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Bleeding Fatih: Modo Sobrevivência
Bleeding Fatih: Modo Sobrevivência
Bleeding Fatih: Modo Sobrevivência
E-book390 páginas4 horas

Bleeding Fatih: Modo Sobrevivência

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Sobre este e-book

Um crime. Uma família quebrada ao meio. A dor da perda. A dor de não saber se o filho está vivo ou morto.
Alejandro cresceu nas ruas do Rio de Janeiro, vivendo da compaixão de estranhos. Stefano cresceu cercado de luxo, mas sem atenção e amor. Dois irmãos separados pela tragédia. Ambos seguiriam com suas vidas, sequer sabendo da existência um do outro, caso a música não tivesse entrado em seus caminhos. Laços familiares precisarão ser restaurados em um processo longo, doloroso e cheio de perguntas:
O que é necessário para ser feliz? Qual o sentido da vida? Qual o significado do amor? Como lidar com as perdas?
No segundo volume, a banda Bleeding Faith faz sucesso, mas os irmãos precisam se ajustar e superar seus próprios desafios como: a dependência química, as perdas pessoais e o sucesso. O amor fraterno tentará prevalecer, mas quando o inesperado acontece, o que foi conquistado a duras penas acaba em perigo. Nesse momento que Alejandro fará uma escolha que poderá mudar o rumo de tudo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de jun. de 2023
ISBN9786500715651
Bleeding Fatih: Modo Sobrevivência

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    Pré-visualização do livro

    Bleeding Fatih - Ester Roffê

    Playlist — Bleeding Faith Volume 2

    (Disponível no YouTube Music)

    Show me how to live — Audioslave

    Wish you were here — Pink Floyd

    Blinding Lights — The Weeknd

    Black — Pearl Jam

    What I’ve done — Linkin Park

    Time — Pink Floyd

    Crawling — Linkin Park

    Toy Soldiers — Martika

    Midnight Healing — Gene Deer

    I put a spell on you — Iza

    Firestone — Kygo feat. Conrad Sewell

    Queen of Rain — Roxette

    Never say never — The Fray

    Anjos — O Rappa

    Capítulo 1

    Janeiro de 2009, New York City (NY) – Alejandro

    Menos quatro graus Celsius.

    Eu nunca tinha sentido tanto frio na minha vida. Mesmo usando um casacão que o Fred tinha me emprestado, meu rosto estava congelando.

    Nova York é enorme e diferente de tudo que eu conheço. Não que eu conheça muitos lugares, mas o Rio é minha referência de cidade grande e caos. Pelo que eu estava vendo, perto de NY, o Rio é pequeno.

    Eu e os caras da banda tínhamos chegado ontem à noite. Fui o primeiro a acordar e queria ver tudo, antes que a gente se trancasse num estúdio. Na verdade, eu mal tinha dormido de ansiedade.

    Há um ano a gente lançava os nossos primeiros covers no YouTube. As coisas aconteceram tão rápido que eu mal tive tempo de registrar. Mês passado, a Musicalitá propôs produzir nosso primeiro álbum em NY. Tudo isso porque eu tinha deixado escapar numa entrevista que a gente estava compondo também.

    Foi uma entrevista pra Ariana Del Vechio, da Tuned, a revista de rock mais famosa do Brasil. A Ariana tinha sido vocalista do Sociedade Anônima, um grupo famosão de pop rock dos anos 80.

    Nosso novo assessor de relações públicas tinha nos instruído a não falar coisas que pudessem nos comprometer... nada muito pessoal. Mal sabia eu que aquele dia ia dar tudo errado... ou certo, de acordo com o meu ponto de vista. A entrevista rolou no estúdio dos Lennox, como tudo relacionado ao Bleeding Faith. A Ariana se sentou com um gravadorzinho na nossa frente, enquanto dois fotógrafos registravam tudo.

    ADV: Bleeding Faith... agradeço por terem aberto as portas do seu estúdio pra Tuned hoje.

    CD: A gente que agradece pela oportunidade de divulgar nosso trabalho.

    SG: E de estar aqui com você também, uma lenda da música brasileira.

    ADV: Imagina... obrigada, meninos. Caetano... sabe que você povoa a mente das meninas, né? Aliás, todos da banda. Posso perguntar se vocês têm namorada?

    Todos disseram que não, mas eu não pude fazer isso... porque no meu coração tinha a Malu e ele simplesmente não estava aberto pra ninguém.

    ADV: Alejandro?

    Eu quase não falava nas entrevistas, por razões óbvias.

    AG: É c-complicado.

    ADV: Entendo... como vocês se sentem, tendo uma carreira meteórica como uma banda de cover que faz mais sucesso que muita banda original?

    CD: A gente sabe que tem qualidade... a gente inova nos arranjos e ama o que faz... acho que é isso...

    SG: A gente dá uma nova interpretação pras músicas, novos arranjos. Não que as músicas que a gente faz cover já não sejam excelentes, mas porque a gente gosta de criar em cima... de experimentar, de brincar.

    ADV: Tem uma crítica por aí que vocês só cantam música internacional. Como vocês explicam isso? É algum preconceito ou crítica ao rock nacional, ou à nossa língua mãe?

    LL: Nada contra essas duas coisas... acho que é porque a maioria das bandas que nos influencia é de fora. Também, a gente aprendeu inglês desde criança... É uma consequência disso, eu acho.

    AG: É mais f-fácil até p-pra gente criar em inglês.

    E foi assim que eu dei o furo.

    A Ariana, obviamente, não deixou escapar.

    ADV: Criar? Então vocês estão criando suas próprias músicas?

    Eu demorei pra responder.

    A gente ia terminar o segundo álbum pra mandar as demos e procurar uma produtora, mas o Lipe e o Caetano achavam que era cedo demais. Eles estavam com medo porque as bandas de cover que tentavam fazer sucesso com músicas próprias não emplacavam bem. Eu era um que achava diferente, mas é sério que eu deixei escapar.

    AG: S-sim.

    ADV: Conta mais!

    CD: A gente tá terminando um álbum, era meio que uma surpresa.

    O Caê me censurou com os olhos enquanto respondia. A Ariana percebeu.

    ADV: Por que o segredo a sete chaves?

    SG: Ainda não é nada certo. A gente ainda não mandou as demos.

    ADV: Quem escreve? Vocês mesmos?

    SG: Eu e o Alê, basicamente, mas todo mundo ajuda. O Lipe dá o toque final. E o Cohen também escreve.

    O Caetano ficou mais irritado ainda, mas o Stef simplesmente ignorou. Ele pensava como eu e queria divulgar logo nossos planos. É claro que isso ia ajudar a gente.

    ADV: O DJ Cohen? Aquele que fez o primeiro cover com vocês? Fiquei sabendo por fontes que ele está fazendo muito sucesso num night club em Israel.

    SG: Ele mesmo. O cara tem sido nosso parceiro desde o início.

    ADV: Incrível! E sobre o que são as músicas?

    O Lipe se contorceu na cadeira, mas o Stefano parecia estar se lixando.

    SG: Coisas que a gente sente... que a gente passou...

    AG: Injustiça s-social... nossas exp-pectativas e c-crenças...

    Eu acabei me juntando a ele, empolgado, mas ela me interrompeu.

    ADV: Vocês pretendem fazer músicas espiritualizadas ou gospel?

    Eu só estava dando fora...

    O Bosco respirou mais forte, furioso. Eu tive que consertar, e rápido.

    AG: Não. A gente só p-pensa em p-passar coisa boa, só isso.

    CD: Na verdade, tem de tudo. Vocês vão ver em breve.

    A Ariana não se deteve.

    ADV: Alejandro, há pouco tempo foram publicadas matérias sensacionalistas falando que você é evangélico e queria transformar o Bleeding Faith numa banda gospel. Suas tatuagens confirmam sua crença. O que você tem a dizer pra gente?

    O Bosco passou a mão no rosto. O Caetano fez uma cara da qual eu ficaria com medo, se eu não soubesse que podia encará-lo.

    AG: É mentira. B-bom, é verdade que eu sou crente, os p-próprios vídeos dos c-cultos onde eu c-canto não mentem... Mas o Bleeding F-faith não é e nem vai ser uma b-banda gospel. A gente faz música pra t-todo mundo.

    ADV: Sei... mais algum de vocês é evangélico?

    Todos ficaram quietos. Daria até pra ouvir uma mosca voando, de tanto silêncio.

    ADV: Se você não se importa, eu queria perguntar mais uma coisa... meio pessoal. Pode ser?

    Ela se referiu a mim, mais uma vez. Eu sabia que os caras estavam desconfortáveis.

    AG: Manda lá.

    ADV: A gente percebe que você... que quando você fala, não flui bem. É sempre assim? Porque quando você canta, isso não acontece.

    Eu respirei fundo. A entrevista estava mais voltada pra mim, mas eu nunca tive a intenção de ser o foco das atenções. Eu olhei pro Stef meio que instintivamente. Ele mexeu a cabeça de uma forma como se falasse vai em frente.

    AG: É um p-problema que eu t-tenho, desde c-criança. M-Mas agora só acontece q-quando eu f-fico nervoso.

    ADV: E você está nervoso de falar comigo? Eu é que estou extremamente emocionada aqui, perto de artistas com um potencial tão alto. Vocês são muito jovens, né? Quantos anos vocês têm?

    Cada um falou sua idade. Ela perguntou se a gente estudava e como a gente conciliava os ensaios com os estudos e quais eram as perspectivas de cada um.

    CD: A gente ensaia todo fim de semana e às vezes alguma noite na semana. Eu e o Lipe estamos terminando faculdade de música esse ano.

    LL: A gente vai se dedicar à banda e às nossas músicas originais, eu e o Caê.

    SG: Eu me formei no ensino médio uns dias atrás e pretendo me dedicar à banda. A gente tem uma vida normal... a gente malha, faz curso de inglês, vai pra balada... como todo mundo da nossa idade.

    AG: Eu t-terminei o segundo ano e faço c-curso de línguas, gosto m-muito de aprender e ler.

    Ela olhou pro Bosco.

    BL: Eu ainda tenho dois anos e meio de ciência da computação.

    ADV: Bosco, você tá muito quietinho aí... sabe que numa entrevista recente, um dos componentes do Spitfire citou o seu nome como um dos melhores bateristas da atualidade. O que você acha disso?

    O Spitfire era um grupo de pop rock nacional que tinha convidado a gente pra fazer uma participação especial num dos shows no Circo Voador.

    BL: Fruto da paixão que eu tenho pela batera. Toco desde criança e pratico em torno de oito horas por dia.

    ADV: Uau... isso é muito... você não dorme?

    LL: Ele não dorme muito... sempre foi assim. Na verdade, o Bosco toca qualquer instrumento, já que tem ouvido absoluto.

    ADV: Fantástico! Vocês são irmãos, né? Alejandro e Stefano, vocês são irmãos também, mas muito diferentes. Até seu estilo de cantar é diferente. Como vocês planejam conciliar isso nas suas músicas?

    SG: Isso faz parte da surpresa, vocês vão ter que esperar pra ver.

    ADV: Vocês que são irmãos, sempre se deram bem? Aliás, vocês todos sempre souberam que queriam cantar um dia, formar uma banda?

    CD: Eu sempre quis mexer com música, não vejo outra carreira pra mim.

    LL: A gente sempre amou música. Eu e o Bosco tocamos juntos desde que eu tinha dez anos e ele oito. Era em aniversário de amigo, festa da galera, na escola... até que eu conheci o Caetano na faculdade e nós três resolvemos formar uma banda, o Icy Fire. A gente até chegou a tocar nuns barzinhos aí na night.

    ADV: Legal... onde vocês tocaram?

    LL: No Lapa Underground... na Toca do rock... Conhece?

    Ela fez uma cara que não. Um dos fotógrafos conhecia, um cara todo tatuado e que tinha um anel em cada dedo.

    ADV: PC conhece tudo aqui no Rio... E vocês, Alejandro e Stefano? Cantavam juntos?

    Como a gente ia responder isso? Eu e o Stef nos entreolhamos. Ela percebeu o desconforto.

    ADV: Toquei num ponto sensível?

    SG: A música faz parte de mim desde que eu era pequeno. Comecei a escrever letra com oito anos e aprendi a tocar guitarra e piano nessa idade também. Uns anos depois, conheci o Caetano no Rock in Rio e resolvi que um dia ia fazer uma banda com ele.

    Ela olhou pra mim.

    AG: Descobri q-que amava cantar com doze anos, na igreja, ouvindo um c-coral, e comecei a cantar lá. Mas eu p-pensava em fazer alguma coisa pra ajudar as p-pessoas. Serviço social, c-como minha mãe... enfermagem... medicina. Meu c-caminho tá sendo bem diferente, mas quem sabe no futuro.

    Eu vi que ela ia fuçar até desenterrar alguma coisa.

    ADV: Então vocês cantavam na igreja?

    SG: Só o Alê. Eu não.

    Eu abri minha boca pra falar. O Stef não me impediu, e nem os outros.

    AG: A g-gente não c-cresceu junto.

    ADV: Ah, OK... São filhos de pais ou mães diferentes?

    Cara, por que todo jornalista foca só nas coisas que a gente tá tentando ser mais reservado? Eles sentem cheiro disso? Aquela era a hora de eu dar meu testemunho... os caras iam me odiar por isso... ou não. Pensei duas vezes antes de responder. O Stef ficou calado, com uma cara de paisagem.

    LL: Abre o jogo, gente. Agora fudeu mesmo...

    Foi a minha deixa.

    AG: Nossos pais s-são os mesmos. Nossa mãe foi assassinada q-quando eu tinha três anos. A gente não sabe o que aconteceu direito, exceto que uma mulher me pegou pra criar. Quando eu tinha cinco anos, minha mãe de criação morreu e eu fiquei sozinho. Morei na rua até doze anos, quando uma família me adotou. Eu comecei a cantar na igreja dos meus pais adotivos, foi aí que eu descobri que amava cantar.

    SG: Eu morava com meu pai, que procurava o Alejandro desde o acidente. Por coincidência, eu e Alê íamos na mesma escola e éramos amigos. Meu pai descobriu o Alê num show de música na escola. Ele o reconheceu porque ele é a cara da minha mãe e aparentemente canta como ela. Desde então, a gente tem convivido... isso tem um pouco mais de um ano. Foi quando a gente formou o Bleeding Faith.

    A Ariana ficou chocada. Perplexa. Ela até demorou pra responder.

    ADV: Meu Deus... quem ia imaginar? Alejandro, quer contar mais um pouco sobre sua infância nas ruas?

    AG: A única coisa que eu posso dizer é que Deus colocou pessoas valiosas no meu caminho, que me ajudaram, me protegeram, que me ensinaram coisas; além de uma parceira de vida, a minha irmã Malu, que também vivia na rua. A gente tomou conta um do outro quando não tinha ninguém pela gente. E, por fim, a minha mãe e o meu pai adotivos, que me acolheram como se eu fosse filho verdadeiro. Eles me ensinaram de Deus. A Jael é regente do coral da nossa igreja e me ensinou técnicas vocais, além de ter me dado todo o suporte e amor. O que eu posso dizer? Acho que eu estou vivo por um motivo... me sinto privilegiado por ter chegado até aqui, diferente de tanta gente que mora nas ruas e que infelizmente não vai ter o mesmo destino... eu não posso fechar o olho pra elas, eu não posso ignorar, porque cada uma delas é parte do que eu sou.

    Uma lágrima escorreu do olho da Ariana. Os caras pareciam meio tocados também, eu nunca tinha falado assim da minha vida pra eles. Meu irmão me olhou com admiração.

    Desde que a merda com a Malu e o Stefano tinha acontecido, tinha uma distância entre nós, como um lugar que a gente não ia, uma restrição. Mas, naquela hora, eu senti aquele espaço se abrindo pro Stef. Ele era meu irmão e eu o amava, a gente já tinha vivido coisas demais juntos.

    Com isso, a Ariana acabou terminando a entrevista.

    Então até os jornalistas têm coração. Pelo menos, eu vi que ela tinha. Depois de um tempo, ela veio até mim.

    — Obrigada por compartilhar essa história linda comigo. Estou profundamente tocada, Alejandro.

    — Eu que agradeço pela oportunidade, Ariana. Gostei de dar meu testemunho.

    Quando já ia cumprimentar os outros, ela se virou e me chamou.

    — E Alejandro... não sei se você percebeu, mas você parou de gaguejar.

    Eu sorri. Ela sorriu de volta.

    Acabou que a entrevista deu ainda mais visibilidade pra gente. Depois de alguns dias, a Musicalitá entrou em contato, querendo fechar um contrato, porque a Rolling Stone viu a matéria da Tuned e fez um editorial sobre a gente. Logo depois, a Ônix Records, que era da filha do chefe do meu pai, a MGW e a Dreamophonics também nos contactaram, além de produtoras menores, mas a gente escolheu a Musicalitá. Era a maior delas e foi a que nos contactou primeiro. O advogado que o Fred tinha indicado pro Bleeding Faith achou o contrato excelente.

    E essa era a minha primeira viagem internacional.

    NY era fenomenal... e a gente ia passar quase dois meses aqui.

    Nosso hotel ficava quase na esquina da 77th com a Broadway, em Manhattan. Eu resolvi ir andando até o Central Park, que ficava há uns três quilômetros. Também era perto do Museu de História Natural, mas isso eu ia ter que fazer mais tarde, porque eram só nove da manhã. A gente só tinha que aparecer na gravadora segunda-feira. Amanhã eu ia dar um jeito de ir na Brooklyn Tabernacle, uma igreja multicultural famosona que tem um coral maravilhoso.

    Enquanto caminhava, senti falta da minha família.

    No último ano, eu tinha ficado mais no Fred que na Jael. Precisei dar um tempo de ficar perto da Malu, apesar de a gente se ver todo santo dia na escola.

    O Stef nunca se aproximava dela. Quando eu ficava com ela no recreio, ele saía fora. Ele não tinha muitos amigos, só uns chegados, mas ficava bem com o Ipod dele.

    Eu queria manter distância da Malu por uma questão de sanidade mental, mas ela quase não se relacionava com outras pessoas. A verdade é que a gente era muito diferente dos outros alunos. Alguns eram riquinhos babacas, outros só eram babacas, mesmo, mas a maioria nunca tinha passado por nada parecido com o que a gente passou. Eu acabava tendo que escolher entre ela e o Stef.

    A Malu me dava sinais opostos. Se eu quisesse, podia ter voltado a namorá-la ou ter ficado com ela várias vezes. Outras vezes, ela ficava distante e eu sentia que ela só me queria como irmão, mesmo.

    Mas eu sabia que rolava alguma coisa entre ela e o Stef, por mais que nenhum dos dois agisse sobre isso. Meu irmão ainda ficava com a Béa algumas vezes, mas era totalmente randômico.

    Ele estava se controlando na bebida e ainda puxava um fumo, mas sempre longe de mim. Eu sabia por uma frase ou outra que os caras soltavam na minha frente sem querer, ou pela ressaca característica de alguns dias, ou pelo cheiro da roupa dele.

    De qualquer forma, meu irmão estava se esforçando pra gente ficar de boa, ainda que tivesse sempre o gap da Malu entre a gente. Alguma coisa tinha se quebrado e eu sabia, era da minha parte. Com relação ao Fred, as coisas entre os dois melhoravam em doses homeopáticas, mas melhor isso do que nada.

    O dia estava incrivelmente lindo, um céu azul sem nuvens. Me senti feliz, mas sozinho.

    Foi quando eu reparei num cara sentado no Central Park, o primeiro morador de rua que eu via aqui. Ele não parecia mesmo um mendigo, pelo menos como os brasileiros. O cara estava vestido direito, mas eu reconheceria o padrão em qualquer lugar do mundo.

    Me sentei do lado dele e puxei conversa: — Beautiful day, hm? (Dia bonito, Hm?)

    Yep. I guess. (Sim. Eu acho.)

    Do you need anything? (Você precisa de alguma coisa?)

    Eu nunca sabia bem como abordar as pessoas, mas eu queria ajudar e pra mim isso era o bastante. Ele me olhou como se eu fosse doido.

    You are not from around, are you? (Você não é daqui, é?)

    Nope. The accent? (Não. O sotaque me entregou?)

    Yeah. And all the talking. Nobody sees anyone here, man. You’re weird.

    (É. E a conversa. Ninguém vê ninguém aqui, cara. Você é esquisito.)

    Eu tive que rir: — I know. Have you eaten today? (Eu sei. Você já comeu hoje?)

    Well… not actually. I have booze, though. Wanna share?

    (Bom… na verdade, não. Mas eu tenho álcool. Quer dividir?)

    No, thanks. I don’t drink. You want to grab something to eat?

    (Não, obrigado. Eu não bebo. Você quer comer comigo?)

    Ele me olhou, desconfiado: — You gay? (Você é gay?)

    Eu ri de novo. Ele falou antes de mim.

    I mean, I’m no homophobic, man, but I’m straight.

    (Quer dizer, eu não sou homofóbico, cara, mas sou heterossexual.)

    I am neither one nor the other, just want companionship. Wanna go to Starbucks?

    (Eu não sou gay nem homofóbico, só quero companhia. Quer ir no Starbucks?)

    Yeah. OK. (Sim. OK.)

    Eu paguei um café da manhã pro cara e nós nos sentamos. Contei minha história, mas ele não falou muito de si. Me comprometi a tomar café com ele todas as manhãs, caso ele quisesse.

    Na hora de me despedir, estendi minha mão.

    — Alejandro Guerrero.

    — Hugo. Hugo Boss.

    Capítulo 2

    Stefano

    A porra do sol brilhou na minha cara e eu tive que colocar a mão na frente pra não ficar cego.

    — Já é meio-dia, princesa. Você perdeu o breakfast.

    Meu irmão tinha escancarado a cortina, que tinha um blackout de 100%.

    — Vai à merda, Alê. Me deixa dormir.

    — Vai perder o almoço também? Eu já fui no Central Park e voltei. Os caras já acordaram e estão querendo andar por aí.

    Consegui abrir o olho e enxerguei o Alê com um sorriso estampado no rosto. Ele era sempre bem-humorado de manhã.

    — Não é possível… Que horas tu acordou?

    — Sete e meia.

    Taquepariu, só você mesmo. A gente chegou acabado ontem, Alejandro.

    A gente voou Rio-São Paulo quase de madrugada e ficou esperando cinco horas até o vôo pra NYC, que durou dez horas. Eu estava acostumado a viajar de avião, mas não tinha pregado o olho. Ficar sentado num avião não é pra mim, ainda mais de dia. Tentei assistir um filme atrás do outro, mas não prestava atenção em nada direito. O Alejandro era o meu oposto: ficava olhando pela janela, pensando na vida, na morte da bezerra, suspirando, lendo um livro de nerd ou escrevendo letra, inspirado pela novidade na vida dele. Só quando a aeronave chacoalhava é que o cara ficava tenso.

    O Caetano ficou conversando com a menina do lado e acabou traçando ela. Eu tinha que levantar o tempo todo por causa da minha TDAH (diagnosticada pelo Alejandro), por isso deixei o Alê ficar com a janela. Vi o Caê agarrando a menina na ida e na volta. Quando levantei de novo, quase duas horas depois, os dois tavam na mesma agarração, e assim foi até o fim da viagem, quando ele escreveu o telefone dele no peito dela, pelo decote.

    O Lipe estava envolvido numa conversa em inglês com um cara do lado dele que mal sabia da existência do Bleeding Faith, mas fazia coleção de guitarras. Do outro lado, o Bosco tinha tomado um remédio pra dormir e tava apagadão. Claro que ele misturou com uma garrafa pequena de vodka, que ele tomou sozinho antes da gente embarcar. Eu devia ter feito a mesma coisa, mas o Alê tava perto e eu ainda tava numa vibe de tentar ser clean perto dele.

    Era em momentos assim que minha mente corria pra Malu.

    Fiquei me lembrando do dia que o cachorro bagunçado foi atropelado. Claro, um bicho mal educado e enorme que andava na rua sem coleira, ela queria o quê? No dia, a Jael estava numa consulta de rotina com o oncologista, o Maurício trabalhando e o Alê numa aula de espanhol de duas horas. Depois, ele ia direto pra natação, e era tudo lá perto de casa. Eu tava saindo da academia, quando meu celular tocou. Quase caí pra trás quando vi que era ela.

    — Malu?

    — Stefano, você sabe do Alejandro?

    Pela voz, ela tava chorando pra caramba.

    — Tá no espanhol. Tá tudo bem?

    Nãoo Bandaid foi atropelado! Trouxeram a gente pra uma clínica, mas ele tá cheio de sangue, chorando, gemendoquando ele tava entrando na sala de cirurgia, ele desmaioue eu não consigo falar com ninguém!!!

    — Calma. Onde você tá? Vou pra aí agora.

    Ela me deu o endereço na Tijuca e eu peguei um táxi. Fui direto da academia e nem tomei banho. Em vinte minutos, cheguei lá.

    Assim que me viu, a menina veio na minha direção, com a expressão destruída, mas parou no meio do caminho, como se alguma coisa a impedisse. Eu queria abraçá-la, mas não queria forçar nada. Cheguei mais perto e abri os braços, sem saber se ia dar resultado. Foi o bastante pra ela se jogar em mim, chorando descontroladamente. Eu a deixei chorar no meu peito, enquanto acariciava seu cabelo. Depois que ela se acalmou um pouco, eu a fiz sentar e trouxe água. Serviço completo, eu mesmo fiquei admirado.

    — Que aconteceu?

    — Ele tava comigo… chegou mais perto da rua… ele nunca faz isso, mas viu um bicho… um rato, eu acho. Foi quando uma moto passou entre um carro e a calçada na maior velocidade e jogou ele longe… ele caiu na calçada e eu vi um osso dele pra fora e muito sangue, e ele tava chorando e ganindo… aí eu comecei a gritar desesperada… um cara tentou ajudar, mas o Bandaid rosnou pra ele. Foi chegando gente e eu não sei como, um carro parou pra ajudar. Eu que tive que carregar ele pro carro, porque ele não deixava ninguém se aproximar… O cara trouxe a gente até aqui… a gente colocou uma sacola plástica de supermercado embaixo da pata dele, que ficou cheia de sangue… o Bandaid chorava quando eu tocava no tórax dele…

    Ela falava sem parar e tudo descoordenado, mas eu ouvia tudo com atenção.

    — … e quando a gente chegou,

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