Appalachian Trail
De Jeff Santos
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Appalachian Trail - Jeff Santos
jeff santos
APPALACHIAN
TRAIL
CRUZANDO OS ESTADOS UNIDOS A PÉ
APPALACHIAN TRAIL:
cruzando os Estados Unidos a pé
Jeff Santos
APPALACHIAN TRAIL
cruzando os Estados Unidos a pé
© 2023 Jeff Santos
Capa: Naked Hiking Day, 2017
Foto: Jeff Santos
1a Edição - Julho/23
ISBN: 978-65-980601-0-7
Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução.
www.longadistancia.com
@distancialonga
Para Jade e Lis
NOTA DO AUTOR
Antes de tudo, obrigado a você por comprar este livro. Ele narra a minha experiência caminhando pela Appalachian Trail em 2017.
Recorri a meu diário, além de fotos, vídeos e anotações, para relembrar os fatos e histórias. Mas alterei alguns nomes próprios para preservar a identidade dos personagens.
Várias pessoas e empresas foram fundamentais desde o momento em que decidi percorrer este caminho. Tenho que agradecer a todos que gastaram alguns minutos votando no vídeo que produzi para o concurso The Badger Sponsorship. Sem o prêmio não teria conseguido os equipamentos que usei durante toda a trilha. Obrigado a todos vocês.
Agradeço também a Zack Davis, toda a equipe do site The Trek e aos patrocinadores da promoção: Big Agnes, Gossamer Gear, REI, Therm-a-rest, Altra, Wigwam Socks, Injinji Socks, Granite Gear, Sawyer, CLIF
Bars, PROBAR e Good To-Go Meals. Andrea e Cabral, do Outono Studio, pelas sessões de Gyrotonic. Ziller, pelos contatos e inspiração.
Gui, Luiz e toda equipe da Spot Brasil pela confiança. Elias Luiz, pelas conversas e divulgação. Ana Tereza, que sempre esteve no lugar certo, na hora certa. Ingrid, Yoav e a todos os demais anjos pelo suporte. Wash Bear, Senator, GI Jane, Dancing Bear e toda a Class of 2017. Minha família, grande demais para ser citada nominalmente aqui. Henrique e Tati, por ajudarem a segurar as pontas. Por fim, eu não teria dado o primeiro passo sem o apoio incondicional da minha esposa e parceira.
Ale, te amo.
Depois de um dia de caminhada, tudo tem o dobro do seu valor habitual
.
George Macauley Trevelyan
JEFF SANTOS
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APPALACHIAN TRAIL - CRUZANDO OS ESTADOS UNIDOS A PÉ
PRÓLOGO
12 de abril de 2017
Há alguns anos, recebi uma mensagem de um amigo: Ei, Jeff, por que seu nome está na lista dos mais procurados da Interpol?
. Achei que fosse brincadeira, mas ainda assim entrei no site da polícia internacional e procurei pelo link de Wanted Persons
(Pessoas Procuradas). Então, selecionei Brazil
no campo de nacionalidades. Na enorme lista que apareceu, entre homicidas, traficantes e políticos, lá estava o meu nome.
Não havia foto, e os dados pessoais, como altura ou data de nascimento, eram diferentes dos meus, mas o nome, não havia dúvidas, estava correto, com todas as letras: Jefferson Carlos dos Santos. Eu - ou melhor, ele - era procurado por assassinato.
Isso explicava o motivo de eu ser constantemente parado em viagens ao exterior. Eu já conhecia a sala de detenção de alguns aeroportos nos Estados Unidos e Canadá. Também era questionado pela Polícia Federal nos aeroportos brasileiros, mas até aquele momento, ninguém havia me explicado o motivo. Concluí que só poderia ser culpa do meu homônimo.
Escrevi uma carta ao escritório central da Interpol em Paris, contando o mal-entendido. Incluí no documento cópias autenticadas da minha carteira de identidade, do meu passaporte e das minhas certidões negativas de antecedentes criminais das polícias civil e militar. Após algumas semanas, recebi de volta uma correspondência oficial, em papel timbrado, com um pedido de desculpas e um atestado informando que o procurado não era eu. Era esse documento que eu carregava comigo em todas as viagens internacionais desde então.
Portanto, não foi surpresa quando a oficial de imigração em Miami começou a me fazer mais perguntas do que o usual. Deve ser o problema do homônimo
, pensei. Respondia a todas calmamente. Eu não tinha o que esconder e, se a situação começasse a complicar, sacava ali mesmo a carta. Quando ela me perguntou quanto tempo eu planejava ficar no país, 13
JEFF SANTOS
assim como em todas as outras perguntas, eu disse a verdade: Cinco meses. Eu planejo caminhar a Appalachian Trail
.
Não era a resposta que ela esperava ouvir. Ela levantou os olhos que estavam fixos na tela do computador e me mirou: Cinco meses? E quanto dinheiro você tem? E onde vai ficar durante todo esse tempo? Você disse caminhar? Você tem algum documento que comprove isso?
. Eu tentava explicar que não era necessário nenhum tipo de inscrição para percorrer a trilha e que era um percurso bastante popular, que milhares de pessoas tentavam completar aquelas 2.200 milhas todos os anos, mas para ela -
assim como para a maioria das pessoas com quem conversei até chegar ali - não fazia sentido alguém passar todo aquele tempo caminhando.
A oficial colocou meu passaporte do lado, e antes de eu conseguir apresentar a carta que trazia comigo, pediu para eu me afastar. Entregou meu passaporte a um guarda, que até aquele momento permanecia imóvel ao seu lado. Ele saiu levando junto minhas esperanças de resolver aquilo ali mesmo. Lá vamos nós para a sala de detenção novamente
, pensei.
As pessoas que estavam atrás de mim na fila da imigração iam passando enquanto eu esperava. Depois de alguns minutos o guarda volta. Entrega o passaporte à oficial que me chama: Sir, you are welcome
. Seja bem-vindo, ela disse.
Agradeci, peguei meus documentos, cruzei a linha amarela e entrei no país. Não sei o que o guarda fez quando saiu, mas eu o imaginava sentado na frente de um computador digitando Appalachian Trail
na barra de pesquisas de um navegador qualquer e lendo que sim, existia uma trilha de mais de 3.500 quilômetros que corta a costa leste dos Estados Unidos, que exigia cinco meses de caminhada e que naquele ano um brasileiro iria tentar percorrer aquela distância a pé.
***
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APPALACHIAN TRAIL - CRUZANDO OS ESTADOS UNIDOS A PÉ
Antes de iniciar oficialmente, eu precisava deixar Miami, onde estava enfrentando problemas na imigração, e chegar a Jacksonville, também localizada no estado da Flórida. Meus amigos Ingrid, Yoav e sua filha Laura moravam lá, e por isso escolhi a cidade como minha base de operações durante a caminhada. Aluguei um carro no aeroporto e dirigi algumas horas ao norte.
Ao chegar, deparei-me com dezenas de caixas em meu nome na garagem da família. Eram os prêmios do concurso Badger Sponsorship. Como finalista da promoção e com a ajuda de 1.895 votos online, ganhei grande parte dos equipamentos que precisaria. Passei os próximos três dias abrindo as encomendas, testando os equipamentos no quintal e comprando o que ainda faltava. Preparei oito pacotes com suprimentos e os deixei já endereçados, com as instruções para serem enviados posteriormente para as cidades por onde eu passaria. Além de comida e meias extras, coloquei algum dinheiro em espécie dentro das caixas.
Além disso, dedicava meu tempo a refletir sobre o que me levou a fazer aquela trilha. Ao contrário de muitos americanos que percorrem o caminho, isso não era um sonho antigo para mim. Havia ouvido falar da Appalachian Trail (ou AT, como é conhecida) apenas há pouco mais de um ano. Já havia caminhado quase 2.000 quilômetros no Brasil e, durante minha jornada pela Estrada Real em 2016, considerei a possibilidade de fazer uma caminhada ainda maior, próxima à natureza e com oportunidade de acampar. Pesquisei algumas opções e a AT me pareceu perfeita: exigia um planejamento relativamente simples, mantinha uma certa proximidade com as cidades, o que me agradava, mas, ao mesmo tempo, me obrigaria a acampar diariamente por meses.
Antes de chegar lá, li incansavelmente sobre o percurso em sites, blogs e fóruns na Internet. Adquiri alguns livros com relatos de caminhantes.
Subi e desci as ladeiras de Belo Horizonte com minha mochila cheia, simulando o peso que carregaria. No entanto, até aquele momento, não havia conversado com ninguém que já tivesse trilhado aquele caminho. E
ali, a três dias de iniciar meu desafio, Yoav compartilhava histórias da AT, que ele conhecia há décadas desde que havia trabalhado em uma colônia de férias próxima a ela.
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Eu pretendia iniciar a caminhada em 15 de abril de 2017. No último dia na Flórida, guardei na mala que utilizei durante a viagem os itens que não precisaria e a deixei novamente na garagem, com a promessa de buscá-la dali a alguns meses. Preparei minha mochila e verifiquei todos os itens que estava levando. Foi quando percebi que havia perdido o guia impresso, que continha o mapa do percurso e a localização de abrigos e pontos de água. Acidentalmente, o deixei no balcão da locadora de automóveis em Miami. Paciência
, pensei. Tenho uma cópia no meu celular e isso será suficiente
.
Na manhã seguinte, dirigi mais 600 quilômetros até Atlanta, no estado da Geórgia. Estava prestes a dar os primeiros passos na trilha.
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APPALACHIAN TRAIL - CRUZANDO OS ESTADOS UNIDOS A PÉ
0 - 26
Começar é sempre difícil. E no caso da Trilha dos Apalaches, não estou me referindo apenas ao planejamento, preparação e treinamento para percorrer uma trilha de 3.540 quilômetros. Alcançar o ponto de partida também não é fácil: ele está ao norte de Atlanta, no estado da Geórgia, entre as pequenas cidades de Ellijay (com uma população de aproximadamente 1.584 habitantes) e Dahlonega (com cerca de 6.884
moradores estimados em 2018).
Após um voo internacional, dirigir de Miami a Jacksonville e de lá até Atlanta, fui devolver o carro que havia alugado. Eu havia feito a reserva online por apenas cinco dólares por dia, mas ao acertar a conta, descobri que não tinha lido as letras miúdas do contrato: o seguro, a taxa de devolução e os impostos não estavam incluídos no valor. O custo final acabou sendo quase trinta vezes mais caro. Eu estava na locadora do Aeroporto Internacional Hartsfield-Jackson e, de lá, peguei o metrô local até North Springs, a última estação da linha vermelha. Foram mais 45
minutos de transporte, e a trilha ainda parecia distante.
Assim que cheguei à estação, liguei para o albergue onde tinha feito a reserva. Por 85 dólares, além de pernoitar no alojamento, eles também iriam me buscar no metrô e me levar no dia seguinte para o início da trilha. Como já está tarde, não temos mais carros disponíveis, mas solicitamos um Uber para você
, eles disseram. Vá até o estacionamento e encontre outro caminhante que está vindo para cá. O motorista irá encontrá-los lá
. Foi fácil identificar meu colega: um rapaz alto e magro, com uma mochila verde, destacando-se entre as poucas pessoas na estação. Andriy tinha ascendência ucraniana, mas morava no Brooklyn, em Nova York. Apresentei-me a ele, e enquanto aguardávamos o carro, ele entusiasmado me contava sobre os trechos da Trilha dos Apalaches que ele havia percorrido em seu estado como treinamento.
Vocês estão indo para o Hiker Hostel?
perguntou-nos um motorista enquanto estacionava ao nosso lado. Nicolas, um fã de futebol brasileiro, dirigia e conversava amigavelmente conosco. Seguíamos pela rodovia US-19 rumo ao norte, deixando para trás primeiro os prédios e depois as casas.
APPALACHIAN TRAIL - CRUZANDO OS ESTADOS UNIDOS A PÉ
Já havíamos passado mais de uma hora na estrada quando ele comentou:
O passageiro anterior me perguntou qual a maior distância que já percorri para levar um passageiro. Acho que agora tenho uma resposta
, disse ele, enquanto deixava o asfalto e pegava uma estrada de terra. Já era noite quando chegamos ao nosso destino.
O Hiker Hostel era uma casa de madeira de dois andares, com uma varanda na frente, uma sala ampla e alguns quartos com beliches, todos ocupados por caminhantes ansiosos para iniciar a trilha na manhã seguinte.
***
O início oficial da Appalachian Trail está no topo de Springer Mountain, uma montanha com 1.153 metros de altitude na Floresta Nacional de Chattahoochee. Não é possível chegar lá de carro: a partir da estrada, é necessário utilizar um veículo 4x4 para chegar ao estacionamento do parque. A partir desse ponto, você precisa caminhar quatro quilômetros no sentido contrário da trilha, do norte ao sul, apenas para chegar ao marco inicial e, em seguida, fazer o mesmo caminho de volta.
Devido a essa logística, alguns caminhantes optam por incluir a trilha de aproximação em seu itinerário. Com 14 quilômetros de extensão, a trilha de aproximação, conhecida como Approach Trail, tem início na sede do Parque Estadual das Cachoeiras de Amicalola (Amicalola Falls State Park). Naquele dia, entre os 15 hóspedes que tomavam café da manhã no Hiker Hostel, cinco de nós, incluindo eu e Andriy, além de um alemão e dois americanos, iríamos percorrer essa trilha. Uma van do albergue nos levaria até a entrada do parque, o que levaria cerca de meia hora.
O Amicalola Falls tinha uma boa estrutura para os visitantes, com um centro de informações sobre a região, uma loja de lembranças, banheiros bem conservados, um arco de pedras que marcava o início da trilha de aproximação e uma bomba de água onde eu fui encher minhas garrafas.
Fiquei parado ao lado do dispositivo de bombeamento, tentando encher as garrafas, mas não estava tendo sucesso. Foi então que outro 18
JEFF SANTOS
caminhante se aproximou e me disse: Você sabe que isso não é uma bomba, certo?
. Na verdade, eu não sabia. Para mim, aquilo parecia uma bomba, exatamente como as que eu via em filmes e desenhos animados.
Isso é um dispositivo de descongelamento. Você não precisa bombear, você só precisa levantar a alavanca...
, ele explicou, saindo logo em seguida. Eu percebi que, mesmo antes de começar oficialmente a trilha, estava aprendendo algo novo a cada momento.
Quando cheguei em frente ao arco, deixei o restante do grupo seguir na minha frente. Enquanto isso, conversei com Mary, uma voluntária da Appalachian Trail Conservancy, a organização responsável pela administração da trilha. Sentada em uma cadeira de plástico, com uma mesa à sua frente, ela registrava o nome e a cidade de origem dos viajantes.
Segundo seus registros, naquele ano, 1.808 pessoas haviam começado a caminhada por ali. Ela estimava que outras 1.500 pessoas haviam começado em Springer Mountain. Todos estavam tentando chegar ao estado do Maine. No entanto, as estatísticas mostravam que apenas 20%
dessas pessoas conseguiriam alcançar esse objetivo. Eu queria estar entre esses 20%.
Passei pelo arco às nove e meia da manhã e, após cerca de dez minutos de caminhada leve, deparei-me com uma escadaria de 604 degraus.
Amicalola é uma cachoeira com 222 metros de altura. Seu nome, de origem Cherokee, significa exatamente isso: Queda D'Água
. A escadaria, construída em metal, ergonômica e com corrimão, subia paralelamente à cachoeira. Era o primeiro grande desafio físico da trilha. Aos poucos, fui reencontrando os membros do grupo que haviam chegado ao mesmo ponto que eu. Primeiro, o alemão, sentado em um dos degraus, já com bolhas nos pés. Em seguida, os dois americanos, ambos reclamando do cansaço. Antes de completar os 14 quilômetros da trilha de aproximação, cruzei com Andriy conversando com outro caminhante. Deixa ele passar, porque esse cara anda cerca de 50 quilômetros por dia
, ele brincou. Eu havia contado a ele que no ano anterior tinha percorrido os 1.200
quilômetros da Estrada Real em 31 dias. Hoje vou pegar leve
, respondi.
O marco inicial da Appalachian Trail é uma placa de bronze simples incrustada em uma rocha. Com a figura de um caminhante, ela exibe a inscrição Appalachian Trail – Georgia to Maine. A foothpath for those who seek fellowship with the wilderness
(Trilha dos Apalaches - Da 19
APPALACHIAN TRAIL - CRUZANDO OS ESTADOS UNIDOS A PÉ
Geórgia a Maine. Um caminho para aqueles que buscam comunhão com a natureza). Ao lado da placa, pintada na rocha, está a primeira de muitas marcações brancas que servem como sinalização para a trilha, conhecidas como white blazes
. Eu havia chegado lá pouco depois da uma da tarde.
Esse era meu objetivo do dia, mas um cartaz pregado em uma árvore chamou minha atenção: Cuidado, caminhantes! Devido a um incidente recente com ursos, acampar no topo de Springer Mountain não é recomendado. Existe um abrigo com água e cabos para pendurar comida logo à frente
.
Parece melhor continuar caminhando
, pensei. Passei pelo estacionamento, depois pelo abrigo, e em seguida por outro. Era quase cinco da tarde quando cheguei a uma área de acampamento. Na entrada, uma guarda florestal descansava em uma rede e fornecia informações aos turistas. O local parecia estar cheio. Perguntei onde poderia montar minha barraca. Ela respondeu: Desça cerca de 50 metros e você verá algumas plataformas. Ainda há alguns lugares disponíveis lá embaixo
.
Comentei: Que trabalho ótimo você tem, né? Ficar na rede, à sombra, conversando com estranhos...
. Ela respondeu: Isso é o que você vê. Há meia hora, eu estava enterrando as fezes de outra pessoa...
.
Eu estava no Hawk Mountain Campsite. O local tinha cerca de 30
espaços delimitados, abertos lado a lado na encosta de uma colina que levava a um riacho. Encontrei o primeiro espaço livre que vi e montei minha barraca. Era a primeira vez que eu acampava. Mas essa rotina se repetiria diariamente nos próximos meses: caminhar o dia todo, encontrar um local seguro, montar a barraca, inflar o isolante térmico, trocar as roupas sujas de suor por roupas limpas para dormir, cuidar dos pés, pegar água e filtrá-la, preparar o jantar, pendurar a comida, encontrar um local para cavar um buraco para as necessidades e só então poder relaxar, escrever e planejar o dia seguinte. Pela manhã, era necessário desmontar o acampamento e guardar tudo de volta na mochila. Mas naquela primeira noite, não precisava pendurar a comida, pois podia guardá-la em uma das grandes caixas de metal, semelhantes a freezers, conhecidas como bear boxes
, que existiam no local. E naquela noite, também não precisava me preocupar em cavar um buraco para as necessidades, pois havia uma fossa no acampamento. Eram pequenos luxos que aprendi a valorizar cada vez mais a cada dia.
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Durante grande parte da minha vida, considerava-me uma pessoa urbana.
Eu gostava de prédios, de estar rodeado por pessoas e da vida noturna.
Por esse motivo, saí de Divinópolis, uma cidade do interior de Minas Gerais, onde nasci. Sentia que não me encaixava naquele ambiente.
Como todo adolescente, achava que sabia o que era melhor para mim: fiz o primeiro concurso que pude me inscrever (eu tinha 16 anos), fui aprovado e, assim, mudei-me para uma cidade maior - Juiz de Fora, com pouco mais de 300 mil habitantes.
Longe da minha família, morando precariamente e trabalhando em algo que não me agradava, passei ali os piores anos da minha vida. Se eu tivesse descoberto o prazer de caminhar, de estar na natureza, durante a adolescência, as coisas não teriam chegado àquele ponto. E ali estava eu, a quase 8.000 quilômetros de distância de casa, acampando na floresta pela primeira vez na vida...
Apesar da minha inexperiência, não tive uma noite ruim. E se quisesse, poderia ter optado por não acampar: embora não seja recomendado, é possível percorrer toda a trilha, com seus 3.540 quilômetros de extensão, sem levar uma barraca. Existem centenas de abrigos, conhecidos como
shelters
, ao longo do caminho. A maioria desses abrigos é simples, feita de toras de madeira, com um piso suspenso, paredes para proteger do vento e um teto para se abrigar da chuva. Em média, há um desses abrigos a cada 13,5 quilômetros - totalizando 260 abrigos ao longo da trilha.
Assim como na área de camping onde passei a noite, muitos deles estão próximos a cursos de água e possuem banheiros.
No entanto, ficar nos abrigos não era o que eu buscava. Ao decidir fazer a caminhada, planejei acampar sempre que possível, mesmo nunca tendo feito isso antes. Até aquele momento, a experiência mais próxima que tive foi há dois meses, quando montei a barraca recém-comprada no quintal da minha irmã, na região do Parque Estadual de Ibitipoca. Minha neta de três anos, Lis, me acompanhou nessa aventura
e deixou sua marca: 21
APPALACHIAN TRAIL - CRUZANDO OS ESTADOS UNIDOS A PÉ
um cheiro azedo de leite que ainda sentia naquela primeira noite sozinho.
Será que isso também pode atrair os ursos?
, pensava.
No meu segundo dia, saí cedo e caminhei novamente até o final da tarde.
No percurso, na região de Blood Mountain Wilderness, eu ia contando as montanhas pelo caminho: Sassafras, Justus, Ramrock, Big Cedar.
Também passei por dois abrigos onde poderia ter ficado, mas mais uma vez optei por acampar. Escolhi uma