Liberdade monetária e autonomia privada
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Liberdade monetária e autonomia privada - Gustavo Tanger Jardim
Introdução
Considerando a evolução a qual foi submetido o sistema monetário ao longo da nossa história, a atual definição de moeda está em xeque. As novas tecnologias digitais atingiram a segurança desse conceito, até então, estável e funcional.
O desenvolvimento das relações sociais elevou sobremaneira a importância da utilização da moeda, de modo que ela está presente em nosso cotidiano, adquirindo novas formas e funções que precisam ser compreendidas e analisadas pelos estudiosos do direito.
Diante do desenvolvimento de grandes empreendimentos econômicos¹, advindos da complexidade da
vida pós-moderna², a moeda assumiu um papel mais relevante do que ser um simples instrumento de troca. Não podemos ignorar que o desenvolvimento da moeda e do crédito deram causa, no mundo contemporâneo, a uma melhora geral na qualidade de vida, com grandes repercussões em toda a estrutura social.
Desde o começo de sua estruturação, no século XII³, os sistemas bancários evoluíram de forma constante e regular, sempre buscando a eficiência e operabilidade. As descobertas marítimas e a prática mercantil consolidaram o caminho da atividade bancária, delineando a intermediação do crédito como atividade essencial do banco moderno.
Superado esse momento inicial, com o advento da Revolução Industrial, consolidou-se o capitalismo liberal, fazendo com que os bancos atingissem a era de seu pleno desenvolvimento no século XIX, marcado pelo aparecimento de grandes banqueiros e pela extensão de seus serviços ao nível internacional
⁴.
Tempos depois, o surgimento das novas tecnologias alterou, de forma substancial, a estrutura social, momento em que mergulhamos na era digital. Um novo espaço virtual de convivência foi criado, e as relações sociais foram profundamente modificadas.
O ciberespaço foi aberto e, atualmente, não existe uma regra específica e segura para sua ocupação. Em outras palavras, existem novas relações jurídicas que, até alguns anos atrás, eram impensáveis.
Essa nova ordem merece ser saudada, porque traz muitos benefícios aos atores sociais que buscam uma sociedade mais justa e igualitária, com oportunidades para todas as pessoas.
Agora, por exemplo, as operações bancárias são realizadas com extrema celeridade no ambiente virtual, o que era impensável com a tecnologia analógica. O volume das operações bancárias também cresceu de forma exponencial, permitindo que a sociedade tenha acesso a crédito em larga escala, acelerando o crescimento econômico.
Contudo esse novo cenário digital também gera profundas incertezas que precisaram ser recebidas e interpretadas pelos poderes constituídos, especialmente com os que lidam com a regulamentação da captação da economia popular.
A criação de aplicativos de conexão entre pessoas com a consequente digitalização das relações alterou substancialmente a forma de interação com o dinheiro. Trata-se de um fenômeno em grande expansão, sendo que, através de aplicativos, as pessoas ganharam uma ferramenta para realizar operações financeiras, superando a realidade que, antes, era restrita aos estabelecimentos físicos.
Esse é um fato relevante que encurtou distâncias e uniu pessoas, bem como fomentou a economia e a troca de mercadorias. Porém esse fato relevante
se transforma, não raras vezes, em fato jurídico
, mais especificamente, em ato jurídico em sentido amplo
, que causa profunda preocupação para aos órgãos reguladores do sistema financeiro.
Ao lado das benesses das novas tecnologias financeiras também surgiram grandes mazelas. No período anterior à massificação das relações jurídicas fomentadas pela internet, as questões jurídicas eram mais estáveis, ou seja, havia mais controle das autoridades monetárias.
Após a transformação digital, passamos a conhecer um novo espaço social, onde a sensação de ausência de regulação jurídica é uma realidade.
Em linhas gerais, é preciso entender como é exercida essa liberdade monetária dentro da nova realidade do ciberespaço, bem como analisar a necessidade ou não de regulamentação dos recentes fenômenos monetários.
Lembre-se de que o Sistema Financeiro Nacional, instituído pela Lei 4.595/64 e assentado no art. 192 da Constituição Federal de 1988, detém a função de promover o desenvolvimento equilibrado país, protegendo a poupança nacional, a transparência das informações sobre os agentes, mantendo a estabilidade do sistema financeiro, entre outros.
A competência normativa sobre as atividades do sistema bancário e do mercado de capitais é exercida pelo Conselho Monetário Nacional, sendo o Banco Central do Brasil incumbido de execução e fiscalização⁵ do cumprimento dessas normas.
De um modo geral, o objetivo é que a atividade de coleta, intermediação e custódia de moeda pertencente a terceiros seja segura, alcançando a maior confiança⁶ possível ao Sistema Financeiro.
Por outro lado, apesar de todo esse contexto complexo de regulação estatal, o direito bancário sempre esteve permeado pela riqueza de possibilidades decorrentes da prática bancária, da prevalência da utilidade e agilidade das operações, respeitando toda a tradição de informalidade e confiança do Direito Comercial.
A prática bancária sempre criou um ambiente propício de estímulo à criação de novos instrumentos financeiros e, consequentemente, a necessidade de sua regulação jurídica, aliando a flexibilidade necessária à vida negocial e a proteção dos interesses dos contratantes
⁷, de modo a fomentar a evolução do Direito Bancário com os fecundos institutos do direito do consumidor e empresarial.
No delicado equilíbrio entre a regulação do sistema monetário pelo Estado, pela defesa do consumidor e diante da preservação da autonomia privada — permeada pelas práticas comerciais — é que os criptoativos desafiam as autoridades monetárias e reclamam seu espaço no cenário econômico e jurídico.
Dessa forma, o presente trabalho tem o objetivo de compreender a natureza jurídica e contribuir com o desafio da regulação dos criptoativos. Como já mencionado, não é possível aprofundar o estudo sem abordar a dinâmica bancária e a força da autonomia privada⁸ no cenário atual.
Assim, partindo de uma análise ampla de institutos consagrados do direito privado, passaremos ao enfrentamento do tema desde uma perspectiva integradora dos diversos campos de conhecimentos envolvidos com a teoria do direito, tendo, como ponto de partida, a proteção do sistema monetário e o exercício da autonomia privada, sem deixar de prestigiar os movimentos de liberdade monetária.
As incertezas que instigam o trajeto dessa pesquisa deverão ser respondidas em duas partes, de forma estruturada. Na primeira parte desse trabalho, serão perseguidas as respostas vinculadas aos aspectos funcionais do direito bancário e empresarial ligando as relações entre a moeda e a regulação bancária. Além disso, serão abordados os contornos conceituais e jurídicos dos novos tipos de moeda
.
Em segundo lugar, após ser identificado o ambiente em que o se desenvolvem as relações jurídicas bancárias, pretende-se responder às perguntas vinculadas às estruturas das novas modalidades de expressão monetária e a necessidade de regulação dos criptoativos.
1. MIRAGEM, Bruno. Direito Bancário. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2018, p. 55.
2. Cláudia Lima Marques ensina com o brilhantismo que lhe é peculiar que os chamados tempos pós-modernos são um desafio para o direito. Tempos de ceticismo quanto à capacidade da ciência do direito de dar respostas adequadas e gerais aos problemas que perturbam a sociedade atual e modificam-se com uma velocidade assustadora. Refere que, para alguns, o pós-modernismo é uma crise de desconstrução, de desdogmatização do direito, enquanto, para outros, é um fenômeno de pluralismo e relativismo cultural arrebatador a influenciar o direito, que aumenta a liberdade dos indivíduos, mas diminui o poder da crítica, da evolução histórica e da verdade no Direito, fenômeno contemporâneo à globalização. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos Bancários em tempos pós-modernos – primeiras reflexões. Revista de Direito do Consumidor. V. 25, 1998, p. 19-38.
3. Nelson Abrão refere que, com o florescimento do comércio nas grandes feiras localizadas nas cidades italianas, o aperfeiçoamento da atividade de troca manual de moeda tornou-se conhecida como a prática realizada pelos banqueiros. ABRÃO, Nelson. Direito bancário. São Paulo: Saraiva, 17 ed., 2018, p. 49.
4. ABRÃO, Nelson. Direito bancário. São Paulo: Saraiva, 17 ed, 2018, p. 50.
5. MIRAGEM, Bruno. Direito Bancário. 2 ed. São Paulo: Ed. RT, 2018, p.146.
6. Ensina Bruno Miragem que as normas de regulação bancária devem ser convergentes com a legislação para reforçar os deveres de informação e a lealdade, visando à redução da assimetria informativa entre partes dos deveres de colaboração entre parceiros contratuais (inclusive nas operações interbancárias) e da conformidade com os padrões normativos e de usos e costumes (boas práticas) reconhecidos pelo mercado, de modo a reafirmar a confiança como valor-base do sistema bancário e de sua função estratégica no desenvolvimento econômico nacional. MIRAGEM, Bruno. Mercado, fidúcia e banca uma introdução do exame do risco bancário e da regulação prudencial do sistema financeiro na perspectiva do crédito. Revista de direito do consumidor. Vol.77, 2011, p. 185-243.
7. MIRAGEM, Bruno. Mercado, fidúcia e banca uma introdução do exame do risco bancário e da regulação prudencial do sistema financeiro na perspectiva do crédito. Revista de direito do consumidor. Vol.77, 2011, p. 185-243.
8. Cláudia Lima Marques