o ar da sala. Continuou: — Sempre que tenho que lidar com hardware eu me estresso. É fio, contato, voltagem… muito namkeen¹. Mas tudo bem — apontou para a máscara com dois polegares enluvados — tem que vestir uma face sorridente.

    Uma convulsão particularmente duradoura fez a expressão do paciente se alterar, e um fio se soltar do chip. O homem na mesa parecia genuinamente confuso, enquanto o mascarado, resmungando um xingamento, recolocou o fio. O rosto do paciente voltou a ser como era antes da convulsão.

    — Você lembra de ter pedido música clássica? — o operador perguntou.

    — Lembro, claro.

    Claro... — o sorridente rolou os olhos. — Lembra seu nome?

    — Marton. Marton Saladini.

    — Mas o meu você não lembra — disse a máscara sorridente.

    — Você não disse seu nome.

    Ótimo, pensou o operador, tirando os fios do chip, e usando a ponta de um deles para fechar uma tampa flexível que cobriu o dispositivo. O flap transparente com a marca Samsung caiu e aderiu na hora, como se tivesse sumido. Ele então afastou os fios e inclinou-se para trás, sentindo uma satisfação tremenda por não precisar fazer mais aquele trabalho que considerava artesanal. Virou uma silhueta, coberto pela escuridão da sala. O paciente só discernia que o outro havia tirado os óculos e fazia novos gestos no ar. Só o mascarado via a razão dos gestos: janelas flutuando em seu campo de visão exibiam os vídeos tutoriais do YouTube que havia seguido até então. Repassou rapidamente os vídeos, pulando partes que já havia visto ou que não se aplicavam. Terminou lendo algo em outra janela, que mostrava um fórum de discussão. Abriu um link com um toque e outro vídeo abriu. Com um gesto, fez o vídeo aparecer num dos monitores para Marton ver, dizendo: — Como já está retendo informação, vamos ao próximo passo. Aula de história.

    — História? — perguntou o paciente.

    O operador se abaixou, tateou entre as várias latas vazias jogadas aos seus pés, pegou uma, depois outra, agitou para ver se havia algo dentro. Desistiu e impulsionou a cadeira até uma mesa auxiliar coberta de ferramentas, onde havia uma última lata. Abriu-a com um chiado e enquanto bebia, a lata ficou iluminada o suficiente para Marton vê-la: era verde-limão, com a palavra CRASH explodindo em vermelho.

    — Vou rodar um documentário. Vamos dar um empurrãozinho no seu cérebro. Refrescar as suas sinapses. Supostamente — e leu do fórum, sem Marton saber — as memórias gerais vão puxar as específicas.

    O operador cruzou os braços e virou-se para o monitor, que exibiu uma abertura com clipes de vários vídeos em rápida sucessão, sobre os quais surgiu escrito Um Lugar Complicado - O Mundo no Século XXI - Um Especial NBC.

    — A virada do milênio... — começou a falar a elegante voz da narradora, interrompida na hora pelo operador: — Parou, pausa! Não precisamos voltar tanto assim. Vamos colocar esta merda pra frente… — o que ele fez deslizando o dedo no ar. — Pronto!

    A tela esmaeceu para preto com a palavra COLÔNIAS em letras metálicas. A voz feminina retomou: — Chegando à metade do século com 12 bilhões de pessoas, com as crises do petróleo e da água prejudicando a geração de energia e a produção de comida, a humanidade olhava cada vez mais para o que parecia ser a solução para todos os seus problemas: o espaço. Com as tentativas de controle populacional falhando em todo o planeta, a Organização das Nações Unidas lançou um esforço internacional para a colonização espacial. Otimistas com o sucesso das estações orbitais e de postos científicos na Lua e em Marte, o programa de colonização foi esquematizado em três estágios. Os colonos entrariam em trânsito nas Estações, passando à Lua para treinamento e aclimatação, e terminariam nos assentamentos em Marte. Para isso a colônia marciana realizava a terraformação do planeta, que depois de décadas ainda não havia alcançado os resultados esperados. Enquanto isso, colonos esperançosos continuavam sendo enviados para as Estações e para a Lua. Logo estes pontos sofriam com a superpopulação como a Terra, na disputa pelo espaço limitado e pelos recursos cada vez mais escassos. Quanto mais a terraformação atrasava, maiores os problemas enfrentados pelos colonos e a pressão sobre os responsáveis pelo programa. Isso motivou a busca por formas de acelerar a terraformação. A solução encontrada foi uma técnica similar ao fracking.

    — Uma frack de uma ideia de onde veio a fracking expressão em fracking babel — disse o operador. A narração seguiu: — A colônia usava energia geotérmica, e dependia da mineração e extração de gás do subsolo. O plano de aceleração envolvia aumentar a pressão dos gases para ampliar as fendas geotérmicas, e com isso artificialmente controlar a temperatura do planeta.

    A animação na tela exibia as perfurações sob o solo de Marte, com o gás sendo representado por uma cor amarela que começou bem clara, mudando para mostarda, depois laranja e vermelho. Então fraturas surgiram dentro do túnel e irradiaram para todos os lados, fazendo o vermelho voltar a ser laranja e amarelo. Em seguida, vários cientistas e autoridades alertavam sobre os riscos do procedimento.

    — Mesmo com os inúmeros avisos, o programa seguiu com o fracking terraformador. Infelizmente, a tragédia não demorou para acontecer.

    O vídeo exibiu a imagem mais conhecida da tragédia, gravada pela principal estação orbital marciana: o momento em que a superfície de Marte ao redor das torres de terraformação se moveu como a barriga de uma grávida com o bebê se mexendo. Em seguida, inúmeras bolhas romperam o solo, e em um piscar de olhos pareceram se fundir em uma única bocarra aberta, cuspindo uma massa de fumaça que não parava de se espalhar. Outros vídeos foram mostrados, e depois mais entrevistas com especulações sobre o que poderia ter causado a explosão: erros de cálculo, defeitos em aparelhos, bolsões subterrâneos de gás pressurizado.

    O paciente demorou para notar que o operador já há algum tempo iluminava o ponto na sua testa com uma lanterna ultravioleta. O mascarado desligou a lanterna e adiantou o vídeo para outras gravações obtidas pela mesma estação orbital, meses depois da explosão. A fumaça agora mostrava veios em brasa, como palha de aço queimando.

    — Tem gente que jura ter conseguido ouvir a explosão daqui da Terra — disse o operador. — Daria pra ver a cratera e as rachaduras, se não fosse a nuvem de gás tóxico que se incendiou na atmosfera. Ah, a humanidade! Nem bem chegamos em outro planeta, vamos esmigalhando o solo, ateando fogo ao céu…

    — O que… o que aconteceu com a colônia?

    — Nada de lembrar, então? Frack... ok, vamos ver… No ponto zero, ficou um buraco. Não uma cratera: um buraco legit, um sinkhole massivo, que foi aumentando, e os sobreviventes se atropelando pra fugir. A maioria dos pontos de aterrissagem… amartessagem? O que for, foram perdidos, pistas, hangares, tudo. Os que restaram receberam uma horda de desesperados sendo evacuados. Uma insanidade, gente pisoteada, fracos, feridos e doentes deixados para trás, pessoas se matando para conseguir lugar em qualquer nave que encontrassem. Várias delas não estavam em condições de navegar. Foram encontradas à deriva no espaço com todo mundo morto, sem comida ou oxigênio, congelados, irradiados, despressurizados. Os que chegavam nas estações não conseguiam desembarcar direito, porque as pessoas ainda estavam sendo evacuadas para a Terra. No total, centenas de milhões de pessoas morreram ou se perderam. Quem sobreviveu virou parte da tragédia: bilhões de pessoas voltando pra uma Terra que não tinha onde meter mais gente. Todo o programa de colonização perdeu credibilidade, assim como os governos e a ONU. Até hoje é difícil encontrar quem pensa em sair da Terra.

    Depois de alguns de seus gestos no ar, o operador fez um monitor exibir uma foto de uma família na frente de uma janela, pela qual se via o solo branco da Lua, sob o breu do espaço. O paciente franziu a testa, chacoalhou a cabeça.

    — Nada? — Os dedos enluvados do operador bateram na tela, exibindo as pessoas à medida que falava. — O menininho é você, olha, o cabelo é igual! Irmãos, pai, mãe.

    A continuada confusão no olhar de Marton fez o mascarado suspirar e voltar ao vídeo. A tela exibiu a palavra DOENÇA, antes da narradora retornar: — Há muito tempo a comunidade médica alertava sobre as consequências do uso indiscriminado de antibióticos. A mais grave era o crescente número de superbugs, microorganismos resistentes a remédios, como o MRSA, estafilococo resistente à meticilina, e o MRAB, a Acinetobacter multirresistente. — O operador avançou por trechos cheios de partes técnicas, entrevistas com médicos e notícias da época. — As pandemias do início do século evidenciaram patógenos resistentes não apenas a drogas, mas também a desinfetantes e à radiação ultravioleta. Era uma questão de tempo até uma nova doença surgir, causada por microorganismos resistentes e agravada pelo quadro de superpopulação pós-colonização.

    O vídeo exibiu, sem narração e com uma música sombria, diversas notícias centradas em uma doença iniciada no Sudeste Asiático. Cortes editados falavam em infecção multibacteriana, resistência total a drogas, propagação aérea, gangrena, autoamputação, terminando com o nome da doença em várias línguas: — Yingzi… saaya… zil... kage... schatten… ombra… sombra… SOMBRA... — repetiram as inúmeras vozes de âncoras e repórteres, locutores de rádio, recortes de jornal e clipes de vídeo. A narração continuou: — Febre e manchas dolorosas na pele. As manchas crescem e escurecem, e então a dor cessa. Perde-se a sensação e o movimento da parte afetada. Em dias ela enegrece por completo, resseca, encolhe e cai. Ao longo de todo o processo, a pele da região afetada se descama em microflocos, os fômites, que levam a doença pelo ar e por qualquer coisa em que pousassem. Uma pessoa infectada podia se reinfectar, o que descartava quarentenas. Com tais características, a doença oportunista regozijou onde surgiu, na Índia e China, as maiores concentrações populacionais do planeta. Logo ficou evidente que não seria contida. A Sombra espalhava-se pelo globo e a única solução foi a migração. As populações fugiam das manchas que se espalhavam a partir dos epicentros, enquanto pesquisadores de todo o mundo buscavam formas de desinfecção e tratamento.

    O vídeo mostrou pessoas saindo de suas casas, carregando o que podiam, embarcando em trens, famílias se abraçando para não se separarem, pessoas chorando ou com os olhares perdidos nas janelas dos vagões, e depois as cidades fantasmas, animais de estimação soltos nas ruas, as casas reviradas pelos próprios donos apressados, deixadas com móveis, eletrodomésticos, veículos.

    — A humanidade esqueceu-se do significado da palavra lar. Não houve ponto do globo sem ser afetado. Nos piores momentos, pessoas que mal tinham descarregado suas coisas dos trens eram obrigadas a embarcar novamente para fugir da Sombra. No espaço de um ano, pessoas migravam sete ou oito vezes, atravessando países, continentes, oceanos.

    O operador pausou o vídeo. Deu uns dois petelecos em um aparelho dosador de medicamentos espetado a um dos braços de Marton, fazendo-o voltar a funcionar.

    — Então, carne², lembra quando a Sombra comeu essa perna? — deu um tapinha na prótese do paciente. Marton fez que não com a cabeça. O mascarado removeu a luva da mão direita, e exibiu dedos metálicos revestidos de película transparente similar a silicone, recheados de filamentos esbranquiçados. Alinhado com o dedo indicador nas costas da mão estava o nome da fabricante DEKA. A mão girou no pulso duas voltas completas antes de parar, os dedos abrindo e fechando. Recolocou a luva enquanto dizia: — Parte do meu pé esquerdo, também. Ninguém saiu inteiro. A notícia boa é que hoje a doença está relativamente controlada. Relativamente porque todo mundo pega e perde um pedaço, mas é difícil alguém morrer. A notícia ruim é exatamente isso. A doença mais desfigura do que mata. Não serviu de controle populacional. Quase 20 bilhões de pessoas com partes faltando. Podíamos montar uns 15 bilhões juntando as partes em pessoas inteiras, quem sabe?

    Não conseguiu rir da própria piada. A tela exibiu o título BABEL. A narração seguiu: — Desestruturados desde o fracasso da colonização espacial, os países se esmigalharam com a Sombra. Governantes fugidos instalaram gabinetes emergenciais fora de suas fronteiras, em um malabarismo para gerenciar suas populações e a desinfecção de seus territórios. As fronteiras perderam o sentido, a identidade nacional estava ameaçada, e para sobreviver só restava uma concepção nova de Estado: a Nação-Corporação. Por meio de Cartas Corporativas, os países se converteram em empresas, com os antigos bens públicos por patrimônio, e os cidadãos como investidores. Um novo ente político-econômico, visando resguardar a cultura de sua população, onde quer que estivesse no mundo.

    — Investidores. Contribuintes com outro nome! Quem não paga impostos, não pode ter identidade e direitos civis. — O operador pausou o vídeo. — O mundo tá uma putaria. Egípcio e vietnamita vizinhos no Chile, japonês faz comida mexicana em Nairóbi, canadense casa com neozelandês em Bagdá! Olha só pra gente: onde foi o Brasil, um búlgaro, um italiano, e uma gangue com tema mongol, sem um puto mongol entre eles! Tem canais inteiros com reality shows de reencontros de famílias perdidas, miscigenação, choques de cultura... O que estamos falando é o melhor exemplo. Isso que chamamos de babel: inglês misturado a mandarim e hindustani. Tem um monte dessas línguas francas, são as mais usadas hoje em dia. Falo mais eslávico, uma mistura de russo e línguas do antigo leste europeu, do que búlgaro. Aqui na América Latina e na Europa se fala bastante romance, mistura de português, francês, italiano e espanhol. Você deve saber romance. Não? No ricordas como dire qualque cosa in romance, amigo?

    O paciente apertou os lábios, rolou os olhos. Após um suspiro, o operador deixou o vídeo rodar.

    — As Corporações-Nações, depois de décadas de privatizações, eram incapazes de prestar serviços públicos ou atender diretamente as necessidades de suas populações. Tais serviços foram assumidos por empresas privadas, financiadas pelo capital público das nações. Assim, com o declínio dos Países, veio a ascensão das Corporações. A Organização das Nações Unidas tornou-se o Conselho Mundial, que funcionou como reguladora das Corporações, e coordenadora de recursos e esforços coletivos, como a estrutura financeira e o sistema de crédito social.

    — Ah, que frack é essa, por favor! — O operador chutou uma mesa próxima. — Olha as imagens que eles colocam! Gente feliz saindo do Walmart? Uma fracking propaganda do McDonald’s? O que eu tava esperando, é um filme da NBC. Que humanitárias essas empresas, vindo para o resgate da população necessitada! As Corps conseguiram privatizar tudo, e sob o pretexto de melhorar os serviços que prestavam, escapam toda hora de amarras regulatórias. A única coisa que segura uma Corp é outra Corp. Chama-se livre concorrência. Mas até é melhor quando estão em guerra. O pior é quando rola um acordo e monopolizam um mercado com uma concorrência de fachada. Esse mundo é delas. O homem foi reduzido a consumidor e empregado.

    O operador chacoalhou a cabeça, desamarrou Marton, e enquanto este esfregava os punhos, pegou uma manta de uma mesa próxima e jogou sobre os ombros dele. Adiantou o vídeo até este mostrar vítimas da Sombra recebendo próteses em substituição das partes que perderam, e o título TECNOLOGIA.

    — A triste

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