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Enfim Fomos Felizes
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E-book311 páginas5 horas

Enfim Fomos Felizes

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Sobre este e-book

Enfim fomos felizes é uma longa carta a uma mãe que jamais morreu. Porque, poderíamos dizer, uma mãe não morre jamais: certamente não é o destino, com suas brincadeiras infantis, que poderá nos deixar órfãos. A obra narra, com rara beleza e emoção, mas também com divertida poesia, um árduo aprendizado. Aquilo que a protagonista põe em cena é uma espécie de pequeno circo que se desloca pela Europa e que é composto por dois cães e três meninos, chamados Gauguin, Scoiattola e Caravaggio. Cada espetáculo é improvisado. A ela – que se dirige por escrito à mãe – cabe escolher o lugar e montar a tenda. Cabe a ela o número de mágica mais arriscado: convencer as crianças de que o mundo é um lugar bonito, a despeito das lembranças que atormentam seu coração. Deixamos de ser filhos quando nos tornamos pais. Contudo, mais do que nunca precisamos dela: para saber como tornar-se mãe, ou talvez, simplesmente, para não nos sentirmos sós. E se a mãe não está mais presente, por já ter partido, remontar à infância para criar três crianças se torna uma aventura.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de jul. de 2023
ISBN9788534951470
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    Pré-visualização do livro

    Enfim Fomos Felizes - Irene Salvatori

    Não é verdade que não fomos felizes. / Você foi sempre / que olhava fixamente, dete rminado / a negar ou a aprender. Toda vez que precisei de você, repeti essa frase para mim mesma. Você tinha emoldurado o poema, estava na sua mesinha de cabeceira, mas eu o peguei e o levei comigo, para todos os lugares. Seu Fortini viajou comigo, de casa em casa, e ainda o repito para mim mesma, agora, depois de todos esses anos. Repito-o aqui, no lago Grunewald, mamãe. Mamãe. Talvez você não ouça essa palavra há algum tempo, quem sabe o efeito que ela tem sobre você. Quem sabe se é como, depois de adultos, voltamos aos corredores da nossa antiga escola fundamental e as carteiras são pequenas e tudo é diferente e nos sentimos grandes demais, enormes. O lago, por outro lado, não tem medo da passagem do tempo, nem do que cresce ou muda, toda manhã parece novo. Olho para a água que espera o sol. Ela realmente o espera, porque, quando ele chega e se abre majestosamente acima dela, ela o acolhe, se derrama, fica feliz, com a mesma felicidade que sinto quando, ainda que eu espere, acontece alguma coisa e me surpreende e a alegria agita-se dentro de mim, faz bolhas, sobe até a minha boca e abre meu rosto, porque sorrio com um sorriso que é quase inevitável. Como na escola, nas poucas vezes em que tirei uma nota boa e, ao me entregarem a prova, aquela nota se tornava real em minhas mãos, assim a água faz com o sol. Eu vim para cá porque estou procurando uma chave, é sempre bom permitir-se observar a água que se retrai, se expõe, mas agora eu preciso muito dessa chave e entre os muitos lugares eu disse a mim mesma que talvez pudesse encontrá-la aqui. Ando em volta do lago, tento mover a areia com a ponta dos sapatos, nessas enseadas de praia onde a água está à sombra, se espalha no chão e fica mais ou menos parada. Ao longo desse quadro há pontos onde o caminho termina no bosque, afasta-se da margem, porque há lugares onde os pássaros descansam nos juncos, e me conduz por cem metros sob as bétulas, entre os carvalhos, até que o bosque diminui, depois desço e volto para a água, onde se formam as praias. As árvores ajudam a manter a calma. Elas são firmes, são capazes de superar casas e prédios em altura. Com as árvores o tempo não brinca, nem as árvores esperam o sol, para elas, se há sol ou neve, não faz diferença. Gosto de passar por baixo delas, sinto sua calma se instalar em mim, vindo de cima. Também sinto alguma coisa que vem da água do lago, água doce não cria ondas, posso até sentar na margem por muito tempo e ficar em silêncio, ou conversar com você. O único risco é o de o lago encher, quando chove muito acontece e as praias podem até desaparecer, a água se alarga, aumenta e chega aonde pode, mas nesse período raramente chove, no máximo pode nevar, mas não parece que isso vá acontecer agora. Procuro a chave para entender quem eu sou, mamãe. A chave que me ajude a seguir em frente de uma vez por todas, sem errar o caminho, simplesmente em frente e na direção certa. Este lugar é bom porque estou sozinha e tenho tempo para repassar em silêncio o que aconteceu, como cheguei até aqui. Para lidar com o que tenho no bolso, para saber aonde ir. Cada vida parece ter apenas uma direção e eu errei a minha. Peguei a estrada errada várias vezes, até que o bosque ficou muito denso ao meu redor e eu tive de parar. Eu estava lá dentro, tentava permanecer apesar dos arbustos, dos espinhos, no entanto tentava ficar, continuar, mas não seguia adiante e no final teria de sair, mas em vez disso fugia, caía, me recuperava e quando me levantava era ceifada, cortada, e assim no final voltei atrás. O caminho que eu tentava seguir sumiu, a certa altura me distraí, achei que sabia me orientar, me afastei e quando voltei não o encontrei mais. Agora não posso pedir ajuda. Não posso, porque estou além de qualquer prazo. Estou atrasada, todos ao meu redor usaram essa chave para se entender há tantos anos que já a esqueceram, perderam-na e não posso me misturar a eles, seria como passear em um supermercado e perguntar às pessoas nos corredores o que devo comprar. Diga-me, por favor, diga-me o que eu preciso. Não, essas coisas não se podem pedir, é preciso encher o carrinho de compras sozinha. Houve um tempo em que talvez isso pudesse ser feito, mas, em comparação com a minha vida atual, esse tempo é como as pirâmides, os dinossauros. Nem sei se perdi aquela chave, se já a tive nas mãos ou se ainda não a encontrei. Eu poderia perguntar como ela é, mas ninguém se lembra; não se guardam as chaves, não as que são necessárias apenas uma vez. Seria como perguntar qual era a cor da sua primeira escova de dentes, quem vai saber. Então aqui estou eu, sentada, não há ninguém, alguém está levando o cachorro para passear, não preciso rir nem falar, e, depois, tenho uma coisa muito importante para fazer, estou ocupada, estou sentada neste tronco, cravei meu olhar em algum lugar à frente e estou usando todas as minhas forças para manter a calma. Calma. Às vezes a gente esquece, sabe, mas manter a calma é o ponto de partida de tudo. Você me dizia antes de qualquer coisa importante: Fique calma. Muitos anos se passaram, mamãe, foi difícil, mas também aprendi a fazer muitas coisas. Algumas são pequenas, mas é daí que se começa. Por exemplo, sei que caminhar até aqui sem me perder levou tempo, tenho de seguir dando um passo depois do outro sem me distrair e tenho de respirar lentamente. Também aprendi a me vestir da maneira certa, sem esquecer o lenço ou o chapéu quando está muito frio, porque senão na metade do lago eu talvez tivesse de voltar, de vez em quando acontecia de estar realmente muito frio e então para me aquecer eu acelerava o passo, mas então arriscava me perder e então, quando nem a respiração que se acelerava na minha garganta me aquecia, tinha de voltar sem terminar o passeio. Aprendi também a escolher os calçados certos, os que são bons para caminhar sobre a lama, porque aqui no lago há uma longa passarela de madeira e muitas vezes enche de lama quando chove ou quando está muito úmido, e se caminho por ali de tênis, por exemplo, a lama agarra no solado de borracha, gruda e o transforma em ventosas que me fazem caminhar com desentupidores em vez de pés. O frio, a lama, tentei aprender a prever essas coisas, para ter certeza de que o acaso não me surpreenderá quando for tarde demais, porque se acontecer ele ganha. Aprendi a vir aqui sozinha, nem sei bem quando cheguei, sei que em algum momento também encontrei aquela chave ali, aquela que me fez entender que estava tudo bem. Não havia problema em permitir-me isso. Até então, eu me sentia culpada por estar sozinha, sabe. Culpada, fora de lugar, errada. Tudo o que eu fazia tinha sentido se o fizesse por alguém. Acompanhar, vestir, explicar, ler, cozinhar. Cozinhar. Como é que você, mamãe, cozinhava só para si? Não digo comer, que comer se come, basta ter fome, se faz em pé, correndo, mas cozinhar. Com todas as coisas a fazer, a família, a casa, o trabalho, ter tempo para cortar uma cebola e refogar com meia abobrinha. Nem mesmo as quantidades ajudam na solidão, uma abobrinha inteira é demais, mas, se metade é suficiente, o que faço com o resto? Coloco de volta na geladeira, como uma metáfora do desperdício, para vê-la envelhecer e amolecer sozinha na prateleira de vidro toda vez que abrir a porta, até ficar mofada? Se eu cozinhava, cozinhava para todo mundo, aliás, durante anos fiz isso justamente como um trabalho, cozinhei doze horas por dia, alimentei centenas de pessoas na hora do almoço, apaguei velas sobre milhares de bolos de aniversário que fazia e decorava para os outros, clientes, pessoas que não conhecia e que ainda assim enchiam a boca e comiam meus bolos. Chegar ao lago era um passeio em família, crianças, cachorros, amigos. Há amigos, vamos ao lago. E aí, lentamente, nesse viver por fora, sequei por dentro. Não como a abobrinha que mofa, mas como certas abobrinhas que por fora ficam mais ou menos iguais, mas por dentro secam e, se as tocamos, estão vazias. Eu cresci torta ao longo desses anos, porque crescer se cresce, se envelhece, se vai adiante. O tempo não esperou que eu ficasse pronta, apenas continuou acrescentando os anos, jogando-os aos punhados em cima de mim como se faz com sementes de grama na terra. E eles, os anos, cresciam, como ervas daninhas, mas cresciam. Tentei sobreviver aprendendo coisas que não sabia, talvez se tiver sorte também encontre essa chave, na verdade agora só falta ela para seguir adiante. Esses anos sem você foram uma jornada obstinada dentro daquele bosque, até que eu saí, mas porque alguém me ajudou, caso contrário nunca teria encontrado forças para escrever para você como estou fazendo agora. Assim, sabendo que falar com você ainda é a necessidade mais incômoda com a qual convivo, mesmo que você não me ouça, mesmo que você não esteja aqui. Em vez disso, consigo fazê-lo porque fiz a travessia do oceano dentro de mim a bordo do Nautilus. Sim, mamãe, um submarino, e também havia um capitão da marinha no leme, daqueles verdadeiros, porque não, não é uma viagem que se faz sozinho. Era um capitão, sim, ele tinha uma jaqueta com insígnias e botões dourados. Nemo, ele mesmo, com barba e telescópio de latão. Ele me pegou um dia em que eu estava caída ofegante no chão, me achou quando eu fugia daquele bosque, mas não respirava, e veio em minha direção, me estendeu a mão: Venha, disse ele, tomando para si aquela confiança que qualquer doente coloca num médico apenas ao ver o algodão branco do jaleco. Diga-me, e eu lhe expliquei como me perdi, que tipo de animal eu era, como havia perdido o fôlego, onde parecia tê-lo perdido e de onde eu vinha. Ele disse, então: Vamos. E do pronto-socorro chegamos ao porto, onde embarcamos. Depois do bosque. Eu nem percebi o trajeto, senti como quando eu era pequena, paralisada no hospital e sufocando por causa da Guillain-Barré e só podia confiar. Percebi que estava dentro de um submarino quando consegui me levantar e Nemo me ajudou a chegar mais perto das vigias, então vi que havia água lá fora. Ele me fazia falar, me pedia para explicar o que via, porque dentro daquele submarino estávamos navegando por um oceano que era eu. No fundo daquele mar, além das vigias, os fragmentos do meu passado flutuavam e subimos pelo meu intestino observando as paredes, contornamos meus outros órgãos. Íamos para a frente e para trás, eu apontava algo e ele perguntava por quê. Uma longa volta para trás por dentro, um pouco como aquela última olhada que você dá em casa, antes de sair por um longo tempo e fechar todas as janelas, verificar os botões do gás, o aquecedor e deixar a geladeira desligada e aberta. Prever, novamente. Porque um dia você vai voltar e, se a casa estiver em ordem, a vida pode simplesmente recomeçar, sem que o tempo tenha se mudado para aquela casa em seu lugar. Nemo me levou de volta, olhávamos os objetos que se viam além das vigias, as pessoas que por acaso estavam ali, os bairros da cidade que ele não conhecia e que eu tinha de lhe apresentar. Fomos em busca dos momentos de apneia, aqueles em que minha respiração parava, os momentos de perigo que me deixavam ofegante, que me reaproximavam do momento em que ele me encontrou, quando ele me acolheu, perdida, fora daquele bosque. Fizemos uma longa viagem, demos tantos pequenos passos juntos que, depois, quando os consegui reordenar, inspirei um fluxo de oxigênio e, aos poucos, parei de não respirar. De vez em quando ele me deixava sair do Nautilus, sempre no barco lá fora, sempre no meio daquele oceano, mas não debaixo d’água. De vez em quando, me mandava ver se o sol estava brilhando, ele me dizia: Vá em frente, tente. Ele me fazia tentar respirar e segurava firme aquela correntinha entre os dedos, olhava para o céu, mesmo que por pouco tempo, porque durante anos tive medo do espaço, do silêncio. Ainda hoje o silêncio me dá medo, porque lá dentro eu procuro por você hoje assim como a procurava então e, naquela terrível certeza de não a encontrar, vinha a falta de ar e eu ficava sem fôlego, sentia a última respiração percorrer minha garganta e desaparecer. Como os atores que desaparecem nos bastidores depois dos aplausos, eu ficava sem oxigênio na garganta e entrava em apneia. Nemo era um fisioterapeuta respiratório. Entrar no submarino foi como fazer a traqueostomia novamente, lá dentro eu parei de engasgar porque então minha garganta respirava por mim, presa a uma máquina. Toda vez que eu descia a escada do Nautilus, Nemo passava meu cartão de saúde na maquininha e prendia o respirador na minha garganta, como se veste o maiô e a touca quando se vai à piscina, porque assim eu podia chegar mais perto dos momentos complicados, podia acompanhá-lo por aquelas partes de mim que sem a máquina eu sufocaria instantaneamente. Os bosques escuros, as árvores malvadas que assobiavam, o silêncio que evitava há anos, eu me afastava assim que o volume diminuía, como uma gata assustada, só que no salto que dava para escapar, frequentemente acabava atropelada ou enjaulada, isso quando não arriscava me afogar ou terminava grávida, e do mesmo jeito me machucava. E assim se passaram esses anos com Nemo, voltando a esses momentos e observando o medo derreter, até desaparecer. Como arqueólogos, com pincel na mão, cavamos o calcário da dor das paredes dos órgãos, até que eles voltaram a funcionar eficientemente. O dia em que ele achou que eu podia respirar de novo: Mesmo na zona de perigo, senhora, ele tentou me separar da máquina por alguns segundos e, de fato, ele estava certo, eu estava respirando. Mas eu sabia que sabia respirar, eram os momentos críticos que me apertavam a garganta, era o seu silêncio. Era quando eu a esperava, quando às vezes eu fazia chá e preparava duas xícaras e dizia a mim mesma que você viria, mas não vinha. Nemo me ensinou a respirar naqueles momentos, a antevê-los, a sorrir deles e aos poucos fui conseguindo. Antes, eu ficava cinco, seis segundos desconectada da máquina olhando para o bule com as duas xícaras ou segurando um par de brincos seus entre os dedos, e respirava. Respirava, mesmo vendo você sorrir ao redor daqueles brincos que balançavam, brilhavam e agora, na minha mão, não o faziam mais. Funcionava, a garganta não fechava mais. Então Nemo deixava que esses segundos aumentassem até que depois dos minutos conseguimos chegar a passar algumas horas e, quando consegui dormir uma noite inteira desconectada do respirador, era chegada a hora de tentar fazer isso sozinha, de verdade. Lembro-me que ele tinha realmente me desconectado da máquina, ele a tinha desligado e começado a trocar as cânulas, colocando-as cada vez menores, sempre menores, até conseguir fechar o buraco. Porque é assim que os buracos se fecham, devagar, aos poucos. Agora você não precisa mais, dizia, enquanto eu ainda convivia com o incômodo daquela cânula de plástico no pescoço. Porque a traqueia devia preparar-se para criar uma cicatriz, um remendo. Nessa jornada, de vez em quando minhas mãos ficavam cianóticas, eram os momentos em que ele invertia o curso do Nautilus e nem ficava muito assustado, mas os médicos não se assustam facilmente, compreendia que havia algo a fazer, que deveríamos voltar àquela zona de perigo calmamente, juntos. Gradualmente. Seu barco navegava dentro de mim e, de vez em quando, precisava realmente afundar. É por isso que agora observo a água, agora que estou fora me lembro do momento em que deixei a terra firme para subir a bordo e tenho em mente tudo o que vi lá embaixo, se me lembro daqueles momentos sinto o sabor que tinha o ar quando eu respirava presa à máquina, era mais fresco, mais limpo, não era meu. Estou aqui, mamãe, e observo mais uma vez cada passagem de toda essa jornada como se me lembrasse de um filme, como se quisesse me assegurar de que aqueles momentos em que eu tropeçava e escorregava em apneia nunca mais se repetirão. É por isso que digo a mim mesma que agora talvez tenha chegado a hora certa, agora tenho de encontrar essa chave e, uma vez que a tenha em mãos, poderei seguir adiante. Todas as manhãs eu passo creme hidratante na cicatriz da garganta, depois me visto e sigo em frente. Depois da viagem com o Nautilus tive de acrescentar isso à minha vida, nem precisa ser um creme especial, só tenho de me lembrar, porque senão repuxa e dói. Talvez eu encontre essa chave por acaso, às vezes acontece de encontrarmos algo quando menos esperamos. Encaro esses momentos como presentes que o tempo me dá, talvez de vez em quando ele perceba que passou rápido demais e, mesmo que não tenha o poder de parar ou desacelerar, ao menos me dá um presente. Se olho para a frente vejo o horizonte à minha altura, só está muito longe. Aprendi também a não ter medo de olhar para a frente, de pensar no futuro. Antes de entrar naquele submarino, pensar no futuro me fazia estremecer. Onde você se imagina daqui a cinco anos, Nemo me perguntou um dia, e ao tentar imaginar senti o medo apertar meu pescoço e minhas mãos ficaram cianóticas, até ele ficou assustado e, aliás, talvez tenha sido nessa ocasião que ele decidiu fazer a traqueostomia. Agora estou com os pés nesta areia e sinto que o futuro virá, mas não quero mais ter pressa nem medo, não importa o que aconteça. Nem posso, porque a pressa e o medo levam a outro lugar e não tenho mais tempo de ir a outro lugar. Tenho de seguir por uma direção, não por um desvio. Não há problema em deixar os olhos pousados no lago e, ainda por um momento, olhar além, porque quando aquelas apneias que aconteciam lá embaixo forem verdadeiramente apaziguadas para sempre então será a hora certa de parar de olhar para aquele horizonte e saberei para onde ir. O horizonte está sempre ali adiante, se eu tentar contorná-lo, ele se vira antes de mim. Nos anos em que eu não conseguia olhar para cima e procurá-lo, ele tinha-me sempre sob seus olhos. É o meu horizonte, o que ele deve fazer além de estar conectado a mim. Como a minha direção, ela sabe onde estou, sou eu que não a reconheço, e no dia que conseguir segui-la nos encontraremos e ela me dirá: Finalmente. Talvez. Portanto, hoje, se durante este trajeto eu encontrasse a chave, então saberia para onde ir e talvez o lago e o bosque desaparecessem também, quem sabe se eles também não se tornariam apenas uma cicatriz, uma tatuagem, e com um remendo sobre a memória de um caminho concluído eu começaria a Vida Nova. Porque não é verdade que não fomos felizes e em deferência ao passado eu até passaria creme nessa cicatriz todas as manhãs, tocando-me com esses dedos compridos e ossudos, tão parecidos com os seus. E se isso não acontecer, não importa, eu continuo procurando por aquela chave, agora só falta ela. Estou cansada, também, foram anos cansativos, por isso meu olhar permanece na água, porque é de lá que venho e talvez não confie plenamente nessa respiração. A travessia com Nemo precisava terminar e, quando aquele dia chegou, ele me fez desembarcar. Antes, ficamos na praia por um longo tempo, ele me falou sobre o desapego, me explicou que nos separaríamos porque, segundo ele, eu já não tinha mais zonas de apneia. Não havia mais tempestades para acalmar ali embaixo, não precisava mais ficar sentada dentro do submarino dele, presa à sua máquina. Vá, ele me disse, faça do seu mundo um lugar bonito, depende de você. Como nos contos de fadas. Como Mary Poppins. Quando todos aprenderam a se amar, ela vai embora, deixa-os abraçados. Eles se bastam, aprenderam a serem fortes juntos, e ela prossegue, vai ajudar outra família. E eu fiquei no porto e vi meu barqueiro Nemo ir embora um pouco como Mary Poppins, mas fiquei mais triste que os Banks, porque ninguém me abraçava, aliás, ficar sozinha era o que ele me havia ensinado a fazer e eu não podia decepcioná-lo justamente naquele momento. Preparar tranquilamente uma única xícara de chá, sem sentir as paredes da sala implodirem na garganta porque você não chegava. Colocar os seus brincos e acostumar-me com o fundo do meu cabelo preto e não o do seu, loiro, dourado. Eu sempre a vi dourada, mamãe, ouro era a sua cor. Nemo me ensinou a engolir a normalidade que me enche de si, mesmo que eu não goste, mas não a mantenho mais na superfície porque discordo, não fecho a boca para ela, hoje a engulo. Não o vejo mais, posso ir vê-lo se achar que preciso, de vez em quando vou mostrar-lhe a cicatriz na garganta, mas é só para controle, como a revisão de um carro, não tenho mais nem o casaco com os sapos, não estamos no porto, não há gaivotas. Acabou aquela viagem de submarino, agora ele é um mecânico, tem um trapo nas mãos e as limpa quando chego. Eu tinha tomado a direção errada naquele bosque no dia em que você partiu, então caí na solidão e quando me levantei não percebi que o seu tumor estava esperando por mim com um alfinete de segurança na mão. Estava ali, em algum lugar, para perfurar meu coração, levar você embora e substituí-la pelo nada. Eu sabia que você ia embora, nós sabíamos, portanto quando aconteceu foi como um Natal triste, aqueles que não há como evitar. O tempo dos outros não se interrompeu, as horas passavam e as lojas ao redor da sua casa abriam e fechavam como antes. Vendiam pão, vinha a noite e depois a manhã e a vizinha continuava a levar as crianças para a escola. Só a minha percepção do tempo estava emperrada num espasmo, numa isquemia, mesmo que não fosse visível porque, para agarrar aquele tempo e adaptá-lo à minha necessidade de descanso, eu o lacei e enfiei um bastão na minha garganta para fazer uma alavanca. Nessa posição me segurei firmemente no bastão com as duas mãos, tentei parar aquele tempo, ou ao menos diminuir a sua velocidade. Segurei-o nas mãos, era a alavanca de freio de uma velha locomotiva. Mas o tempo passa em seus trilhos e, ainda que eu o tenha ancorado naquele bastão e o cravado bem dentro do estômago, ele continuou em frente, sem nem sequer diminuir a velocidade. A única coisa que consegui fazer, e fazer a mim mesma, foi um sulco, um buraco. Eu havia arado as paredes dos meus pulmões e com o próximo punhado de sementes que o tempo espalharia cresceria uma floresta de ervas daninhas carnívoras, sugando-me o ar. A isso eu havia acrescentado a energia dos braços dos meus vinte anos, de modo que àquela floresta não faltava nada para crescer tropical, tempestuosa. Ao deixar-me, você deixou seu molho de chaves na cozinha, lembro bem que o coloquei na minha mala, fechei tudo com meus braços jovens e saudáveis e fui embora. Eu tinha não apenas as suas chaves, mas o seu carro com suas fitas cassete dentro, as suas calças, os livros com o seu nome, as panelas e os seus lenços com seu cheiro. Eu tinha ainda a sua vida espalhada em mim, eu não estava sozinha e todas as suas chaves tilintavam dentro de mim e seriam usadas no momento certo, elas me ajudariam a entender. Pensando nisso hoje, o verdadeiro desastre foi que eu era forte. Quando parti naquela viagem, eu era praticamente uma árvore decorada para a véspera de Natal e você me fazia tilintar. Aí, você sabe, os anos passam, as coisas envelhecem, ficam empoeiradas, param de funcionar. Eu lentamente tive que podar aquele pinheiro. Quando chegou a primeira primavera eu tinha removido as luzinhas, então passei por uma tempestade e algumas bolas caíram sozinhas. Mas ainda tinha muito em mim e o pinheiro continuava verde, parecia-me que perder alguma coisa pertencia ao fluxo normal daquela locomotiva do tempo e aceitava com entusiasmo fixar você nos ramos. Mesmo que diminuísse eu abria espaço para você. Remendei os buracos das traças e continuei usando o mesmo suéter que você usava. Quando algo não funcionava, eu me sentia forte com aquele molho de chaves. Mesmo percebendo que aquelas chaves não abriam, não esclareciam, eu ainda tentava usá-las mesmo que não funcionassem, não agora, dizia a mim mesma, talvez mais tarde. Até que cheguei em outubro, novembro, cinco anos depois. Você partiu em primeiro de dezembro daquele ano e com o inverno de cinco anos depois fiquei sem fôlego, até então eu parecia ter aguentado, mas depois não consegui mais. Cinco anos pareciam longos o suficiente para um passeio de boia. Respirei fundo, fiz as contas e mergulhei em uma piscina longa como aquele tempo, com treinamento profissional diário consegui superar aquela distância em apneia, mas agora não dava mais. Agora eu sairia da

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