Escravos Dos Sentidos
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Escravos Dos Sentidos - Eduardo Capistrano
EDUARDO CAPISTRANO
Escravos dos SentIdos
2ª Edição
2019
Edição do Autor
Capa e ilustrações: Jonas Corrêa (perdiprovega@hotmail.com).
Tipografia: Thiamine de Ray Larabie (http://typodermicfonts.com).
Revisão: João Kindra, Fernanda Romão.
Contos escritos entre 2007 e 2017.
Catalogação na Publicação (CIP)
Ficha Catalográfica feita pelo autor
_____________________________________________________
C243a
Capistrano, Eduardo, 1980-
Escravos dos Sentidos / Eduardo Capistrano. – 2. ed. – Curitiba: Edição do Autor, 2019.
182 p. ; 21 cm.
ISBN 978-85-924917-4-1
1. Contos brasileiros. I. Título.
CDD: B869.35
CDU: 821.134.3(81)-3
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Índices para Catálogo Sistemático
1. Contos: Literatura brasileira 869.35
mesmo um dos sentidos que vagueiam
com que a mente se ocupe constantemente
dela leva embora a inteligência
como o vento faz com um barco n’água
- Bhagavad Gita, Capítulo 2, Verso 67
Metal PolIdo
Egídio e Caio compartilhavam desde a infância o prazer pela representação. Os amigos conheceram-se nas aulas dominicais de teatro, ministradas por Dória, um velho ator, em um galpão atrás da igreja da pequena cidade fundada por italianos. Dória arrancava da memória as peças que interpretou e as recriava para as crianças, com mais propósito de diverti-las e ocupá-las do que de ensinar qualquer coisa.
Caio era apenas alguns meses mais novo que Egídio, e eram muito parecidos em fisionomia e corpo: os dois gordinhos, sardentos e de cabelos castanhos. O velho Dória foi o primeiro a vê-los como irmãos, em uma adaptação da lenda da fundação de Roma por Rômulo e Remo. O papel foi tão perfeito que eles resolveram se tornar irmãos, e todos na cidade passaram, desde aquela época, a vê-los como tal. Daí nasceu o apelido pelo qual eram conhecidos: os Gêmeos Romanos.
Eram inseparáveis, e amavam o teatro. Levaram-no para casa, continuando nos papéis mesmo fora do galpão, declamando falas grandiloquentes pela praça da igreja, travando lutas com espadas invisíveis enquanto entravam e saíam dos botecos, ajoelhando dramaticamente no chão batido da estradinha para as fazendas, trepando nos palanques das cercas dos campos, voando pelo capim das colinas.
O convívio e a amizade, por si só, já os tornariam parecidos em maneiras e comportamento, além do que já eram em aparência. Naturalmente extrovertidos e passionais, adoravam pregar peças e fazer travessuras, mas nisto podia se ver a diferença fundamental entre eles. Para Caio não era necessário que o golpe fosse requintado: gostava de imitações exageradas de personalidades locais, fazer alguém pensar que barro fosse outra coisa, e espalhar histórias absurdas pelas mentes impressionáveis da cidadezinha, em especial fofocas mirabolantes que inventava sobre todo mundo. Egídio, por outro lado, se fazia de mais cerebral e não se contentava com vulgaridades, preferindo arquitetar planos e estratagemas, com uma tendência para o dramático e para o assustador: como o Bicho do Cafezal, sussurrado até hoje pelos supersticiosos, mesmo depois do padre ter mostrado na missa o macacão em que o garoto colou cabelos coletados do chão do barbeiro; ou o destino horroroso que deu à anilina vermelha roubada da padaria.
O trunfo dos dois era a semelhança que tinham entre si, e exploravam-na de maneira que misturasse o teatral com o travesso. Tentaram atenuar o quanto puderam as diferenças entre eles, até passarem por verdadeiros gêmeos. Combinaram Egídio e Caio em um personagem híbrido, que ambos podiam representar. Juntos trabalharam os pequenos detalhes, trejeitos, maneirismos. A idade não prejudicou esta prática, senão por um ponto: na adolescência, as sardas sumiram em Egídio, mas não em Caio.
A experiência foi inestimável para os dois. A prática da arte se beneficiou muito com o que aprenderam, e o que era uma brincadeira tornou-se sério. A mera co-representação de um papel se desenvolveu em uma verdadeira especialidade no compartilhamento de papéis, na sincronização de movimentos, na imitação, na maquiagem. O velho Dória os tratava como seu maior legado artístico, e auxiliou os gêmeos nesses primeiros degraus para uma carreira efetiva no teatro, que estava fadada a continuar apenas na cidade grande.
Juntos deixaram as famílias, as travessuras infantis e as peças remendadas do velho Dória no galpão atrás da igreja. A cidade grande foi hostil desde o começo, com a única mala de roupas dos dois sendo roubada na rodoviária. Mas haviam sido agraciados com a perigosa habilidade dos artistas de suspender as diferenças entre a arte e a vida, e resolveram improvisar, como no palco, em vez de retornar para o socorro dos pais. Tiveram um bom bocado de sorte, mas o principal: contavam um com o outro.
Caio, que dos dois era o que mais tinha motivo para ser rechonchudo, pois era bom de garfo, começou como garçom em um restaurante italiano, e após o expediente levava risoto queimado, polenta frita mole e miúdos de frango para a janta. Egídio, por sua vez, arranjou um emprego na lavanderia de um hotel, recolhendo, lavando, passando e repondo lençóis, toalhas, uniformes de funcionários e roupas de hóspedes.
A princípio moraram de favor em um quarto de pensionato, pertencente a uma viúva, a quem faziam promessas diárias de pagar tudo, corrigido, assim que pudessem, mas os pagamentos não foram feitos antes da velha morrer. Então, os herdeiros dela resolveram morar na casa em vez de mantê-la como pensionato. As dívidas foram perdoadas como compensação por voltarem para a rua, mas então já tinham algum dinheiro.
Foram para o hotel em que Egídio trabalhava. Ele havia conseguido um bom preço para tomarem residência em um dos quartos mais baratos. Então, finalmente, puderam retomar o exercício da juventude, e passaram a trocar de papéis ocasionalmente, com Egídio assumindo o trabalho de garçom e Caio indo para a lavanderia do hotel.
O golpe de sorte veio quando uma frequentadora assídua do restaurante italiano enervou-se com a alternância no rosto do garçom, e ao sair resolveu perguntar por que em certos dias ele tinha base aplicada no rosto, e em outros dias não. Se fosse Caio o questionado, talvez o resultado do encontro fatídico tivesse sido alguma piada nojenta, e os gêmeos nunca teriam saído de onde estavam.
Mas a pergunta foi feita para Egídio. Ele andava com cartões contendo perguntas crípticas e misteriosas, em rima, versando sobre identidade, segredo e ilusão, exatamente para momentos como aquele. Com um gesto habilidoso de prestidigitação, Egídio atraiu os olhares de todo o restaurante para si, brincando com os cartões em leques com ambas as mãos, terminando por entregar apenas um à mulher, em que se lia: se tentar enxugar a lágrima do palhaço, o homem aparece por baixo
.
Todos os que presenciaram a cena ficaram encantados. A mulher retornou várias vezes, e o gêmeo que a atendia lhe entregava um novo cartão. A história ganhou corpo, inclusive saindo em jornal, e Egídio viu a oportunidade para o garçom mágico
fazer um último ato e sair de cena. Ele enviou convites — devidamente misteriosos — a vários diretores de companhias teatrais, para que visitassem o restaurante, juntando um recorte do artigo do jornal.
Constatando que um diretor estava no restaurante, os dois saíam da cozinha para a área das mesas, lado a lado, ombro a ombro. Então, como se um fosse o reflexo do outro, em simetria perfeita, faziam um percurso entre as mesas sincronizando os movimentos, com um tentando servir de uma garrafa invisível em um copo real, e o outro servindo de uma garrafa real em um copo inexistente. Vendo as consequências, procuravam enxugar com um lenço, mas o gêmeo que tinha o copo real terminava com o lenço dentro dele, e o da garrafa, com o lenço invisível, molhava a mão toda. Ambos reagiam identicamente às situações, e isso ia ficando cada vez mais confuso e engraçado, até que terminavam cara a cara, negociavam trocar lenço por garrafa, um secava sua bandeja, o outro bebia do copo, e saíam em meio a aplausos e risadas.
Retornavam em seguida para conversar com o diretor em questão, explicando que buscavam uma vaga na companhia para ambos. Egídio e Caio repetiram o mesmo ato para três diretores diferentes, mas seria apenas o quarto, um senhor de nome Líbero Pedrosa, que os recebeu aplaudindo de pé, vermelho de rir, e os aceitou de braços abertos em sua companhia.
Líbero escrevia e dirigia suas peças. Os gêmeos abandonaram seus empregos e dedicaram-se a absorver o que podiam daquela vida que tanto almejavam. A paixão pura dos dois provou-se eficiente para suprir a falta de uma formação apropriada na área, apesar de ambos buscarem-na assim que puderam. Eles se destacavam em quaisquer papéis que lhes eram designados. Para ver como se sairiam como protagonistas, Líbero escreveu especialmente para eles uma peça inspirada pela forma como os conheceu, intitulada Metal Polido.
Um diálogo disfarçado de monólogo, a peça versava sobre um homem infeliz, sentado diante de um espelho, enumerando diversos defeitos próprios, e a tristeza que lhe causavam. Então elogiava seu reflexo, a princípio como se fosse um homem melhor, algo que almejava se tornar. O reflexo lhe respondia, aceitando a condição de melhor e superior, e passava a insinuar menosprezo. O diálogo se tornava tenso, e evoluía para ele tentar quebrar o espelho, mas não conseguia, pois como o título indicava, ele era de metal polido. Revelava-se então que o homem que começou como verdadeiro era o reflexo; o verdadeiro homem era o homem melhor
, de ego inflado, vendo seus defeitos no espelho e os ignorando até então. Achava que todos deviam aceitá-lo, pois pensava ser um homem excelente; mas ao final, percebe-se fragmentado, incompleto, e forçado a conviver com isso.
A peça estreou e causou sensação, que foi ampliada com a divulgação de que não eram gêmeos, nem mesmo irmãos. A habilidade dos dois foi afinal reconhecida, e iniciou-se a carreira teatral dos Gêmeos Romanos. Graças a isto, puderam estudar teatro, conviver entre os melhores do meio e ganhar renome; mas o que era o maior destaque da parceria deles acabou sendo também sua ruína.
Ocorre que, individualmente, os irmãos eram ótimos atores, mas isso nunca seria visto, pois ficaram estigmatizados como um par. Os apelos dos Romanos aos dramaturgos e diretores surtiram efeitos ocasionais, mas as plateias não apreciavam tanto seus desempenhos apartados. Queriam vê-los juntos, e a arte logo cedia às demandas da bilheteria.
As peças individuais de Caio eram tingidas pelo seu humor cada vez mais vulgar, e quando isso finalmente causou desgosto nas plateias, ele se recusou a mudar, como pediam os diretores, mostrando-se genioso e irritado. Depois de casar, isso se acentuou, e deixou claro que culpava Egídio. Tudo o que este conseguia para sua vida, que ele próprio não conseguisse igual ou melhor, era causa para queixas, que vinham como zombarias, lamúrias, e até mesmo agressões. Egídio acabou desistindo de fazer o trabalho pelos dois, concentrando-se em sua própria carreira, e logo ficou evidente qual dos irmãos sobreviveria à separação.
O desfecho aconteceu quando já eram senhores de meia-idade. Caio irrompeu em um ensaio de Egídio, gritando impropérios confusos, acusando-o de todo tipo de ardil. Estava bêbado. Líbero, que dirigia o ensaio, se intrometeu e ouviu todo um rol de considerações que Caio tinha guardado por décadas. Para Líbero foi a proverbial gota d’água, e ele dispensou Caio na frente de toda a companhia.
Caio saiu humilhado e furioso, e Egídio, naquela noite, ficou profunda e misteriosamente abalado. Tudo o que Caio havia dito, aqueles devaneios e imprecações ininteligíveis para todos os outros, o atingiram como a mais dura verdade. Ele era o alvo para as palavras disparadas como balas, na linguagem que amigos cultivam desde que a amizade nasce; que irmãos cultivam desde que se entendem como irmãos, e que se torna algo compreensível apenas para eles, entre eles.
Com os vapores alcoólicos as cercando, saíram as palavras embaralhadas, indecifráveis para todos, mas responsáveis pelo buraco no estômago de Egídio, pelas noites em claro que se seguiram, pelas lágrimas desesperadas que não conseguia explicar à esposa: sou Rômulo, sou o Bicho do Cafezal, sou o garçom, sou o palhaço...
Um membro da companhia encontrou o corpo de Líbero pela manhã. Caio sumiu e foi logo declarado o principal suspeito, mas Egídio também havia sumido. Uma ligação levou a polícia para onde ambos estavam, semanas depois. Caio confessou prontamente não apenas ter matado Líbero como também ter atacado Egídio, e o deixado no estado em que estava, machucado e inconsciente. Ele foi preso imediatamente e Egídio foi conduzido ao hospital. Assim que acordou, confuso, alegou que era, na verdade, Caio. Ninguém foi convencido pelo que foi considerada uma tentativa desesperada de sacrifício, em meio a um choro desesperado, angustiado, doloroso.
Caio nunca aceitou as visitas de Egídio na prisão, e morreu encarcerado, perto dos sessenta anos de idade. Do lado de fora, Egídio encenou em sua homenagem uma das peças de Caio, ostentando sardas para ficar parecido com ele.
Ao fim da peça, suas lágrimas não borraram as sardas.
A Estátua AssassIna
Os relatos a respeito da peça registrada neste Museu sob nº 78-7253 comprovam exatamente porque as palavras história
e estória
se confundem em alguns de seus usos, ainda que queiram de certa forma significar uma o oposto da outra: o que se tem por história
, o detalhamento e sequência de fatos ocorridos no passado, derivada de estudos científicos dos mais variados, sendo confrontada com a estória
criada sobre as lacunas que a ciência não pôde preencher, as ficções nascidas às vezes de adaptações ou amálgamas de lendas, mitos e folclores, às vezes de invenções originais de mentes que buscavam causar impressão e muitas vezes, com isso, obter alguma vantagem.
A arqueologia é notória fornecedora de subsídios para os mais loucos devaneios, como comprovam as diversas produções de entretenimento focadas sobre um estranho objeto ou artefato encontrado em escavações ancestrais. É exatamente o caso da maldição das múmias, para a qual a natureza parece ter macabramente colaborado com os patógenos causadores das mortes dos exploradores que ousaram perturbar suas tumbas. Ou, mais recentemente, o caso dos milhares de soldados de terracota chineses, cujo valor histórico pode equivaler apenas à excentricidade do soberano que os recrutou para proteger seu repouso.
Como os exemplos denunciam, dentre os artefatos que mais instigam a imaginação podem ser listadas as estátuas e os artefatos vinculados à morte; aquelas por trazerem à nossa presença o homem de outrora, e estes por nosso persistente deslumbre e temor com relação ao que nos espera depois desta existência. O estudo da cultura dos povos nunca está completo sem serem estudadas tanto a arte representativa em que se inclui a estatuária, quanto seus costumes fúnebres.
Todavia, ocasionalmente são encontradas peças que reúnem ambos os temas de maneira a questionar nosso entendimento sobre a arte e a morte, e instigar com suas peculiaridades as nossas imaginações e, por que não, nossos medos.
À primeira análise, a peça poderia muito bem ser considerada uma escultura em estilo helênico, representativa de um homem em tamanho natural perfeitamente ereto trajando manto longo sobre túnica, segurando uma porção do manto com ambas as mãos, o que as oculta por completo. A única porção do corpo aparente é a cabeça de feições excepcionalmente detalhadas, que contrasta com o resto da composição. Em lugar da esperada inexpressão sóbria e serena, o rosto parece contorcido em angústia e mesmo agonia, com os olhos comprimidos e a boca entreaberta. A estátua encontra-se sobre um pedestal cúbico de granito, que contém entalhada em grego uma inscrição, cuja melhor tradução seria: "Recompensa de Pigmalião". Tal denominação pode ter sido uma tentativa de humor, ainda que um tanto mórbido, como adiante se verá.
Um estudo pormenorizado da peça contribui para suas peculiaridades. A medição evidencia a escala sutilmente maior da peça em relação à humana, com a espessura dos membros e tamanho do crânio indicando uma expansão, um aumento volumétrico tão sutil que não condiz com a típica licença criativa para engrandecer a personalidade representada.
O histórico da peça deve ser antecedido com as medidas tomadas para elucidar seu mistério, visto que foram sua motivação. Procurarei reconstruir todo seu passado, mesclando o mítico e o real desde suas origens até nossos dias, tendo certeza de que serão facilmente distinguidas.
Iniciamos com o acompanhamento da denúncia feita contra a casa de Trífon de Sesto, importante político, acusado de empregar oito de seus servos como assassinos contra seus desafetos. O curso das investigações denota que o erro de Trífon foi de alvo e não de método, visto que a prática era odiosamente comum à época, e mesmo aceitável, desde que empregada com cautela.
Ocorre que Etésias, o político mais influente sobre a passagem de cargas com destino aos portos, opôs-se a colaborar com a transposição de mercadorias de propriedade de Trífon. Este foi levado a acreditar — provavelmente enganado por alguém que se beneficiou — que se tratava do início de um golpe político, e comandou seu assassinato, acompanhado de uma campanha de difamação que o legitimasse.
Etésias era um alvo cauteloso e bem guardado e Trífon considerou os métodos de seus servos. Cibiosates não o alcançaria com seu punhal, nem Sirri com seu garrote. Cinego não tinha de onde disparar suas flechas. Korina não o estrangularia em seus próprios lençóis após a sedução. O veneno de Melântio não chegaria nem à sua comida ou bebida, quanto mais aos seus lábios. Os escorpiões e serpentes de Ureu seriam mortos nos vasos ou bolsas que os escondesse. Ascalafide não poderia sabotar as passagens que usaria, nem causar desmoronamentos, nem escavar buracos.
Restava a Trífon seu próprio filho, Lisandro. O método do assassino consistia subir em um pedestal com uma firme haste, em que se segurava firme. Cobria-se a seguir com um volumoso manto, que formava incontáveis alças e dobras ao seu redor. Ele então controlava sua respiração e movimentos enquanto era completamente revestido por uma camada de uma espécie de cimento, que era então esculpida e pintada como uma estátua representando Etésias. Ele permanecia paralisado e em jejum por dias, enquanto era passado à longa cadeia de entregadores que despistariam a origem daquela estátua a ser presenteada a Etésias. Na porção de manto que ocultava suas mãos trazia um odre contendo água, e um afiado punhal.
Soando maciço e, portanto, incapaz de conter animais peçonhentos ou mecanismos letais, e apelando para o narcisismo do vão Etésias, a estátua ganhou posição de destaque em sua coleção, na galeria de sua residência. Em dois dias estava morto em seu leito, com o punhal ensanguentado encontrado nas mãos do guarda de seu quarto, que parecia ter se matado em seguida. Graças à preparação prévia, Lisandro pôde cometer o crime e retornar à condição de estátua.
O crime seria perfeito, não fosse a inesperada intervenção de uma das amantes de Etésias, que se recusava a permitir que a estátua de seu amado deixasse a galeria — adquirida pelo respeitoso
Trífon. Em uma última tentativa de retê-la, agarrou-se a ela, derrubando-a. A altura seria insuficiente para quebrar uma estátua maciça, mas foi mais do que suficiente para partir a fina camada que escondia Lisandro. A identidade do rapaz provou rapidamente o ardil, condenando Trífon e todos os seus assassinos.
Certamente colorida pelo folclore, a sentença submeteu os assassinos a um suplício inspirado pelo método de cada um, com Cibiosates apunhalado, Sirri garroteado, Cinego varado por flechas, Korina enforcada em lençóis, Melântio forçado a comer e beber veneno, Ureu jogado sobre escorpiões e serpentes e Ascalafide jogado em um buraco e esmagado sob rochas.
Lisandro foi colocado sobre seu pedestal com o punhal assassino nas mãos, mas desta vez amarrado à haste e amordaçado. A Trífon coube o pior castigo, que foi o de revestir o filho com o cimento, sendo permitido a ele, se quisesse, ser piedoso e cobrir suas narinas, matando-o por asfixia rapidamente em vez da lenta privação de ar. Algumas versões da estória contam que Trífon cobriu as narinas do filho, testemunhando sua morte antes dele próprio ser morto. Outras contam que não cobriu, dando lugar