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Prisioneiro Do Ego
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E-book380 páginas5 horas

Prisioneiro Do Ego

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Sobre este e-book

Qual a sua expectativa em relação ao futuro do nosso planeta? O que esperar do amanhã? Quais os seus maiores medos, angústias, sonhos e pesadelos? Como poderemos contribuir para a definição do rumo dos acontecimentos, não deixando para o destino essa atribuição que nos é incumbida? Você acredita na viabilidade de serem realizadas viagens intergalácticas? Você crê na possibilidade de se transitar através das dimensões do tempo, vencendo-se as barreiras do inimaginável? Rafeal Ceadric procura abordar estes e outros profundos questionamentos nesta obra de ficção, que se constitui na segunda parte de O Inverso de Pi, ainda sem a intenção de respondê-los.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento30 de jan. de 2021
Prisioneiro Do Ego

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    Pré-visualização do livro

    Prisioneiro Do Ego - Rafeal Ceadric

    ¹ . A ausência dos sons no meu universo particular, a falta de captação das cores, do apego à textura dos objetos e dos cheiros ao redor estava dificultando sobremaneira a minha tomada de decisões. A exclusão incondicional das sensações corpóreas convertia-me aos poucos em um indivíduo pouco resoluto. Ao menos os meus próprios pensamentos são dignos de serem captados pela mente e se confundem com a sonoridade, na forma de uma voz interior. Uma falsa manifestação sonora que nunca se cala.

    O som é a luz dos desprovidos de visão e o silêncio é a escuridão. Percebi que a frase simbólica não fazia sentido para mim. Ela havia sido lida muitos anos antes numa plaqueta de cobre, guardada sobre a mesa de um clínico geral, e acondicionada na minha prodigiosa capacidade mnemônica. Luz e som eram artigos de luxo existenciais, não passavam de desejos, fragmentos de uma vida passada. Nada que lembrasse o Isak P. Andrew de outrora.

    Isak P. Andrew, Isak P. Andrew, Isak P. Andrew, Isak P. Andrew... Tenho que repetir o meu nome exaustivamente, inúmeras vezes durante os dias e as noites – como se houvesse diferença entre os dias e as noites – para que não me esqueça da minha própria identidade. Não quero me transmutar numa máquina, em um processador de informações digitais de última geração que, numa época distante, foi um homem. Não quero ter o mesmo triste fim do meu falecido amigo Fred, transformado em um androide de carne e osso. Afinal, não desejo converter-me no número zero.

    ***

    Embora pareça insignificante, por não representar valor algum quando isolado, a criação do zero foi de máxima importância para a humanidade, equivalendo a outros eventos notáveis, a exemplo do domínio do homem sobre o fogo ou a invenção da roda na pré-história.

    Diferentemente dos demais algarismos naturais, criados para registrar a existência de elementos num conjunto, o retardatário zero nasceu com o encargo de resolver um problema específico da matemática: o posicionamento da numeração.

    Sem a presença do zero, alguns problemas inerentes à escrita numérica posicional permaneceriam pendentes, notadamente a mecanização das operações aritméticas relacionadas aos cálculos. O desenvolvimento das máquinas de calcular e dos computadores deveu-se, portanto, a essa importante evolução.

    Não coube à destacada civilização romana a honraria quanto à idealização do número zero. Seus algarismos tradicionais, representados pelas letras do alfabeto I, V, X, L, dentre outras, não foram desenvolvidos visando à promoção de cálculos, mas tão somente para representar quantidades.

    O povo hindu, este sim, percebeu com primazia a necessidade de se demonstrar esse fundamental número. Por meio da utilização do ábaco, os hindus trabalhavam com os nove primeiros dígitos escritos, em vez de operarem com as arcaicas pedrinhas. Quando da realização de cálculos, os algarismos eram pinçados na areia, apagando-se as quantidades quando essas completavam a dezena. Na ausência de um número em determinada ordem, a respectiva coluna ficava em branco.

    Para a leitura deste número, tornou-se necessária a criação de uma palavra específica para designação da ausência de unidades: sunya. A coluna do ábaco sem nenhum elemento apresentava-se sunya, ou seja, vazia.

    A representação visual para o caçula zero na forma de um círculo veio a ocorrer somente por volta do século V d.C., vindo a se juntar aos outros nove algarismos anteriormente criados.

    É um número aparentemente irrelevante cujo significado transcende à matemática.

    Um indivíduo considerado zero à esquerda tem a sua importância reduzida a nada. Eu não me considerava um espécime desse tipo, pois tive o meu valor. Talvez, infelizmente, a humanidade não reconhecesse isso. Haveria oportunidade para exposição da minha defesa?! No contexto em que me encontrava, entrementes, meu conceito não seria nem zero à esquerda, nem à direita. Eu poderia ser considerado o próprio Zero, o vazio. Isak Andrew, o Sunya.

    RETROSPECTIVA

    As primeiras semanas vivendo na escuridão absoluta foram terríveis. Senti-me como se fosse Kaio, o qual não pôde desfrutar das benesses proporcionadas pela luz, durante muitos anos da sua limitada existência. Uma escuridão tão profunda, um breu tão intenso, que até o mais cego dos cegos, um deficiente visual nunca visitado pela luminosidade, sentiria pena de si mesmo.

    O fim do crepúsculo assemelhava-se ao espaço vazio infinito. Um extenso vão desalumiado e privado de colunas, paredes ou teto. Um universo dedicado ao experimento de sensações substitutas à captação das imagens.

    Recordo-me de uma época sadia, em que vivia com a minha família em clima de tranquilidade e harmonia. Numa certa tarde de domingo encontrava-me juntamente com Kaio na praça principal de Georgetown. Ele brincava na grama com um carrinho de metal, próximo ao escorregador onde as demais crianças se divertiam. O vento soprava forte. Duas imponentes palmeiras dançavam ao sabor do clima ameno. As longas folhas perpassavam de um lado para o outro em movimentos rítmicos. Algumas delas, desgastadas pela ação do tempo e vencidas pela força do vento, caíam sobre o solo. A atenção de Kaio recaía apenas no seu novo brinquedo metálico, cuja cor ele desconhecia. Naquele dia, fechei os meus olhos e tentei simular o universo em que ele vivia. Pude perceber com mais ênfase o som do vento colidindo contra as árvores, a gritaria eufórica da meninada, o barulho dos carros descendo a rua lateral. Até mesmo minha respiração era possível escutá-la. Luz, cores e movimentos, por outro lado, foram suprimidos naquele momento de simulação da cegueira.

    A ausência da luz pode causar náuseas quanto à noção da passagem do tempo. Para quem enxerga, a chegada do astro matinal indica o início de um novo dia. De forma análoga, o pôr dessa estrela mostra que aquele mesmo dia está se exaurindo. Os procedimentos rotineiros relacionados aos atos de acordar e dormir estão vinculados, de certa forma, ao movimento do Sol. Um ato biológico calcado num evento astronômico sistemático.

    Para quem não possui o sentido da visão, deve haver certa dificuldade em identificar o momento adequado de se levantar da cama, uma vez que o Sol nunca se encontra disponível aos seus olhos. Dias e noites

    são iguais. Será mesmo?! Jamais tive a coragem de fazer esse tipo de indagação a Kaio. No meu caso trazido a exemplo, as circunstâncias eram diferentes, uma vez que meus circuitos integrados dispunham de mecanismos de contagem do tempo.

    Um dos colegas de Kaio era deficiente auditivo desde o nascimento. Ele se divertia no escorregador com sua irmã. Ao contrário do meu filho, o garoto não possuía a capacidade de captar o som produzido pelo movimento de vai e vem das folhas das palmeiras. Não pude segurar o ímpeto de experimentar referida limitação física. Assim, na época, tapei ambos os ouvidos com as pontas dos polegares, pressionando-os contra as orelhas. O efeito obtido não foi o mesmo apurado com a visão, haja vista que, mesmo tapados, os sons são capturados pelo órgão auditivo. Reduzem-se o volume, intensidade e qualidade dos sons ao obstruirmos os canais de entrada, mas não deixamos de captá-los integralmente. A bigorna, o martelo e o estribo continuam trabalhando incessantemente.

    Lembranças perdidas no tempo. Minha existência fora transformada num labirinto de trevas e silêncio absoluto por imposição do destino.

    Destino... Ah, o destino! As recordações da masmorra na China surgiram à minha mente com um realismo impressionante. Defronte ao elevador, qual opção

    a escolher dentre as quatro alternativas disponíveis: A1A, B2B, C3C ou D4D? – perguntei-me na época, trêmulo. Tive sorte naquele dia. Não pretendia subjugar-me ao destino, tal como os pensadores fatalistas o faziam. Continuo não pretendendo. As circunstâncias em que me encontro, todavia, têm o poder de transformar este pensamento positivo apenas numa tese, numa ideologia distante de ser alcançada.

    Retornei à dura realidade, esquecendo-me por instantes daqueles momentos vividos no passado. Eu me encontrava prisioneiro de mim mesmo, abandonado num cárcere sem grades nem janelas. Não poderia esboçar nenhuma reação, planejar uma fuga espetacular ou simplesmente pedir ajuda a alguém. Só me restava o abrigo da solidão.

    Diferentemente do que pensara antes, meu destino parecia estar definitivamente traçado. Mas... Aonde se encontrava o destemido Isak P. Andrew de outrora? O Isak que suportou a perda precoce da esposa amada; o homem que enfrentou um castigo lastimável por longos dez anos, obrigado a sacrificar a parceria de um amigo visando retomar a liberdade; o pai ausente por motivo torpe, que reuniu coragem de aprisionar o próprio filho objetivando protegê-lo dos perigos do mundo; o cidadão que desafiou o inimaginável, almejando desvendar um enigma e salvar a humanidade.

    Eu estava ali, inerte, acondicionado em um cérebro eletrônico do tamanho de uma moeda. E deveria buscar uma forma de retornar ao mundo exterior, uma maneira de escapar daquela agrura eterna. Mas, como?! De qual maneira conseguiria obter êxito nessa pretensa empreitada?!

    PLANOS DE FUGA

    Busquei soluções dentro do meu banco de dados cibernético, repleto de informações diversificadas. Minha robusta memória fora desenvolvida visando suplantar a limitada capacidade humana de pensar. Assim, identifiquei inúmeros registros bibliográficos que, a princípio, poderiam ajudar-me a desenvolver um plano de fuga exitoso.

    Catálogos de livros, filmes, ensaios, tudo o que se relacionava a fugas e escapadas tornara-se bem vindo naquele momento de ansiedade extrema. Ficção ou realidade, não importava a origem do relato, o importante

    era servir de mote para a minha própria liberdade.

    O Assalto ao Trem Pagador, por exemplo, constituía-se num registro guardado na pasta de código F-3.943 do meu cérebro. Contava a história verídica de um grupo de criminosos ingleses que planejou o roubo ao trem mais famoso do Reino Unido, fato acontecido no distante ano de 1.963. Eles subtraíram uma quantia considerável de dinheiro, suficiente para viverem abastados pelo resto de suas vidas. O plano de Bruce Reynolds era quase perfeito e, por coincidência, a ação ocorreu não muito distante do local onde fui fuzilado, nos arredores de Londres.

    O itinerário do trem havia sido identificado previamente, então o bando simulou uma parada não programada da composição sobre uma ponte localizada no condado de Buckinghamshire. Daí não foi difícil renderem o maquinista e seu ajudante. Levaram quase todo o dinheiro disponível, acondicionado em dezenas de sacos plásticos e transportado em três veículos de carga. Até este ponto do relato não capturei nenhuma informação pertinente que pudesse auxiliar minha criatividade a esboçar uma reação ao marasmo.

    Os ladrões foram descobertos por um motivo fútil. Eles deixaram suas impressões digitais em um jogo de tabuleiro conhecido como banco imobiliário, um erro infantil cometido pelos incautos meliantes. Os integrantes do grupo foram aprisionados. Somente os líderes conseguiram escapar da prisão. Reynolds refugiou-se no México e em seguida no Canadá, enquanto seu comparsa, Ronald Biggs, desembarcou clandestinamente no Brasil. De qual forma criminosos tão conhecidos, protagonistas de um assalto cinematográfico, considerado por muitos como o Roubo do Século XX, conseguiram escapar de um forte esquema de segurança e fugiram para outros países? Eu não dispunha de riqueza monetária para corromper meus algozes, contudo, mesmo se tivesse,  não havia algoz disponível para ser corrompido.

    – Em minha opinião, não se tratou de um plano mirabolante. Um simples assalto a uma locomotiva, cuja guarda mostrou-se deficiente. Uma fuga questionável... Tenho minhas dúvidas se este relato histórico serviria de modelo. E outra coisa: há diferença técnica entre os termos roubo e assalto. Não misture as coisas!!! – advertiria Thomas, sempre alinhado com a conformidade das expressões e preocupado com o preciosismo, caso sua presença retornasse à minha mente.

    – Não estou a fim de discutir termos jurídicos, Thomas. Até porque você sabe que eu conheço o significado de ambas as palavras! – eu responderia a ele, se fosse necessário.

    Eu sentia a falta de Thomas, assim como acumulava saudade de Kaio, Kathe, Erica, Fred, Wilber e tantos outros que participaram efetivamente da minha vida. Alguns deles, a maioria, eu tinha certeza quanto ao destino traçado. Outros, ao contrário, desconhecia por completo. Se já faziam parte do passado ou ainda dispunham de um futuro pela frente.

    Fuga para a Vitória... O título pareceu-me bem insinuante. Tratava-se de um arquivo acondicionado na pasta F-3.556, que abordava o conteúdo de um filme ambientado durante a segunda guerra mundial. Na película acessada, um grupo de prisioneiros, dentre os quais um encarcerado interpretado por um jogador de futebol chamado Pelé, fora desafiado pelos nazistas para a disputa de uma partida no estádio Colombes, em Paris. Os alemães pretendiam demonstrar a força do seu exército, vencendo o jogo de forma inquestionável, enquanto os aliados planejavam uma arriscada fuga, executável durante a partida.

    Definitivamente, afora a inspiração motivada pelo título da obra, não consegui extrair um vínculo que pudesse favorecer a minha imaginação.

    E quanto a Um Sonho para a Liberdade, arquivado indevidamente na pasta C-3.121? Redirecionei imediatamente a mídia para a pasta correta F-3.291. Ah, esse sim me pareceu um enredo interessante! O banqueiro Andrew Andy Dufresne encontrava-se preso numa penitenciária estadual, nos Estados Unidos, acusado de ter matado sua esposa e o amante dela. Ele fora condenado à prisão perpétua, submetido aos mais terríveis dissabores, humilhado sem dó nem piedade. Muito tempo se passou e ele conseguiu, a duras penas, conquistar a confiança das autoridades locais, em função do largo conhecimento em finanças acumulado na carreira de banqueiro. Esse foi o seu grande trunfo. A fuga do cárcere naquelas circunstâncias realmente apresentou-se surpreendente, um raro exemplo da prática da falsa abnegação, justificável naquela conjuntura. Uma escapada a serviço da persistência, ultrapassando barreiras aparentemente intransponíveis.

    Retornei às minhas buscas, encontrando um arquivo salvo em meio magnético na pasta F-3.884, localizada no neurônio LFE-2.973.528, responsável pela guarda desse tipo de informação. Fuga de Alcatraz era o nome do arquivo. Nele, contava-se a história verídica de quatro detentos responsáveis pela elaboração de um plano impecável, visando fugirem da prisão federal de Alcatraz, também nos Estados Unidos. A penitenciária era considerada uma das mais seguras do mundo, devido a sua localização às margens da baía de São Francisco, numa ilha conhecida como A Rocha. Ninguém nunca havia conseguido fugir de lá.

    Após meses de intenso planejamento, os irmãos presidiários Anglin, apoiados pelo colega Frank Morris, idealizador do plano, colocaram-no em prática. O quarto elemento desistiu na última hora, talvez amedrontado com o peso da incumbência, que lhe furtou a coragem. Eles haviam cavado as paredes das celas usando colheres, cortaram uma barra de proteção com uma furadeira improvisada a partir de um ventilador roubado de dentro da própria prisão e, enfim, conseguiram atingir o telhado da prisão, despistando os numerosos vigilantes armados. Em seguida, pularam a cerca de arame farpado e chegaram à praia, e logo depois ao mar, utilizando-se de botes e coletes salva-vidas confeccionados com materiais extraídos de capas de chuva. Antes, porém, haviam feito bonecos de papel e os deixado sobre suas camas visando iludirem os ingênuos guardas.

    Muitos outros prisioneiros tentaram escapulir daquele inferno erguido sobre pedra e ferros, sem sucesso. A maioria fora recapturada, outros mortos pelos policiais e alguns se afogaram no mar de águas geladas, onde as correntes marítimas são fortíssimas. As autoridades americanas nunca descobriram se os irmãos Anglin, juntamente com Frank Morris, conseguiram de fato escapar com vida da prisão em Alcatraz. Seus corpos nunca foram encontrados. Mas uma ocorrência estranha desmentia essa possibilidade. Conta-se que a mãe dos irmãos passou a receber um buquê de flores desacompanhado de um cartão de identificação, em todos os seus aniversários, até o último dos seus dias.

    Teriam eles realmente sobrevivido?! Ou algum espertalhão interessou-se pela história e resolveu patrocinar o mistério, remetendo flores à mãe dos fugitivos com o objetivo de angariar uma recompensa futura, sob a forma de imortalização do mito? Mas, se eles realmente morreram durante a fuga, possivelmente sobrepujados pela força do oceano gélido, aonde foram parar seus restos mortais desfigurados que serviram de alimento aos peixes?

    – Eis um grande incentivo à sua fome de liberdade, Isak. – dir-me-ia meu pai, se estivesse vivo, demonstrando sua sapiência de sempre.

    – Preciso encontrar a colher para cavar um buraco na minha cela mental! – eu responderia ao senhor Charles Andrew.

    A prisão em Alcatraz foi fechada anos depois. A história verídica dos três foragidos rendeu incontáveis livros e filmes, bem como proporcionou importantes divisas aos americanos, em função do turismo incentivado pelo fascínio dos curiosos em conhecerem a Rocha.

    Noutro livro digital, armazenado na pasta G-4.791, tive conhecimento da insólita estória envolvendo quarenta soldados que foram trancafiados misteriosamente num recipiente fechado, em um lugar desconhecido. Após serem libertados, três deles iniciaram uma incessante busca visando encontrarem respostas às suas múltiplas dúvidas. Senti-me como se fosse o protagonista, o quadragésimo combatente, envolto em mistérios e desilusões. O trágico final oferecido aos desbravadores, na difícil peleja contra o destino, trouxe-me momentâneo desalento.

    No livro Papillon, igualmente transformado em filme, obtive o registro de uma façanha de similar tamanho. Ambientado na Ilha do Diabo, um sinistro complexo de presídios situado na Guiana Francesa, conta a fuga espetacular e autêntica de Henri Charrière, conhecido por Papillon – borboleta em francês, em alusão

    a uma vistosa tatuagem produzida no peito do fugitivo.

    De modo semelhante, em Plano de Fuga, Expresso da Meia-Noite, Fuga de Nova York, A Fortaleza, 72 Horas, dentre milhares de outras produções artísticas, tive bons exemplos de engenhosas formas de escapar das mais difíceis situações. Nenhuma delas, entretanto, parecia conter algum elemento que pudesse ajudar-me a sair do exílio mental. Fiquei exausto com os inúmeros relatos de escapadas cinematográficas acessadas no meu banco de dados cerebral. Instintivamente, lembrei-me do dia em que Kaio elogiou o meu plano de fuga concretizado na prisão no Oriente, uma peripécia na visão do garoto:

    – Pai, em minha opinião a sua fuga da China foi uma das ideias mais sensacionais de que tive notícia. E quanto à decisão de me proteger no RCT? Isso salvou a minha vida. E os meus olhos eletrônicos, não foi o senhor quem desenvolveu juntamente com Wilber? O senhor é o homem mais criativo do mundo!!! – disse-me ele na época.

    O homem mais criativo do mundo! Esta fora a observação feita pelo meu filho. A minha escapada da detenção na China poderia render um bom filme: Fuga para a Eternidade seria um título sugestivo.

    Os títulos reais são diversos. Fuga de Alcatraz, Papillon, Expresso da Meia-Noite e tantas outras histórias... Pena que o meu HD interno não dispunha das mídias gravadas destas belíssimas películas. Apenas continha um farto material sobre as obras, desde a sinopse até os dados envolvendo a produção e o elenco. Fiquei muito interessado em assistir aos filmes após conhecer um pouco dessas histórias. No futuro, imagino, creio que os C2IN – os Cérebros Inorgânicos de Inteligência Natural – serão capazes de armazenar todo o conteúdo de nosso interesse. Milhões de filmes gravados em altíssima definição, músicas para todos os gostos, espetáculos culturais, além de informações históricas, científicas, tecnológicas, políticas e econômicas. Todo o conhecimento humano gravado num chip de tamanho minúsculo.

    Parece absurdo, mas o avanço poderia ir além disso. Não haveria necessidade das informações serem gravadas no próprio chip encravado no cérebro. Poderiam estar disponíveis num centro de controle universal, acessível a todos e a qualquer momento. Uma espécie de rede mundial de computadores aprimorada, descentralizada, democrática, sem a tutela de nenhum governo, um avanço do modelo de arquivamento de dados em nuvem. O acesso dar-se-ia de modo remoto, sem fios ou qualquer meio rudimentar de conexão. Dessa forma, caso pretendesse assistir novamente ao clássico Branca de Neve e os Sete Anões, bastaria desejá-lo e, num piscar de olhos, a obra dos irmãos Grimm seria projetada na minha mente robótica.

    Percebi que divagava sobre um tema inconsequente. O ato de discorrer sobre entretenimento, envolvendo filmes, livros e cultura em geral, por meio do acesso irrestrito à informação, utilizando-me de qualquer meio de comunicação, soava sem sentido num mundo vazio. Quem usufruiria desse requintado recurso midiático? O futuro pensado por mim não passaria de um sonho, um oásis dentro de um pesadelo infinito, um hiato entre a realidade e a fantasia.

    A inconsequência decorria do fato de me encontrar solitário. Diferentemente do número zero, a minha existência poderia ser comparada à essência do número um. Único, por analogia. A unidade básica, unitária, o princípio de tudo.

    O número um, ao contrário do zero, vazio, identifica o começo. Deus, na forma de uma entidade onipresente, poderia ser representado por todos os números em conjunto, mas é o algarismo um que melhor o simboliza. Antes da criação do céu, das estrelas e da Terra, Deus já existia, soberano. Único e indivisível, a não ser por ele próprio. Para os cristãos, a origem do Ser Supremo é inquestionável, advindo dele toda e qualquer existência.

    A origem do número um remonta aos homens da caverna. Os primeiros registros simbólicos foram grafados em ossos e visavam exprimir quantidades, por meio de uma sucessão de traços que permitia a contagem de animais, alimentos ou utensílios de caça. A civilização suméria, por sua vez, teve o mérito de representar esse número em cones de argila, uma notória evolução à época. O feito foi responsável por possibilitar a função da subtração, permitindo o surgimento da aritmética. Em seguida, os demais numerais tiveram seu lugar no contexto histórico.

    Devido à sua inegável importância, o número um carrega em seu bojo sensações implícitas. Por exemplo, o sentimento de nostalgia, representado pela solidão, o desejo de encontrar algo ou alguém perdido. Indica o estágio entre o nada e um elenco de coisas. Uma dimensão única, precedente a tudo. Eu não mais me sentia como Zero, o Sunya. Dali em diante, passei a compreender minha natureza solitária, todavia soberana, única. O universo em que me encontrava era só meu. Eu era o meu próprio deus no meu mundo particular, cercado de trevas. O número um em pessoa.

    A METAMORFOSE

      O relógio digital fixado na parede da pizzaria espanhola marcava treze minutos para o meio-dia. O calor do lado de fora era insuportável. Dentro do estabelecimento, de modo desigual, a temperatura alcançava pouco mais de vinte graus centígrados. Contava-se dezesseis mesas e quarenta e oito cadeiras. Destas, nove encontravam-se desocupadas, inclusive a de plástico e metal posicionada à minha frente. Érica estava demorando a chegar ao local. Um dos garçons me perguntou se eu desejava fazer um pedido. Requisitei uma garrafa de água mineral.

    – Sem gás! – fiz questão de frisar.

      O profissional registrou o pedido em um minúsculo equipamento eletrônico e saiu apressado. Ele deveria ter aproximadamente quarenta anos de idade, talvez menos. Seus poucos cabelos grisalhos indicavam isso. Sua altura apresentava-se superior à média da região. Os grandes olhos escuros não escondiam o cansaço de muitas horas de trabalho ininterruptas. O leve sotaque estrangeiro confirmava que se tratava de um típico imigrante, talvez oriundo da Europa Oriental. Pela janela de vidro situada ao lado da minha mesa, visualizei inúmeros pedestres em movimentos acelerados na calçada: uma senhora de cabelos loiros conduzindo um carrinho de bebê, um homem de barba por fazer trazendo consigo uma pasta executiva, outro homem de vibrantes olhos azuis e desprovido de cabelos seguia ao lado de uma mulher de fisionomia triste.

    – Meio-dia! Onde estará Erica? – indaguei-me, preocupado, voltando minha atenção para o interior do restaurante.

    – Senhor, aqui está a sua água. – disse-me o garçom de poucos cabelos brancos.

    – Obrigado!

    – Posso lhe fazer uma pergunta? – indagou-me o profissional, depositando a água mineral sem gás no copo de vidro.

    – Claro que sim. – respondi, levemente desconfiado.

    – Quem é Erica? – perguntou o homem.

    – Erica é minha esposa! – respondi, não compreendendo a intromissão do garçom.

    – Sua esposa morreu há muitos anos, senhor Isak. Foi morta durante um assalto. Isto é um sonho! – disse o homem, retornando ao balcão.

    De fato eu estava interagindo com ele em um sonho. Forçosamente aprisionado dentro do meu cérebro, não imaginava que pudesse ausentar-me da minha consciência, fugindo por instantes dos pensamentos lógicos, programados e previsíveis. Mas não era a primeira vez que isso ocorria. Preferi dar vazão à criatividade sonhadora. Não tentei escapulir dos pensamentos irreais criados na minha mente. Por esse motivo, não dei importância ao garçom estraga-prazeres e tomei a minha água mineral imaginária. O restaurante continuava parcialmente lotado.

    Deixei sobre a mesa uma cédula de $2, contudo, por se tratar de um sonho, coloquei-a de volta em meu bolso. Desisti de esperar por Erica e saí do estabelecimento comercial. Caminhei por cerca de duzentos metros e entrei na estação do metrô. Paguei pelo bilhete e segui para o vagão.

    Uma e quinze da tarde, o sol impiedoso escondia-se dos olhos no subterrâneo. Contavam-se nos dedos das mãos as pessoas que me faziam companhia no transporte coletivo, todos sentados. Duas amigas conversavam em voz baixa no canto direito, uma delas segurava um livro de história grega. Um rapaz ouvia música por meio de um fone de ouvidos e balançava a cabeça de maneira insistente. Dois senhores de paletó discutiam política no canto esquerdo, ao lado de três senhoras de aparências destoantes: uma era magra e possuía cabelos ruivos, outra era gorda de madeixas loiras e a terceira nem tão gorda nem tão magra, mas de cabelos escuros. Completava a cena dois homens comuns, um deles limpava as lentes dos óculos escuros com um pano macio e o outro, careca, mirava seus olhos azuis na paisagem de concreto.

    Desci na estação número dezessete, pontualmente às 13h30. Os transeuntes saíam apressados, cada qual preocupado apenas em garantir a própria sobrevivência. Desloquei-me a uma lanchonete, localizada a dois quarteirões da agência bancária onde pretendia retirar uma determinada importância em dinheiro. Pedi um sanduiche de atum e um refrigerante de laranja.

    – Aqui está o seu pedido, senhor. – disse a atendente, uma mocinha aparentando vinte e poucos anos de idade, a qual utilizava um fardamento na cor bege.

    – Obrigado. Traga-me o catchup, por favor! – solicitei a ela.

    – Pronto. Catchup, mostarda e guardanapo, senhor Isak. Posso lhe fazer uma pergunta?

    – Não, moça. Não pode me fazer uma pergunta! – respondi a ela, de pronto, já antevendo qual indagação seria formulada.

    Estranhei quando ela pronunciou o meu nome. A garota se dirigiu à mesa ao lado. Enquanto eu degustava o meu lanche, sentado em uma banqueta de resina montada próxima ao caixa, visualizei três clientes dentro das instalações da lanchonete. Dois jovens comiam uma pizza mussarela na mesa de número três. Eram um garoto e uma menina. Ela parecia mais velha do que ele. O rapazinho, alto e muito magro, usava óculos escuros. A moça, provavelmente sua namorada, lia um livro entitulado Vida e Morte de uma Floresta – A Terra por um Fio.

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