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Veneziana
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E-book299 páginas4 horas

Veneziana

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Sobre este e-book

Veneziana conta a história da jovem Sofia, que, vendo-se sozinha no mundo, precisa lutar para sobreviver. Na sua extraordinária vida, as oportunidades se abrem ou se fecham na sua frente, comparadas a imensas venezianas, direcionando os rumos fascinantes da sua trajetória. História emocionante de crescimento e autoconhecimento dos personagens, nos fazendo rir e chorar ao mesmo tempo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento3 de jul. de 2023
ISBN9786553554931
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    Veneziana - Tatiane Bartmann

    capaExpedienteRostoCréditosPaisagemJanela

    Nesse início de tarde de segunda-feira, estou a varrer sossegadamente nosso pequeno, velho e escuro apartamento, que dá de frente para o Parque da Redenção de Porto Alegre. Gosto de esperar meu marido Mauro com tudo limpo.

    Como de costume, não resisto a dar uma rápida espiadinha na rua através das frestas da antiga veneziana fechada da janela do meu querido quarto. Amo essa minha molecagem, meu passatempo predileto. Ninguém sabe disso, é um segredo só meu. Sou capaz de passar o dia inteiro ali escondida, apenas olhando quem cruza o parque e tentando decifrar o que se passa com cada um.

    Atrás da veneziana, eu me sentia segura, protegida, apenas observando os outros...

    Percebo que a vida passa lá fora. Parece que tudo muda a todo instante... alguns no alto, outros no baixo... como o sobe e desce de uma enorme roda-gigante a girar. Alegrias, tristezas, todo tipo de emoção é transmitido pelas pessoas.

    Passam pelo parque pessoas de todos os tipos. Homens, mulheres, jovens, crianças... Na companhia da minha solidão, vou reparando em cada uma delas, que nem sonham que estão sendo vigiadas por mim.

    Mas a minha futilidade infantil, ou talvez a minha paixão antiga e madura, insiste para que eu repare nas roupas e nos acessórios que as pessoas estão vestindo. Atrás da velha veneziana surrada, fico imaginando como ficaria melhor a roupa de cada um que passa... e imagino uma roupa que combine com cada personalidade... Eu me perco no tempo, e a rápida espiadinha atrás da veneziana acaba se tornando uma eternidade.

    Sempre gostei de tudo o que é ligado a moda... acho que a maneira de se vestir transmite o que se é por dentro. Vem da alma.

    Reparo que algumas pessoas passam com muita pressa, outras devagar, quase parando... A vida parecia ser bem diferente para cada um que passava por ali.

    Espiar a emoção dos outros e relacioná-la com suas vestes era o meu mundo... já que a minha vida era estar somente ali naquele apartamento, quase sempre sozinha, porém grata pelo casamento seguro! Mas eu precisava distrair a minha grande solidão companheira.

    Saio da janela, pego a vassoura e tento me concentrar novamente na atividade de varrer o quarto...

    De repente, me olho no espelho, e a vaidade me invade... Percebo que preciso me pentear. Pego a escova de cabelos e começo a passar nos meus enormes cabelos castanho-claros com pontas onduladas. Resolvo passar um rímel nos meus avantajados olhos castanho-esverdeados. E a vaidade companheira da minha solidão me pede mais... e passo um batom de cor forte.

    Mergulhada no devaneio de vaidade, resolvo colocar também algumas roupas de roupeiro, aquelas que a gente nunca usa, que ficam só no roupeiro mofando. Coloco também sapatos de salto escandaloso e fico ali me olhando, perdida nas minhas ilusões, sonhando e achando graça nas combinações perdidas e desapropriadas para qualquer momento. Mas até me acho bonita, e rio desse pensamento.

    Então, depois que a vaidade me deixa, tiro as roupas de roupeiro e começo a varrer novamente o quarto, e dessa vez bem depressa, para me livrar daquilo.

    Sinto vontade de voltar para a janela. Eu poderia ficar ali espiando o dia todo, a observar as pessoas passando na rua como se fossem modelos desfilando em uma passarela de moda, com modelitos de todos os tipos, sem saber que estão sendo vigiadas por mim. A minha querida espiadinha já estava virando um vício mal-educado e gostoso!

    Agora são 15h15min. Já limpei todo o apartamento, fiz comida, compras no supermercado... e também já me diverti bastante na minha janela, assistindo à passarela da moda, discutindo com minha solidão companheira. Mas ainda falta passar as camisas do Mauro, pois ele vai precisar delas amanhã para trabalhar no banco.

    Vou para a área de serviço, ligo o ferro elétrico e então começo a passar as roupas. Em meio ao vapor do ferro elétrico, um turbilhão de pensamentos... Aqueles pensamentos ranzinzas e antipáticos que brotam frequentemente do meu cérebro, trazendo coisas do passado.

    Penso no quanto eu acho que amo meu marido e que por isso me entreguei a ele, fazendo a loucura de me casar com apenas três meses de namoro. Rio de mim mesma, quando penso na coragem que tive de assumir as responsabilidades de um casamento conhecendo muito pouco do futuro marido.

    Acho que nunca tive uma ponta de arrependimento por ter namorado o Mauro por pouco tempo. Afinal, eu já estava com 20 anos... Rio desse pensamento… e rio alto, quando penso que nunca havia namorado outro homem e me sentia encalhada com apenas 20 anos.

    Em meio ao vapor do ferro elétrico, sigo revirando as minhas lembranças, enquanto procuro passar perfeitamente a gola da camisa branca…

    Sinto que minha felicidade não está completa, falta algo... tenho certeza de que, quando tiver filhos, a família completa que nunca tive, serei feliz plenamente.

    Mauro e eu nos conhecemos em uma festa junina escolar. Na época, eu morava com minha tia em Minas Gerais.

    A primeira vez que o vi, ele estava sozinho comendo pipocas e me lançou um olhar provocante. Logo, olhei para ele também, e um pensamento típico de coroa encalhada me invadiu, deixando os meus 20 anos de lado, querendo definitivamente que ele fosse o homem da minha vida. Confiante disso, entreguei-me à sedução do olhar lançado por aquele belo homem. Desde então, não nos separamos mais.

    Na época, Mauro tinha 26 anos. Homem alto, porte atlético, ombros largos, pernas grossas. Tinha um cabelo cor de mel, com uma franja lisa, que ele, com a mão, charmosa e repetidamente, jogava para trás. Sua pele era bronzeada, a boca um pouco carnuda, e o nariz arrebitado. Mas o que mais me chamou a atenção foram os seus belos, estonteantes e atrevidos olhos azuis direcionados para mim.

    Mauro era gaúcho como eu, o que, durante o nosso namoro, rendia-nos muitas conversas, mas estava morando em Belo Horizonte, temporariamente, a trabalho.

    Nem acreditava, mas eu havia conquistado o belo Mauro, estávamos namorando... Mauro foi o meu primeiro e único namorado. Me sentia atraída e queria muito ter com ele a família de verdade que nunca tive.

    Mauro, em alguns momentos, era meio calado. Às vezes eu tinha dúvidas do sentimento dele por mim... Mas ele queria muito se casar, e parecia ter pressa nisso. E era essa pressa que ele tinha em se casar comigo que me dava a certeza do amor que ele sentia por mim. Apenas três meses depois de nos conhecermos, após muitas trocas de carinhos, nos casamos...

    O casamento foi somente na igreja, e fomos morar em nossa terra natal, Porto Alegre, para onde ele havia sido transferido a trabalho.

    Tia Janete, naquela época, era considerada a minha mãe. Eu havia ido morar com ela em Belo Horizonte aos 14 anos, após o falecimento prematuro da minha mãe. Ela aprovou meu casamento e estava feliz por eu, ainda jovem, já ter me encostado em um homem, assim eu nem teria tempo para ser considerada encalhada como ela. Rio desse meu pensamento descabido... e ao mesmo tempo sinto pena da Tia Janete, que lutou a vida toda para conseguir um marido, como se fosse uma obrigação mas infelizmente, nunca conseguiu.

    Esse pensamento estava me fazendo revirar o passado... e lembrar da Tia Janete com carinho. Me deu um aperto no peito e um friozinho na barriga de saudade dela.

    Tia Janete havia sido muito boa para mim. Ela me ensinou muitas coisas. Sentia que ela tinha um carinho especial por mim, principalmente quando me ensinava pacienciosamente a costurar, bordar, pintar tecidos e a fazer muitos mimos artesanais.

    Lembrar da Tia Janete, inevitavelmente, trazia a lembrança da minha mãe ao meu pensamento. Uma forte saudade, e uma lágrima cai na camisa que eu estava passando...

    Minha mãe sempre foi minha única referência. Tinha muita pena dela e jamais quisera ter a vida que ela levou. Ela era mãe solteira. Naquela época, isso era muito malvisto.

    Revoltada com o namorado sem-vergonha que a abandonou grávida, teve que trabalhar desde cedo para me criar. Malcuidada fisicamente, sempre mal-humorada, com resquícios de uma leve depressão não tratada atribuída ao abandono do meu pai, que ela nunca esqueceu, ela nunca conseguiu outro namorado ou, talvez traumatizada, nem tentara conseguir.

    Por conta da experiência dela, planejei meu futuro pensando em encontrar o homem ideal, apaixonar-me e, dessa maneira, ter a tão sonhada família. Queria que ela estivesse viva para me ver assim, tão bem casada. Ela iria se orgulhar de mim.

    Essa lembrança me fez melancólica por alguns minutos. Ela havia morrido muito jovem, de doença grave, sofreu muito.

    Termino de passar uma camisa e pego outra. Então tento me livrar daquele assunto ranzinza comigo mesma, que sempre me rodeia, de minha mãe isso, minha mãe aquilo... talvez sem mesmo sentir que a estivesse culpando de alguma forma...

    Eu estava convencida de que estava feliz... ou a caminho de total felicidade. Continuo a passar as roupas, enquanto vou pensando, pensando... distraída com meus próprios pensamentos.

    Um barulho na porta me tira da minha concentração. Ainda bem, porque o assunto ranzinza comigo mesma estava muito chato, me deixando para baixo.

    — Quem é? — pergunto, medrosa e confiante.

    — Sou eu, Sofia. Saí mais cedo do trabalho hoje.

    — Oi, amor. Estou aqui na área de serviço passando suas camisas — respondo, alegre por ter ouvido a voz do Mauro.

    Meu marido se tornou um homem quieto, nunca me fala sobre seu trabalho, suas amizades... mas, na semana passada, ele me disse que, dentro de pouco tempo, iriam promover alguns funcionários do banco ao cargo de gerente. As promoções estavam para sair a qualquer momento. Ele me disse que queria muito isso. Como ele é um homem inteligente e estudado, teria grande chance de ser promovido a qualquer momento.

    Será que é por isso que chegou cedo hoje? Saíram as promoções? Me pergunto desconfiada. Nesse momento a vontade de ter uma família aflora, desencadeada pela possibilidade de o Mauro ter sido promovido. Sim, porque, se o salário dele aumentar, ele não terá mais motivos de impedir que eu engravide. Tiro minhas conclusões. Colocando fermento no meu instinto materno, faço a minha vontade de ser mãe aumentar pensando na promoção do Mauro.

    Termino de passar, ainda com resquícios de meus pensamentos, imaginando que, se ele fosse logo promovido, quem sabe assim se entusiasmaria em ser pai.

    Entro no nosso quarto com suas camisas carinhosamente passadas, limpas e cheirosas. Mauro está deitado na cama olhando para o teto, como se estivesse com o pensamento longe. Parecia sorrir sozinho... Cuido para não perturbá-lo. Coloco tudo delicadamente em seus cabides e penduro tudo. Fecho a porta do roupeiro, e sem querer o barulho da porta traz Mauro à realidade.

    Ele resmunga.

    — Poxa, Sofia, não faça barulho, estou tentando relaxar.

    — Desculpe, querido, não quero incomodá-lo.

    Não entendo. Estamos casados há dois anos, sempre me dediquei muito a ele, e ele quase não me conta sobre suas coisas, seu trabalho, seus amigos... Mas acho que isso tudo é besteira da minha cabeça. Todo marido tem seus segredos, penso indignada.

    Puxo a cortina e saio silenciosamente do quarto, deixando-o à vontade para descansar. Por que será que ele chegou mais cedo em casa hoje? Continuo a me perguntar, curiosa. Não ouso perguntar nada nesse momento. Vou deixá-lo quieto.

    Meus pensamentos continuam repetitivos e rotineiros, mas sempre me fazendo companhia, aliviando um pouco a minha solidão.

    O telefone toca assim que deixo nosso quarto. Corro, atendendo rápido para que a campainha do telefone não perturbe o descanso do Mauro.

    — Alô! — falo baixinho.

    Uma voz fraca, mas com tom conhecido, responde do outro lado da linha.

    — Oi, é a Sofia?

    — Sim, sou eu — respondo, curiosa.

    — Aqui é a Soraia, lembra de mim? Cuidava da sua Tia Janete. Nos vimos rapidamente quando você esteve aqui da última vez.

    Por ela ter dito cuidava e por saber que Tia Janete estava com saúde debilitada, logo imaginei o pior. A notícia então se confirmou.

    — Sim, Soraia, eu lembro de você. Tudo bem?

    — Estou ligando para avisar que sua tia faleceu na sexta-feira, dia de Natal. Tentei avisá-la, mas não encontrava o número do seu telefone. Ela sofreu um infarto fulminante. Os médicos não conseguiram salvá-la. Me desculpe te avisar assim por telefone. Ela foi enterrada no sábado.

    Fiquei chocada, triste, decepcionada... vários sentimentos ruins afloraram naquele momento de dor. Pois eu estava sendo avisada de que a única pessoa da minha família havia morrido. E eu amava muito Tia Janete, ela fora minha segunda mãe. Morrer no dia de Natal deve ter sido tristeza de solidão, penso com remorso.

    — Sofia, você está me ouvindo? — pergunta Soraia.

    Perturbada por não ter estado presente no momento da última despedida, respondo:

    — Sim, Soraia, estou te ouvindo.

    — Então, Sofia, sabendo que você mora longe, tomei algumas providências. Entreguei as chaves do apartamento dela na imobiliária hoje, para que não cobrassem mais aluguel. Estou doando os pertences dela a uma instituição de caridade. Esse era o desejo dela.

    — Tudo bem, Soraia, você agiu bem — respondo atordoada, zonza e estonteada com a notícia da morte.

    Soraia continua:

    — Enterrei-a com aquele vestido azul que ela tanto gostava e usei aquela pulseira de ouro dela para pagamento do funeral.

    — Obrigada, Soraia. Você fez tudo certo. Cuide de tudo mais que for preciso e, qualquer problema, me procure.

    Não tinha outra opção a não ser pedir a Soraia que cuidasse de tudo. Viajar de Porto Alegre até Belo Horizonte para cuidar dos interesses da minha pobre tia que falecera não adiantaria nada. Depois, nem bens materiais havia. Só restava orar por ela, para que descansasse em paz.

    Pasma, me despedi de Soraia.

    Soltei o telefone e fui para a cozinha fazer um café. Meus pensamentos mais uma vez invadem minha cabeça e, dessa vez, viajavam à minha infância. As lágrimas começaram a rolar ao me lembrar do quanto a Tia Janete tinha sido boa para mim, principalmente na minha adolescência, quando perdi minha mãe. Tia Janete era irmã única e mais velha da minha mãe. Ela nunca se casou, tampouco teve filhos. Trabalhou sua vida inteira dando aulas e educando crianças em uma escola municipal. Ela também me dizia que era importante termos um bom marido para contar, que o trabalho rotineiro fora de casa é estressante e desgastante. Sempre me aconselhou a me casar bem com um homem bom e dedicar-me à família. Parecia repetir as palavras da minha mãe.

    Lembrei do carinho com que Tia Janete me ensinava a fazer trabalhos artesanais. Ela descobriu que eu amava fazer trabalhos manuais. Foi fazendo artesanato que consegui superar a terrível perda prematura da minha mãe. Ela sempre me elogiava dizendo que eu levava jeito para costura, bordados... dizia que eu era muito criativa. Foi ela quem me ensinou a fazer bolsas artesanais.

    Passo as mãos nos olhos para enxugar as lágrimas... Trêmula, seguro a xícara, tomo um gole de café, tentando me equilibrar no pensamento das belezas de trabalhos que ela me ensinara a fazer.

    Mas as lágrimas aumentaram muito quando lembrei da morte da minha mãe. Tão jovem ainda, apenas 35 anos... Sei que foi doença séria, ela se acabou muito rápido. Eu tinha apenas 14 anos e fui morar com Tia Janete.

    Com o rosto molhado e pensamentos no passado, pego a xícara de café novamente e me dei conta, mais uma vez, de que da família só restava eu.

    Passo um pano no rosto tentando não me desesperar e ter algum pensamento bom naquele momento de luto angustiante. Fecho os olhos tentando afastar os pensamentos ruins. Novamente, meus pensamentos voltam-se ao Mauro. Eu só tinha ele na vida agora. Era grata por estar casada com ele. Me sentia amparada.

    Procurava sempre pensar que o Mauro era perfeito. Precisava acreditar nisso. Porque, a partir daí, viriam os filhos e a família desejada. Esse pensamento acalmava minha alma e me dava a certeza de que, com uma família, eu teria a felicidade completa.

    Mas no fundo eu gostaria que o Mauro fosse um pouco diferente, que fosse mais aberto, conversasse um pouco mais comigo, me contando sobre seu trabalho, sua infância, seus amigos. Gostaria de vê-lo sorrindo mais. Sentia que ele estava cansado de tanto trabalho. Não entendo por que meus pensamentos correm em direção ao Mauro, sempre me falando que ele é maravilhoso. Já estou convencida disso. Mesmo após ter acabado de saber que Tia Janete faleceu, o pensamento corre para o Mauro, me deixando ainda mais atordoada.

    O telefone toca novamente e corro para atender, para que o barulho não perturbe o descanso do Mauro. Uma voz masculina e alegre exclama:

    — Alô!

    Automaticamente respondo:

    — Alô! Gostaria de falar com quem? — pergunto, ainda enxugando as lágrimas dedicadas a Tia Janete.

    — É da casa do Mauro?

    — Sim.

    — É a empregada dele?

    — Não — respondo baixo e admirada.

    — Diga para ele que a festinha em comemoração da promoção dele a gerente do banco foi confirmada para hoje às 20 horas no local que combinamos.

    Ainda admirada e surpresa, atino a perguntar:

    — Qual é seu nome?

    — Paulo, sou colega dele no banco. Desculpe ligar para aí. É que hoje é dia de festa, então acho que ele não vai se importar com esta ligação. Você é amiga dele?

    — Não, não sou amiga dele. Pode deixar que darei o recado.

    Desligo o telefone, mal-educada, não o deixando se despedir. A sensação que tive ao desligar o telefone é de que o teto estava caindo sobre a minha cabeça, ou pior, parece que abriu no chão um grande buraco, muito fundo, e que eu estava caindo dentro dele.

    Que estranho achar que eu sou empregada ou amiga do Mauro! Uma ponta de desconfiança parece brotar no meu cérebro, e logo penso, será que esse cara, o tal Paulo, não sabe que Mauro é casado? Acho que eu estou perturbada com a morte da tia e não devo ter entendido bem o que ele me perguntou. Sim, com certeza foi um mal-entendido. Mauro me ama, ele sempre fala isso e não tem por que esconder isso dos amigos. Mas uma outra coisa me intriga: por que Mauro não me falou da promoção?

    Naquele momento, meu sentimento de luto dedicado a Tia Janete se transforma em ira, aversão e revolta contra o Mauro. Caminho de um lado para o outro na sala, tentando acalmar meus pensamentos, tentando me convencer de algum modo de que eu estava errada. Procurando desesperadamente uma saída... e, como se estivesse tentando convencer uma criança boba, penso Quem sabe ele está querendo me fazer uma surpresa?...

    Tentando me agarrar de qualquer jeito à felicidade do amparo de um casamento, respondo a pergunta do meu próprio pensamento: sim, é uma surpresa! Mais tarde, na hora certa, ele vai me contar. Tudo isso foi um mal-entendido. Devo pensar que seja isso, então vou entrar no jogo e nem vou comentar nada com ele sobre promoção. Vou esperar que ele me conte. É claro que ele vai me contar. É uma surpresa! Só pode ser, repito para meu próprio convencimento.

    Sento por alguns minutos no sofá e procuro relaxar, organizar os pensamentos tristes, cansados e atordoados. Fecho os olhos e me dou conta de que agora poderia engravidar e realizar o sonho de ser mãe. Mauro havia sido promovido, iria ganhar mais dinheiro, então ele vai concordar com a gravidez, fala o instinto materno dentro de mim.

    Envolvida em meus pensamentos, nas minhas dúvidas, nas minhas esperanças, e desconfianças, mas completamente atordoada com a morte da minha tia amada e convencida de que o melhor era não discutir com o Mauro nem perguntar nada a ele sobre promoção, tento me concentrar no bordado de uma blusa que estava ao meu lado no sofá. Esses dois telefonemas me deixaram arrasada.

    Mas...

    — Ai! — grito quando enfio, sem querer, a agulha no dedo.

    Sem conseguir concentração, desisto do bordado e me sento em frente à televisão. Estava passando uma propaganda da novela De Corpo e Alma... eu não perdia essa novela... novelas me distraíam.

    Escuto um alvoroço na rua, parecia uma briga, e dou uma olhada pela sacada. Nossa, tem um grupo pequeno de caras pintadas reclamando do presidente, passando na passarela da moda, ou melhor, pelo Parque da Redenção.

    — Ui... detesto política! — comento comigo mesma, enquanto aperto o dedo para estancar o pequeno sangramento.

    Eu estava inquieta, ansiosa e nervosa. Mauro aparece na sala, lerdo.

    — O que houve? Parece que você gritou!

    — Oh, sim! Agora há pouco eu furei o dedo com a agulha do bordado, deve ter sido isso que você ouviu. Me desculpe... eu acordei você?

    Ele me olha sério, mas não parece irritado. Deve ter descansado bem.

    — Você e seus bordados... Você não me acordou. Eu já estava alerta.

    Mauro nunca deu atenção para meus trabalhos manuais, nunca elogiou, talvez ele tivesse razão... não eram assim muito bonitos... mas, mesmo sem incentivo, eu fazia algumas peças com muito carinho e as achava lindas.

    — Mauro, minha Tia Janete faleceu — contei emocionada.

    Ele faz uma cara de espanto. Não diria tristeza, mas sim surpresa.

    — Você vai querer ir ao enterro?

    — Ela faleceu na sexta-feira, dia de Natal, e já foi enterrada.

    — Meus pesares, Sofia — fala ele e caminha até a cozinha lentamente.

    — Obrigada, querido.

    Daí me lembro do outro telefonema... o recado do tal Paulo.

    — Querido, seu colega Paulo ligou.

    Ele dá um salto da cozinha para a sala e, agora sim com cara de irritado, me pergunta:

    — O que ele queria? O que ele falou com você? Não gosto de misturar família com trabalho. Paulo é mesmo um infantil de ficar ligando aqui pra casa. Onde será que ele conseguiu meu telefone?

    A ira saltava dos olhos de Mauro. Acho que apenas umas três vezes eu o vi com tal irritação.

    — Calma, querido! Ele apenas me disse que haverá uma festinha hoje à noite, às 20 horas, no local que vocês haviam combinado.

    Ele me olha com mais raiva ainda, e eu penso, será que não deveria ter-lhe avisado? Qual é o problema? Queria que ele me deixasse participar mais de sua vida profissional. Roxo de raiva, ele pergunta:

    — O que foi que ele falou pra você? — insistia nessa pergunta...

    Rapidamente, lembrei-me daqueles meus pensamentos, de que achava que ele poderia me fazer uma surpresa para me contar da promoção. Então, tentando entrar no jogo, me achando muito esperta para manter

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