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Arquivos De Guerra
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E-book264 páginas4 horas

Arquivos De Guerra

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Sobre este e-book

Revisite 17 casos do detetive particular Márcio Guerra, ambientados em algum momento dos anos 80. Conheça aos poucos o ex-policial civil, que deixou o distintivo para trás por razões que variam conforme a quem se pergunte. Aprecie seu apurado método de investigação: sola, saliva, palmas molhadas, porrada e chumbo, não necessariamente para resolver o caso, se houver grana na jogada, ou se houver dura, dura justiça a ser aplicada. Coloque-se no banco do passageiro do Chevette bege de Guerra, e o acompanhe em cada um dos mistérios mais importantes de sua carreira, do momento em que o cliente passa pela porta até seu desfecho - por mais odioso que seja. O terceiro livro de Eduardo Capistrano busca inspiração nas histórias policiais das revistas pulp, não só em conteúdo mas também em apresentação, cada um transcorrendo de forma suficiente em si mesma, como se fosse publicada em fascículos de um periódico policial.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento4 de jul. de 2018
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    Arquivos De Guerra - Eduardo Capistrano

    EDUARDO CAPISTRANO

    Arquivos de

    GUERRA

    2ª Edição

    Curitiba

    Edição do Autor

    2018

    Capa: vinheta de Foca Cruz (focacruz.wordpress.com) para o conto O Caso da Morte do Mutreta, publicados originalmente na Revista Lama (revistalama.blogspot.com.br).

    Tipografia: Cookie de Ania Kruk (hello@aniakruk.com); Day Poster de Nick Curtis (www.nicksfonts.com); Special Elite de Brian J. Bonislawsky (www.astigmatic.com); Wobbly de Brian Kent (www.aenigmafonts.com).

    Revisão: João Kindra, Fernanda Romão, Fernando Frecceiro.

    Contos escritos entre fevereiro de 2012 e setembro de 2014.

    Catalogação na Publicação (CIP)

    Ficha Catalográfica feita pelo autor

    _____________________________________________________

    C243a

    Capistrano, Eduardo, 1980-

    Arquivos de Guerra / Eduardo Capistrano. – Curitiba: Edição do Autor, 2018.

    XXX p. ; 21 cm.

    ISBN 978-85-924917-2-7

    1. Contos brasileiros. I. Título.

    CDD: B869.35

    CDU: 821.134.3(81)-3

    _____________________________________________________

    Índices para Catálogo Sistemático

    1. Contos: Literatura brasileira 869.35

    A dois CAVALEIROS

    sem os quais esta obra não existiria:

    Le Chevalier C. AUGUSTE DUPIN

    cuja formidável ratiocination desemaranhou três duros casos em auxílio à gendarmerie de Paris;

    e

    BRUCE WAYNE

    bilionário, playboy, industrialista, filantropo

    de escapadas noturnas valiosas à sua querida Gotham.

    O Caso da Morte do Mutreta

    Como muitos de seus casos anteriores, o detetive Guerra poderia resolver aquele facilmente com um flexionar de dedos, um estampido, um corpo caindo ao chão. Não precisaria se preocupar com as explicações, as inevitáveis mentiras, a preocupação com as consequências. O homem diante dele sorria um pacto. As mãos ocupadas. A arma, se existisse, ainda na cintura. A sua própria já em mãos. A corrupção sorridente ergueu-se em direção à impunidade. Era como aquela citação. Bastava que Guerra nada fizesse. Os pensamentos dardejavam em sua cabeça.

    Márcio Guerra havia sido da Polícia Civil. Foi afastado, diziam, após ter sido acusado de matar um suspeito indevidamente. Ninguém de fato lamentava a morte do indivíduo, um traficante pego no flagra estuprando uma moça. Mas a morte atraiu a atenção da Corregedoria, na época em uma caça às bruxas para eliminar o vigilantismo no órgão. A perseguição foi infrutífera na época e Guerra podia ter continuado, mas preferiu sair, principalmente por temer um tiro pelas costas: que a morte do traficante fosse vingada por colegas policiais comprados pelo crime organizado.

    Confirmado ou não — ninguém saberia —, o motivo de sua saída da Polícia concedeu a ele uma reputação que soube usar na sua nova linha de trabalho. Bicos de segurança ou mensageiro no submundo acrescentaram vários nomes à sua já numerosa lista de contatos. Com isso, veio a oferecer seus serviços como Márcio Guerra – Detetive Particular, mas seria conhecido mesmo como resolvedor de problemas. Pessoas de toda a cidade e de todas as camadas sociais o procuravam para conseguir o que não era possível pelas vias normais. Ou legais.

    Seus métodos não primavam, ressalte-se, pela licitude. Assim, surpreendentemente ou não, a própria Polícia acabava lembrando desse seu ilustre ex-integrante como colaborador eventual, formalizando tal colaboração o quanto fosse apropriado para o caso em questão. Às vezes tinha que dar até nota fiscal de seus custos; às vezes, nunca revelaria que fizera o serviço para a Polícia.

    A ligação de Correia, um de seus antigos colegas, anunciava um desses casos. Não soube qual seria o grau de sua associação com a Polícia até comparecer no local e hora marcados para o encontro que discutiria o serviço. O endereço era em um bairro residencial de casas simples na periferia. Da casa em questão restavam apenas alguns tocos projetando-se do solo, terminando em carvão. Duas viaturas policiais ainda estavam no lugar. Era uma cena de crime.

    Sua presença foi apontada pelos presentes com os indicadores e polegares, os murmúrios e cochichos de costume. Sem cerimônia, passou cerca adentro para encontrar Correia diante dos escombros da casa. Tinha com o homem um acordo silencioso, mais forte do que uma lei anciã gravada em pedra. Mencionemos apenas que envolvia a então esposa de Correia, um certo sargento da Polícia Militar e uma cova nunca descoberta num dos bosques nos arredores da cidade.

    Apertos de mão foram seguidos de pigarros secos e silêncio, até que uma maca com um saco de cadáver foi empurrada até eles por um dos assistentes de legista. Guerra pegou a luva oferecida por Correia e abriu as abas do saco. Um cadáver carbonizado sorriria para ele, se tivesse dentes.

    Torceu o canto da boca. O ex-colega apresentou uma cédula de identidade de bordas chamuscadas. O documento estava em nome de um certo Célio Silva. As sobrancelhas do investigador se ergueram em reconhecimento do nome, e em seguida franziram em incredulidade. Afinal, como acreditar na morte do homem conhecido como Mutreta?

    Márcio lembrava-se dos feitos de Célio Silva desde seus tempos de Polícia. O Mutreta sempre fora um daqueles criminosos mais incômodos do que perigosos. Acumulava uma longa lista de contravenções e crimes pequenos, mas só alguns lhe tomaram os poucos anos que passou preso. Era habilidoso para não deixar provas e para inutilizar aquelas que deixava. Especulações abundavam sobre sua participação em infrações das mais variadas, das leves às gravíssimas; provas faltavam e Mutreta nada dizia, colhendo os frutos da reputação incerta.

    Por algum fato misterioso, o Mutreta era admirado pelos bandidos, talvez por ter sempre livrado a barra dos cúmplices em vez de bater com a língua nos dentes quando tinha a oportunidade. Mas ele sozinho podia mandar meio submundo pra cadeia. Envelheceu no crime, sempre respeitado. Seu nome era mencionado com alguma reverência até mesmo do lado da lei.

    Era um roleiro dos melhores, daqueles capazes de vender gelo para esquimó. Pregava peças em todo mundo, mas só o fazia pra obter alguma vantagem. Desenvolvera com esses hábitos lábia ferina, habilidade como mentiroso e a subsequente descrença de todos, com tudo o que fazia.

    Evidência de tudo isso era que tanto Guerra como Correia custavam a acreditar que tinha morrido. Verdade ou não, o fato de um documento dele estar em um cadáver carbonizado dentro de uma casa incendiada era complicação suficiente. Teria sido morto por um de seus inúmeros possíveis inimigos, que finalmente descobriram ser ele o causador de algum prejuízo? Ou seria mais uma peça elaborada do Mutreta? Se fosse o caso, em quem ele a estava pregando?

    Correia apresentou ao investigador alguns dos policiais que também examinavam a cena. Um par de novatos, resmungou o agente de meia-idade. Guerra trocou algumas palavras com os rapazes. Havia perdido muito da profissão, mas ainda sabia reconhecer o traquejo que vinha com o ofício. Os policiais podiam ser novos, mas já demonstravam algo da amargura que vinha com o endurecimento.

    Os novatos estavam investigando novas pistas sobre um notório assalto a banco que havia ocorrido anos antes. Receberam uma denúncia anônima que não parecia muito válida e acabou sobrando para eles. Estavam ansiosos por um caso que lhes desse algum renome e seguiram uma longa trilha de migalhas, todas cercando o Mutreta. Guerra perguntou como chegaram à conclusão. Cinco das pessoas que interrogaram estavam a alguns nomes de distância de conexão com Célio Silva. Nada mal, pensou o detetive com as sobrancelhas erguidas. Ele próprio conhecia os nomes e as conexões, mas não chegou àquele desfecho. Os novatos ainda não tinham o suficiente para fechar o cerco, quando foram notificados do incêndio.

    Era parte do método Guerra de investigação apropriar-se sem arrependimento das descobertas dos outros, sem a necessidade de contraprestação. Ocorreu ao investigador outros dois conhecidos do Mutreta não mencionados pelos novatos, que poderiam lançar luz sobre o paradeiro de Célio, se fosse outro que não o necrotério.

    Alguns monossilábicos com Correia firmaram o contrato com seus serviços de investigação. A combinar. Dependia do que descobrisse. Correia não havia nascido ontem; se aquilo tudo resultasse na solução do assalto a banco, a Polícia ficaria com os louros.

    Sondou a cidade atrás dos dois conhecidos de Célio Silva. O primeiro era franzino o suficiente para Guerra dar uma de valente. Seu Chevette bege 1980 parou na frente da padaria onde o elemento tomava uma média com misto quente e chacoalhou o homem até ver que aquilo não daria em nada. O homem não tinha mais negócios com Mutreta desde que ele tinha tentado enganá-lo, e pareceu surpreso, mas não muito feliz, ao saber da morte dele. Célio Silva tinha se tornado importante para muita gente. Mesmo quem desconfiava dele preferia que continuasse vivo.

    Não encontrou o outro conhecido, ou melhor, conhecida, de Mutreta. Os dias se passaram, as pistas esfriaram e a busca infrutífera por palpites que se seguiu, além de outros trabalhos e outras preocupações, afastou a morte de Mutreta da lembrança de Márcio. Sua consciência estava tranquila, pois os contatos cada vez menos esporádicos com Correia indicavam que a dupla de novatos também não tivera sucesso algum.

    Isso até Mutreta morrer de novo.

    Confusos e sonolentos, encontraram-se Correia, Guerra e os novatos em plena madrugada numa das rodovias que saíam da cidade. A linguagem do momento eram palavrões e impropérios, à medida que avançavam centenas de metros, barranco abaixo e matagal adentro, seguindo uma trilha de lama e vegetação esmagada que já começava a se fechar. A trilha acabava em um festival de fachos de lanterna que convergiam para as ferragens de algo que fora um dia um automóvel. Do metal retorcido emergia uma mão horrorosamente fraturada e putrefeita.

    O detetive iluminou a placa do carro e lançou um olhar para Correia, que em resposta acenou afirmativamente depois de olhar para um extrato que trazia em mãos. Era o carro de Mutreta, desaparecido de sua casa incendiada até aquele momento. Já raiava o dia quando os bombeiros terminaram de cortar as ferragens e extraíram o cadáver para os legistas. Um deles sacou a carteira arruinada e seu conteúdo arrancou risadas nervosas e maldições da equipe. O cadáver portava a carteira de habilitação de Célio Silva.

    Os dois Mutretas estavam lado a lado sobre mesas de autópsia no Instituto Médico Legal. Guerra e os outros trocavam hipóteses. Só cabia uma de duas situações: o verdadeiro Célio Silva estava ou não dentre os cadáveres. Estavam providencialmente desfigurados além do reconhecimento, com impressões digitais e arcadas dentárias destruídas. O caso ganhou atenção e os novatos regozijavam com a já garantida notoriedade. Exames periciais mais dispendiosos foram autorizados e apenas Guerra e Correia ficaram mais preocupados do que tranquilizados. Todos acreditavam que o segundo cadáver seria o erro que resolveria todo o caso. Mas os dois veteranos sabiam que o talvez defunto não chegou à reputação que tinha cometendo erros.

    Os novatos agarraram-se ao caso com unhas e dentes e curtiram a breve onda da fama, dando entrevistas e fazendo o caso do Mutreta chegar aos jornais e revistas. Ocorrendo bem no meio de uma seca de tópicos da mídia, o Caso Mutreta ganhou os jornais, revistas e noticiários, sendo discutido e até julgado com autoridade por qualquer um que tivesse lido meio parágrafo de um dos vários artigos especulativos que foram publicados.

    Enquanto isso, o detetive procurou confirmar a hipótese de que nenhum dos dois cadáveres era Mutreta, gastando algum tempo indo atrás dos cinco nomes que os novatos esperavam conectar a ele. Dois já estavam mortos há muito tempo. Os outros três estavam desaparecidos. O mais recente, um elemento conhecido por Champinha, havia sido visto pela última vez apenas alguns dias antes, em um restaurante de beira de estrada. Todos estavam no meio das conexões entre o banco que fora assaltado e Mutreta. Removendo-os, a conexão estaria eliminada.

    Tornou-se prioridade para Guerra encontrar quem podia ter respostas verdadeiras. Aquela conhecida de Célio Silva que ele não havia encontrado antes podia ser a única. Só a conhecia pelo apelido de Nega Maluca. Mutreta gostava muito da Nega, mas ninguém sabia o quanto. Guerra apostava que era sua amante, daí o mistério quanto à relação. Esquadrinhou os pontos preferidos de Mutreta, os verdadeiros, e não os que se diziam como tais para atrair a atenção da mídia e de fregueses impressionáveis. Por um módico cinquentinha arrancou o paradeiro da Nega.

    O ex-policial esperava que Mutreta tivesse arranjado lugar melhor para esconder uma namorada. Talvez ela não fosse nada disso. O cortiço formado por dois prédios abandonados e uma viela ficava em uma área não recomendada perto do centro da cidade. Guerra entrou no lugar com a arma em mãos. Corredores repletos de lixo pareciam indicar um lugar desabitado, mas de susto quase meteu uma bala na cara de um viciado que cambaleou sobre ele, saído de um dos muitos apartamentos vazios.

    Devolveu o viciado ao apartamento com tapas e xingamentos. Em resposta à comoção que causou, ouviu gritos e barulhos um andar acima, que era para onde se dirigia. Correu para as escadas e subiu apressado, a tempo de ver alguém correndo sumir no fim do corredor. O investigador chegou à porta por onde o vulto saiu, lançou um rápido olhar para dentro e mesmo sua casca grossa de policial veterano perdeu uma lasca. Em um pequeno e agradável apartamento no meio daquele antro imundo, envolta apenas nos lençóis sobre uma cama abarrotada, uma polaca de generosas carnes róseas se contorcia e cuspia uma espessa espuma branca, tendo três seringas enfiadas no braço direito.

    Guerra já amaldiçoava a própria burrice assim que arrancou as seringas, tentando com uma mão ligar para uma ambulância com o telefone ao lado da cama, enquanto a outra abria a mandíbula travada da mulher para evitar que engasgasse com a própria língua. Quando finalmente conseguiu completar a ligação, o volumoso corpo da Nega Maluca já havia parado de convulsionar, a língua caindo flácida fora da boca. Deveria ter corrido atrás de quem fugira. Trocou o pedido de ambulância por um rabecão.

    Antes que Correia e os outros chegassem, Guerra teve bastante tempo para examinar o apartamento. Havia indícios suficientes para determinar que alguém estivera residindo ali com a Nega, já fazia algum tempo. Havia roupas de homem com as dela e camisinhas novas e usadas ao lado da cama. Um rastro de notas de dinheiro amassadas levavam de uma caixa de sapatos no armário até uma janela escancarada. Da janela, enxergou uma caixa metálica sobre a marquise do prédio vizinho, contendo, ao que parecia, mais dinheiro.

    Nem esperou os policiais chegarem. Não deixou rastro de dinheiro para ser encontrado. Talvez considerassem uma overdose acidental e tardariam a descobrir quem era a vítima, demorando para alertar Correia e os novatos. Estudou uma maneira de pegar a caixa sobre a marquise e acabou estacionando o Chevette embaixo dela, colocando um engradado de cerveja em cima do carro e equilibrando-se sobre ele com muito cuidado. Puxou a caixa com a ajuda de uma ripa. Além de mais algumas notas, dentro havia um pequeno álbum, daqueles fornecidos pelo laboratório que revela fotos. Três fotos felizes de Célio Silva e a Nega Maluca, dentre plásticos rasgados de outras fotos arrancadas à pressa. Guerra sorriu. Tinha ido atrás da caixa apenas pelo dinheiro.

    Estava certo de ter visto o lugar de uma das fotos, com data de alguns dias antes. Manteve-a sob um elástico no quebra-sol do Chevette. Queria que ficasse à vista, para ver se lembrava de onde ficava aquela rua, aquela parede azul-calcinha, aquele símbolo que havia sido cortado pela metade, atrás de Mutreta e sua amante morta. No meio do seu jantar de x-salada e suco, se recordou. O símbolo era de um motel de beira de estrada que não visitava há muito tempo. Terminou o sanduíche no caminho para lá.

    Passava da meia-noite quando chegou. Parou uma quadra antes do motel e andou a pé. Um rapaz foi o tempo inteiro na sua frente e entrou no motel também. O rapaz era um funcionário, que assumiu o balcão e prontificou-se a oferecer um quarto, dizendo entre piscadelas e cutucadas de cotovelo que podia estacionar no motel, pois o sigilo era absoluto.

    Descobriu com uma nota de cinquenta que não era tão absoluto assim. O casal da foto havia se hospedado no quarto 27, sem deixar qualquer registro. O homem do casal ainda estava hospedado. Por mais cinquenta, saiu do saguão com uma chave para o quarto.

    Alcançou a porta com o revólver em mãos. Anunciou-se como serviço de quarto, batendo na porta. Sem resposta. Usou a chave e entrou rapidamente, trancando a porta atrás de si. No interior, um homem nu estava amordaçado, vendado e amarrado sobre a cama. Começou a se debater assim que notou alguém no quarto. Seu porte estava entre as semelhanças que tinha com Mutreta, mas não era ele. Guerra o reconheceu de fotos da polícia: era Champinha. O detetive só tirou a mordaça depois de explicar quem era. O homem choramingou em mal português que só lembrava de estar bebendo em um bar para acordar ali.

    O prisioneiro perguntou por que Guerra não o libertava. O detetive recolocou a mordaça, sem mencionar a corda com o nó de forca pendendo do forro no meio do quarto. Deixou o homem se debatendo, apagou as luzes e esquadrinhou o apartamento só com a lanterna, atento a qualquer som do corredor. Nada havia encontrado quando notou que a porta estava sendo destrancada. As janelas estavam com as cortinas abertas, em duas cascatas vermelhas ladeando a paisagem noturna atrás dos vidros. Escondeu-se atrás de uma das cortinas, seus pés ficando ocultos por um criado-mudo.

    As luzes se acenderam e alguém ofegante entrou. As cortinas eram blecautes de tecido grosso e impediam que Guerra visse quem era diretamente. Mas podia ver o reflexo no vidro da janela atrás de si. Era um cansado Célio Silva, carregando uma grande bolsa de viagem. O prisioneiro se debateu com as luzes acesas. Mutreta derrubou a bolsa ao lado dele e lhe desferiu um tapa na cabeça, dizendo que ficasse quieto. Avançou para a janela em cujas cortinas Guerra se escondia, parando a palmos de distância dele, sem vê-lo. Olhou para fora por alguns instantes e voltou para o prisioneiro.

    Trouxe uma cadeira abaixo do nó de forca e sentou nela, ao lado do prisioneiro. Sacou um isqueiro e brincou com ele nervosamente. Guardou o objeto, subiu na cadeira e segurou-se na corda com as mãos, erguendo os pés. A corda aguentou seu peso. Desceu, pegou um pacote de salgadinhos da bolsa e comeu um atrás do outro. Retirou um papel escrito do bolso, correu os olhos por ele com detimento e o colocou sobre a cama. Logo sacou o isqueiro e voltou à nervosa brincadeira de antes.

    Mutreta respirou fundo, parecendo resolvido. Sentou-se e pegou uma das mãos do prisioneiro. Agarrou firme um dos seus dedos, e com a outra mão acendeu o isqueiro. Levaria a cabo a repugnante tarefa de queimar as impressões digitais de Champinha, não fosse a inesperada pressão de um cano de revólver em sua nuca.

    O rastro de dinheiro até a fotografia era muito evidente para ser acidental. A data da foto faria quem a descobrisse vir até o motel. Chegando um pouco mais tarde, descobririam um corpo enforcado e desfigurado, certamente com algo que indicasse ser Célio Silva. Como em outros casos — tanto profissionais como amorosos — Guerra era recompensado pelo seu profundo conhecimento dos motéis da cidade.

    Célio Silva deixou cair os ombros. Relutava em começar aquela odiosa tarefa e parecia aliviado por ter sido interrompido. Márcio lamentou que alguém da reputação dele tivesse posto tudo a perder daquele jeito. O detetive descreveu como só uma coisa podia fazer aquilo tudo ter sentido. Mutreta precisava sumir antes que a Polícia descobrisse as pontas soltas de um crime antigo. Como aquele assalto a banco de anos atrás. O detetive só quis saber por que forjar a própria morte mais de uma vez.

    — Para sumir... sem dar aos meus inimigos o gosto da certeza.

    Sem se virar, Mutreta sorriu seu sorriso irresistível. Propôs com algumas palavras que ele sairia do quarto e desapareceria. Guerra podia ficar com a bolsa e tudo o que havia nela. Com um gesto sutil, abriu a bolsa, revelando pacotes de cédulas, ainda envoltos com a fita de papel do banco. Assegurou que não era nem perto do total, mas que seria o máximo que qualquer pessoa encontraria. Com o silêncio do detetive, Célio Silva levantou-se e andou lentamente até a porta, para a impunidade, sorrindo...

    Horas depois, Guerra retornava ao mesmo quarto. Tentou parecer indignado ao ver o corpo enforcado que era examinado por Correia e pelos novatos. Aguardou enquanto os peritos desceram o corpo, a face destroçada além do reconhecimento, os dedos carbonizados. O papel sobre a cama era uma nota de suicídio, escrita

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